Trabalhos: Opus Dei (1)

in "Rebeldia", nº 2, Grémio Rebeldia, Lisboa, Maio 1988

Esta é uma ténue imagem de uma organização religiosa que vive à sombra e à custa da Igreja Católica Romana, e que tenta, a todo o custo, conquistar o poder.
No final do século XX, quando o homem se esforça por alcançar cada vez mais bem estar, quando a ciência progride cada vez mais ao serviço desse bem estar, quando se consegue aumentar a esperança de vida, quando o homem caminha mais e mais para a personalização do indivíduo e para um maior acesso e democratização da cultura, quando o homem, enfim, defende a tolerância e a liberdade do indivíduo, existe uma organização que apela à penitência e à mortificação, exalta a dor humana, pratica a censura cultural, defende o escamoteamento de factos científicos (quando praticados ou defendidos por alguém contrário à sua doutrina) que, enfim, pretende dos seus elementos uma obediência cega e faz a apologia da despersonalização do indivíduo; quando esta instituição é tolerada e se mantém paulatinamente numa sociedade europeia com um elevado nível civilizacional, algo não está bem.
O paradoxo é demasiado.

João Pedro Ferro

1. História

A Opus Dei nasceu em 2 de Outubro de 1928 de uma visão. O então padre José Maria Escrivá de Balaguer (1902-1975) (2) viu qual a missão que Deus lhe destinou: a de "levar homens de todos os meios - começando pelos intelectuais para chegar depois aos outros - a responder a uma vocação específica que consiste em procurar a santidade e em fazer apostolado no meio do mundo, no exercício da sua profissão ou trabalho, sem mudar de estado".

Inicialmente, as mulheres não tinham cabimento na Obra de Deus (Opus Dei), mas uma nova "inspiração divina" (14 de Fevereiro de 1930) fez-lhe ver que também elas podiam participar da santificação. Constituíu-se então uma secção feminina, totalmente separada da masculina.

Iniciado em Espanha em 1928, somente em 1946 a Opus Dei iniciou a sua fase de expansão para diversos países do Mundo, encontrando-se em 1969 disseminada por 30 países (3). O primeiro país para onde se expandiu foi precisamente Portugal, onde, em 1946, Escrivá de Balaguer veio estabelecer os primeiros contactos com bispos. Nesse mesmo ano, chegaram alguns membros que fixaram residência em Coimbra, onde erigiram um centro. Espalharam-se depois para Lisboa e para o Porto.

Mas a vida da Opus Dei no interior da Igreja Católica Romana não foi pacífica.

"Tens a obrigação de te santificar. Tu também. Quem pensa que é tarefa exclusiva de sacerdotes e religiosos?" (Caminho, 291)

diz Escrivá de Balaguer. Este apelo à vocação da santificação no mundo cedo foi visto como heresia por muitos clérigos. No entanto, os maiores problemas que se colocavam eram de cariz jurídico, na medida em que a Opus Dei possuía leigos como directores espirituais e como elementos de formação. Ora, o Código de Direito Canónico de 1917, então em vigor, apenas previa, para as instituições internacionais, o direito dos religiosos, condição que a Opus Dei, mediante as suas estruturas sociais profanas, largamente ultrapassava. Além do mais, existia um latente conflito com as autoridades eclesiásticas territoriais pois, ao contrário do que o direito canónico prescrevia, os sacerdotes da Opus Dei não se colocavam debaixo da autoridade episcopal da sua diocese.

Não vamos aqui referir todos os passos do processo de regularização da Opus Dei no seio da Igreja Católica Romana, na medida em que, além de fastidioso, depararíamos com questões de Direito Canónico que ultrapassam os nossos conhecimentos. Diga-se somente que, apenas em 1947, a instituição Opus Dei encontrou o primeiro estatuto jurídico, com a criação dos Institutos Seculares, pela Constituição Apostólica Provida Mater Ecclesia(4) e que a aprovação definitiva da Opus Dei pela Santa Sé se verificou somente em 1950 (16 de Junho), com o decreto Primum inter de Pio XII.

A solução jurídica definitiva para a Opus Dei foi encontrada através da criação de Prelaturas Pessoais ou Apostólicas, pelo Decreto Presbyterorum ordinis (7.12.1965) e pelo "Motu Proprio" de Paulo VI, Ecclesiae sanctae (6.8.1966). No entanto, culminando estudos elaborados desde 1969, a Opus Dei apenas foi erigida em Prelatura Pessoal em 28 de Novembro de 1982, pela Constituição Apostólica Ut sit.

As prelaturas pessoais(5) são "estruturas jurídicas, de carácter puramente pessoal" (ou seja que normalmente não se circunscrevem a um espaço territorial, como as dioceses) "e secular, erigidas pela Santa Sé para a realização de actividades pastorais peculiares, à escala de uma região, de uma nação ou do mundo inteiro".

2. Estrutura organizativa e importâcia mundial

A prelatura pessoal Opus Dei ou, mais correctamente, a Prelatura da Santa Cruz e Opus Dei, encontra-se dotada de Estatutos próprios, depende da Sagrada Congregação para os Bispos, e a sede do seu governo central é em Roma (Viale Bruno Buozzi, 75).

O governo central é dirigido por um Prelado (actualmente Mons. Álvaro del Portillo), eleito vitaliciamente por um congresso electivo para esse fim convocado. Deve exercer o sacerdócio há, pelo menos, cinco anos e ser confirmado pelo Papa.

O Prelado pode designar um Vigário Auxiliar e dirige, tanto a secção masculina como a secção feminina, coadjuvado pelos respectivos orgãos de consulta.

Estes são um Conselho Geral, que o auxilia na direcção da secção masculina e que é constituído pelo Vigário Auxiliar (caso o haja), pelo Vigário Secretário Geral, pelo Vigário para a secção feminina (denominado Vigário Secretário Central), por três Vice-Secretários, por um Delegado de cada região pelo menos, pelo Prefeito de Estudos e pelo Administrador Geral; na direcção feminina, por sua vez, é auxiliado pelo Vigário Auxiliar (se o houver), Vigário Secretário Geral, pelo Vigário Secretário Central e pela Assessoria Central, organismo semelhante e com funções análogas ao Conselho Geral da secção masculina.

Todos estes dignatários, com excepção do Vigário Auxiliar, são nomeados por oito anos.

As relações com a Santa Sé são asseguradas por um Procurador, que deve ser sacerdote. De igual modo são obrigatoriamente escolhidos entre os sacerdotes o Vigário Auxiliar, o Vigário Secretário Geral e o Vigário Secretário Central. A direcção espiritual comum de todos os membros da Opus Dei é coordenada por um Director Espiritual Central, sob a direcção do Prelado e dos Conselhos.

A Opus Dei congrega dentro de si sacerdotes e leigos. Os sacerdotes incluem o clero de prelatura, constituído por leigos que, além de uma formação civil superior, seguem, no seio da Prelatura, os necessários estudos eclesiásticos; e por sacerdotes que se adscrevem à Opus Dei, oriundos de uma diocese, através da Sociedade sacerdotal da Santa Cruz, associação fundada pela Opus Dei. Estes últimos mantêm-se, no entanto, na dependência total e exclusiva do bispo da respectiva diocese.

Os leigos dividem-se em Numerários, Agregados, Supranumerários e Cooperadores.

Os Numerários são sacerdotes e leigos que colaboram com "todas as suas forças e uma disponibilidade total" nas tarefas apostólicas particulares da Opus Dei, resistindo normalmente nos centros da Prelatura. Cabe-lhes a formação dos fiéis e a direcção das actividades apostólicas.

Os Agregados são leigos que, vivendo "no celibato apostólico", residem no interior das suas famílias naturais. Exige-se-lhes, à semelhança dos anteriores, uma dedicação total à Opus Dei.

Os Supranumerários são leigos solteiros ou casados, que apenas participam na Obra de Deus na medida em que as suas actividades pessoais e familiares o permitam.

Finalmente, os Cooperadores são aqueles que, não sendo membros da Opus Dei, colaboram nas suas tarefas, com "a oração, a esmola e mesmo o seu trabalho". Segundo a bibliografia, podem ser indivíduos que nao sejam católicos ou, inclusivamente, não cristãos!

Insiste-se na variedade dos membros leigos da Opus Dei, que pertencem a todas as condições sociais, desde simples pedreiros a políticos, não havendo assim nenhuma forma de elitismo social. No entanto, como um pouco mais adiante analisaremos, as preferências de recrutamento são bem marcadas, dando-se preferência ao intelectual e ao estudante universitário.

Vejamos agora como se processa o ingresso na Opus Dei. A idade mínima é de 18 anos, não havendo limite etário superior. A entrada faz-se por meio de um vínculo de carácter contractual entre a Prelatura e o leigo: a prelatura compromete-se a assegurar uma formação "doutrinal-religiosa, espiritual, ascética e apostólica" e assegura ainda a ajuda pastoral particular dos sacerdotes da Prelatura, bem como o cumprimento de todas as obrigações impostas pelos Estatutos da Opus Dei; por seu lado, o interessado compromete-se a permanecer sob a jurisdição do Prelado e dos altos dignatários da Prelatura e declara estar firmemente disposto a procurar a santidade e a fazer apostolado. Compromete-se ainda a cumprir todos os deveres que as normas da Opus Dei obrigam e a obedecer às suas autoridades em matérias de regime de espírito e de apostolado.

Segundo Dominique Le Tourneau, todos são livres de se desligar da Opus Dei, embora acrescente que isso não significa "que as almas não estejam ajudadas a perseverar mediante direcção espiritual apropriada".

A Opus Dei exige do novo elemento uma obediência absoluta e incondicional dos Directores da Prelatura, ou seja, aos Directores Espirituais. Embora Escrivá de Balaguer refira tratar-se de uma obediência voluntária e responsável, através do espírito de iniciativa de seres inteligentes e livres, uma peuqena análise de alguns passos do Caminho mostra algo diferente:

"Director. Precisas dele. Para te entregares, para te dares..., obedecendo. E Director que conheça o teu apostolado, que saiba o que Deus quer; assim secundará, com eficácia, a acção do Espírito Santo na tua alma, sem te tirar do lugar em que estás..., enchendo-te de paz, e ensinando-te a tornar fecundo o teu trabalho" (Caminho, 62).

"Nos trabalhos do apostolado não há desobediência pequena" (Caminho, 614).

"Obedecer... - Caminho seguro. Obedecer cegamente ao superior {...}" (Caminho, 914)

Mas a Opus Dei exige mais. Exige "uma intensa vida sacramental, principalmente centrada na Missa e na Comunhão diárias e na Confissão semanal; a prática habitual da oração mental (até uma hora por dia); a leitura do Novo Testamento e de um livro de espiritualidade; a recitação do Terço; o exame de consciência; uma recolecção mensal e um Retiro anual; a procura constante da presença de Deus; a consideração da filiação divina; a recitação de comunhões espirituais, actos de desagravo, orações jaculatórias", etc., etc. Exige igualmente a prática quotidiana do sacrifício e da penitência, incluindo a mortificação.

Segundo o que nos foi possível apreender de informações obtidas, a ministração da doutrina faz-se por meio de meditação individual e colectiva, através de aulas e palestras. Pelo menos num nível mais elementar, existem três tipos de "sessões" doutrinárias: uma meditação semanal, motivada por um jovem, versando temas da doutrina da Opus Dei, onde os grupos rondam as 4 ou 5 pessoas e se requerem homogéneos. Uma outra sessão, de cerca de 2 horas e 30 minutos, efectua-se três vezes por semana, constando de uma palestra sobre doutrina da Igreja, uma missa e uma meditação interior, que é efectuada do seguinte modo: o orador ou um sacerdote vão efectuando interrogações em voz alta, a que cada indivíduo deve responder interiormente. A sessão termina com uma confissão, que é facultativa. Por fim, realizam-se semanalmente conferências, proferidas por pessoas mais antigas na Opus Dei, versando de um modo mais pragmático, problemas da Sociedade e a sua resolução de acordo com a doutrina da Obra.

Acrescente-se que os membros da Opus Dei têm sempre à sua disposição um capelão para se confessarem e o seu director a quem nada devem ocultar.

Em 1984, o número de fiéis leigos da Prelatura rondava os 73 000, de 87 nacionalidades, equilibrando-se o número de homens e mulheres. Do que resulta, uma média de cerca de 840 membros leigos por nação. Pesando muito embora todos os condicionalismos de um número calculado de modo tão simplista, verifica-se que a implantação social da Opus Dei não era, em 1984, muito elevada. Quanto ao número de sacerdotes, estes eram, em 1985, cerca de 1220 apenas, sendo o crescimento anual da ordem de 60 sacerdotes, o que, a manter-se, levará a um número, em finais de 1988, de cerca de 1400. Assim, em 1984, os sacerdotes representavam cerca de 1,6% do total dos membros da Opus Dei.

Em Portugal, em finais de 1985, existiam cerca de 2000 membros, incluindo aproximadamente 15 sacerdotes, representando 0,75% do total. Concentravam-se sobretudo em Lisboa, Porto e Coimbra, embora existissem igualmente membros em Braga, Guimarães, Famalicão, Lamego, Viseu, Guarda, Aveiro, Figueira da Foz, Leiria, Caldas da Rainha, Évora, Montemor-o-Novo, etc.

Apesar de a sua implantação social não ser muito elevada, a Opus Dei não é vista com muito bons olhos por grande parte da hierarquia católica, na medida em que constitui como que um "Estado" dentro da Igreja e possui poderosas influências, chegando mesmo a suspeitar-se da sua responsabilidade na escolha do presente Papa.

No mundo profano, o seu papel não é menor em certos países como, por exemplo, em Espanha ou em Itália, onde por vezes transpiram para os jornais certos pormenores da sua influência política e económica(6).

Este poder efectivo tende a aumentar, na medida em que os alvos preferenciais do recrutamento da Opus Dei são os intelectuais, os professores universitários e os estudantes universitários, muitos deles futuros professores. Asseguram assim um proselitismo fácil e eficaz.

Quanto a orgãos de informação próprios, o Governo Central elabora um Boletim Informativo que, depois de traduzido, é distribuído gratuitamente a quem o quiser pela Vice-Postulação de cada país. Em Portugal saiu já o nº 7.

3. Doutrina e Filosofia

Vejamos um pouco mais pormenorizadamente quais os fins práticos da Opus Dei. Segundo um documento emanado em 1983 da Santa Sé, estes são dois, ambos pastorais:

    a) cumprimento dos compromissos ascéticos, formativos e apostólicos da Prelatura;

    b) apostolado do presbitério e do laicado da Prelatura, a fim de difundir pela sociedade o chamamento universal à santidade.

No entanto, Escrivá de Balaguer é mais preciso:

"O fim geral do Instituto(7) é a santificação dos seus membros pela prática dos conselhos evangélicos e a observância das próprias constituições."(8).

"O fim específico é trabalhar com todas as forças para que as classes dirigentes, principalmente os intelectuais, adiram aos preceitos e ainda aos conselhos de Cristo Nosso Senhor e os ponham em prática, e deste modo, fomentar e difundir a vida de perfeição em todas as classes da sociedade civil e formar homens e mulheres para o exercício do apostolado no mundo"(9).

Fica assim bastante claro o modo inteligente como a Opus Dei pretende conquistar o mundo para a salvação: primeiro e principalmente, convencer os intelectuais e dirigentes, por são esses que efectivamente governam o destino dos povos e, sobretudo, lhes ministram educação e cultura.

Compreende-se de imediato a finalidade da Opus Dei em se implantar prioritariamente junto de centros universitários. É neles que se forma a maioria dos dirigentes e intelectuais das nações. Aumentam assim as possibilidades de colocar no poder elementos que actuem debaixo do seu controle.

Muito embora Dominique Le Tourneau refira que a Opus Dei não tem doutrina própria e não constitui escola própria em questões filosóficas, teológicas ou canónicas - assim teria de ser para a sua aceitação no seio da Igreja -, pela leitura do seu livro fundamental, o Caminho e de outras obras devidas a Escrivá de Balaguer, torna-se claro que possui uma doutrina e uma filosofia próprias.

O Caminho (Camino na versão original castelhana), foi escrito por José Maria de Balaguer em 1934. Em 1987, contava já com 216 edições, em 37 idiomas, num total de 3 409 664 exemplares. É um livro escrito em discurso directo, em forma de confidências. Consta de 999 artigos ou versículos, divididos por 46 capítulos. Destina-se prioritariamente aos jovens do sexo masculino.

Uma análise forçosamente superficial desta obra permite distinguir claramente algumas linhas-força que julgamos necessário salientar.

a) Apelo à despersonalização individual através de uma constante humilhação e de uma subjugação completa ao Director espiritual.

    "Não te esqueças de que és... o depósito do lixo. [...] Humilha-te; não sabes que és o caixote do lixo?" (Caminho, 592).

    "Não desaproveites a ocasião de abater o teu próprio juízo: - Custa..., mas que agradável é aos olhos de Deus" (Caminho, 177).

    "Não és humilde quando te humilhas, mas quando te humilham e o aceitas por Cristo" (Caminho, 594).

    A entrega ao Director espiritual deve ser total, como já aqui foi referido, sendo ele quem determina a acção de cada membro da Opus Dei, nos mais variados aspectos:

    • querendo casar, deve o Director ou o confessor aconselhar a leitura de um livro adequado, com o qual será mais fácil "levar dignamente as cargas do lar" (Caminho, 26);

    • a ele nada se deve ocultar, nem mesmo as invectivas dos inimigos:

      "Não ocultes ao teu Director essas insinuações do inimigo. A tua vitória, ao fazeres a confidência, dá-te mais graça de Deus. E, além disso, tens agora, para continuares a vencer, o dom do conselho e as orações do teu pai espiritual" (Caminho, 64);

    • mesmo que não tenha razão, é quase inquestionável:

      "[...] e nunca o contradigas diante dos que lhe estão sujeitos, mesmo que não tenha razão" (Caminho, 954).

    O espírito crítico apresenta-se, por sua vez, como algo prejudicial à santificação do homem e à prática do apostolado, pelo que deve ser combatido sem tréguas:

    "[...] haveis de trazer um manto invisível que cubra todos e cada um dos vossos sentidos e potências [...]" (Caminho, 946).

    "É má disposição ouvir as palavras de Deus com espírito crítico" (Caminho, 945).

    "No Apostolado, estás para te submeteres, para te aniquilares; nã para impor o teu critério pessoal" (Caminho, 936).

    e se, para além destes conselhos, o espírito crítico persistir, como é um grande estorvo para a obra pessoal, a solução é de imediato apontada:

    "[...] pega numa caneta e num papel, escreve simplesmente e confiadamente - ah!, e com brevidade - os motivos que te preocupam, entrega a nota ao superior, e não penses mais nela. - Ele, que é quem vos dirige e tem graça de estado, arquivará a nota... ou deitá-la-á no cesto dos papéis. - Para ti, como o teu espírito crítico não é murmuração, e só o exercitas para fins elevados, tanto faz" (Caminho, 53).

    É o superior, ou seja o director, quem decide da importância das inquietações e dúvidas de cada um e, em todo o caso, não se pense que se consegue uma resposta para estas interrogações. Na melhor das hipóteses, estas são arquivadas!

b) Penitência frequente e mortificação constante.

    São ideias permanentes ao longo de todo o ideário desta instituição. Sendo cautelosa em não assustar de imediato com práticas físicas, a Opus Dei explica que a mortificação constante resulta muito melhor e oferece uma maior possibilidade de purificação espiritual, se for permanentemente praticada nas coisas simples do dia a dia: se se tiver sede, atrasar meia hora o acto de beber água; se se tiver vontade de fumar um cigarro, não o fumar logo; comer menos do que aquilo que nos apetece; reter o possível as necessidades fisiológicas; etc., etc. Mas, enfim, todas as formas de mortificação são lícitas. Todos estes sacrifícios são efectuados constantemente pela remissão das faltas humanas e oferecidos a Deus. Assim se caminha no sentido da santificação individual e se ganha uma maior experiência espiritual.

    Vejamos agora alguns interessantes passos do Caminho, complementados pelos de uma obra póstuma de Escrivá de Balaguer, Sulco, escrita no mesmo estilo da anterior(10):

    "Nenhum ideal se torna realidade sem sacrifício. Nega-te a ti mesmo, É tão belo ser vítima!" (Caminho, 175).

    "Onde não há mortificação, não há virtude" (Caminho, 180).

    "Bendita seja a dor. Amada seja a dor. Santificada seja a dor... Glorificada seja a dor!" (Caminho, 208).

    "O teu maior inimigo és tu mesmo" (Caminho, 255).

    "A mortificação é de uma importância extraordinária, sob todos os pontos de vista:
    por razões humanas, pois quem não sabe dominar-se a si mesmo nunca influirá positivamente nos outros, e o ambiente vencê-lo-á, quando satisfizer os seus gostos pessoais: será um homem sem energia, incapaz de um esforço grande quando for necessário;
    por razões divinas: não te parece justo que, com estes pequenos actos, demonstremos o nosso amor e acatamento a quem tudo deu por nós?" (Sulco, 980).

    "Que pouco vale a penitência sem a contínua mortificação" (Sulco, 223).

    "Um dia sem mortificação é um dia perdido, porque não nos negámos a nós mesmos, não vivemos em holocausto" (Sulco, 988).

c) Apelo à criação de leaders

    Esta é outra das constantes da doutrina contida no Caminho, apesar dos aspectos contraditórios ao desenvolvimento de uma personalidade, já apontados. Apela-se a que o jovem se torne num "chefe", que seja o melhor na sua profissão, de modo a sobressair e a conquistar os mais elevados postos:

    "[...] Corrige-te, por favor. Néscio e tudo, podes chegar a ocupar cargos de direcção (mais de um caso se tem visto) e, se não te persuades da tua falta de dotes, negar-te-ás a escutar os que têm dons de conselho [...]" (Caminho, 352).

    "Estudante: forma-te numa piedade sólida e activa, sobressai no estudo, sente firmes desejos de apostolado profissional. E eu te prometo, ante o vigor da tua formação religiosa e científica, próximas e amplas conquistas" (Caminho, 346).

    Outros aspectos poderiam ser focados acerca da doutrina e da filosofia da Opus Dei. Salientaremos ainda a censura cultural a que cada membro se encontra sujeito, como que para concluir acerca do espírito desta instituição:

    "Livros. Não os compres sem te aconselhares com pessoas cristãs, doutas e discretas. Poderias comprar uma coisa inútil ou prejudicial [...]" (Caminho, 339).

Algumas palavras ainda acerca dos métodos de difusão da ideologia da Opus Dei e da sua atitude para com opiniões contrárias.

A Opus Dei tem pretensões universalistas, como aliás é característico de todas as seitas e sociedades de fundo cristão. O proselitismo deve ser uma das características de todos os seus membros, que devem trabalhar individualmente no sentido de cativarem novos elementos, através do seu exemplo.

No entanto, a Opus Dei requer discrição, na medida em que o publicitar a condição de membro da Prelatura pode atrair o inimigo e, como a sua doutrina e ideologia nem sempre se encontra consistentemente apegada ao coração dos seus membros, estes podem ser desviados do apostolado mediante argumentação fácil. O apostolado deve ser praticado na sociedade, no interior da família ou do grupo profissional, no seio dos amigos, com naturalidade mas com constância. E deve o "apóstolo", além disso, utilizar os meios que esses grupos põem à sua disposição:

"Que passe inadvertida a vossa condição, como passou a de Jesus durante trinta anos" (Caminho, 840).

"Acredita em mim, o apostolado, a catequese, em geral, tem de ser capilar: um a um. Cada crente com o seu companheiro imediato.
A nós, filhos de Deus, importam-nos todas as almas, porque nos importa cada uma delas" (Sulco, 943).

"Cala-te. Não te esqueças de que o teu ideal é como uma luzinha recém-acesa. Pode bastar um sopro para apagá-la do teu coração" (Caminho, 644).

"Os sectários vociferam contra aquilo a que chamam 'o nosso fanatismo', porque os séculos passam e a Fé católica permanece imutável.
Pelo contrário, o fanatismo dos sectários - porque não tem relação com a verdade - de época para época muda de vestidura, elevando contra a Santa Igreja o espantalho de meras palavras, esvaziadas de conteúdo pelos seus actos: ' liberdade' que aprisiona; 'progresso' que faz regressar à selva; 'ciência' que esconde ignorância... Sempre um barracão que encobre velha mercadoria estragada.
Oxalá que o teu 'fanatismo' se torne cada dia mais forte pela Fé, única defesa da única Verdade!" (Sulco, 933).

A atitude para com aqueles que se opõem ou não concordam com os ideais da Opus Dei é muito simples: ignorá-los completamente, por muito que seja o mérito ou o valor do inimigo:

"Servir de altifalante ao inimigo é uma soberana idiotice; e, se o inimigo é inimigo de Deus, é um grande pecado. Por isso, no terreno profissional, nunca louvarei a ciência de quem se serve dela como cátedra para atacar a Igreja" (Caminho, 836).

"Não se pode tolerar que ninguém, nem mesmo com bom fim, falseie a história ou a vida. Mas constitui um grande erro levantar um monumento aos inimigos da Igreja, que consumiram os seus dias a persegui-la. Convence-te: a verdade histórica não sofre por um cristão não colaborar na construção de uma estátua que não deve existir: desde quando o ódio se apresentou como modelo?" (Sulco, 938).

É sintomática e interessante a referência que se faz às sociedades secretas (o que são sociedades secretas: Maçonaria, Opus Dei, Mafia, FP-25?!) ao mesmo tempo que ilustra melhor aquilo que já referimos acerca dos "chefes":

"Chefes!... Viriliza a tua vontade, para que Deus te torne chefe. Não vês como procedem as malditas sociedades secretas? Nunca conquistam as massas. Nos seus antros, formam uns tantos homens-demónios que se agitam e movimentam as multidões, tresloucando-as, para fazê-las ir atrás deles, ao precipício de todas as desordens... e ao Inferno. Eles levam uma semente amaldiçoada. [...]" (Caminho, 833)


Notas:

    A bibliografia utilizada para este artigo resume-se, essencialmente, ao livrinho de Dominique Le Tourneau, O Opus Dei, tradução do francês de Margarida Martins, Lisboa, Editora Rei dos Livros, 1985. Os passaos citados entre aspas referem-se a esta obra. O leitor encontra neste livro uma extensa bibliografia sobre o assunto, com indicação das obras traduzidas em português.
    Utilizou-se ainda:
    Ardanaz (Cecília de), "Opus Dei, a 'santa mafia' não se confessa", in O Jornal Ilustrado, suplemento ao no. 577 de O Jornal, 14.3.1986, pp. 4-5.
    Boletim Informativo, no. 7, Lisboa, Vice-Postulação do Opus Dei em Portugal, s.d. [1987].

  1. Escrivá de Balaguer (José Maria), Caminho, 13a. ed., versão portuguesa de Manuel Rosas da Silva, Lisboa, Edições Prumo-Editorial Aste, 1979 (citado Caminho, seguido do número do versículo).
    Idem, A Constituição Apostólica "Provida Mater Ecclesia" e o Opus Dei, Porto, 1949.
    Idem, Sulco, 1a. ed., versão portuguesa de Osvaldo Aguiar, Lisboa, Edições Prumo-Editora Rei dos Livros, 1987.
    Europe et Laïcité, no. 115, Paris Centre d'Action Européene Démocratique et Laïque, Nov.-Dez. 1987-Jan. 1988.
    Opus Dei, Coimbra, 1954.

  2. Sobre Escrivá de Balaguer cf., entre outros, Salvador Bernal, Mons. Escrivá de Balaguer, Apontamentos sobre a vida do Fundador do Opus Dei, Lisboa, Edições Prumo-Editorial Aster, 1978.

  3. 1946: Inglaterra, Itália; 1947: França, Irlanda; 1949: E.U.A., México; 1950: Chile, Argentina; 1951: Colômbia, Venezuela; 1954: Alemanha; 1953: Peru, Guatemala; 1956: Suiça, Uruguai; 1957: Brasil, Áustria, Canadá; 1958: Salvador, Quénia, Japão; 1959: Costa Rica; 1960: Holanda; 1962: Paraguai; 1963: Austrália; 1964: Filipinas; 1965: Nigéria, Bélgica; 1969: Porto Rico (D. Le Tourneau, ob. cit., p. 14).

  4. Cf. Escrivá de Balaguer, A Constituição Apostólica "Provida Mater Ecclesia" e o Opus Dei, Porto, 1949.

  5. Cf. Código de Direito Canónico promulgado por S. S. o Papa João Paulo II, versão portuguesa de A. Leite, 2a. edição, Braga, Apostolado da Oração, 1983, cânones 294-297.

  6. Em Espanha lembre-se o famoso "caso Matesa", acerca de uma empresa têxtil de exportação, que deu origem a um escândalo finaiceiro, envolvendo dirigentes franquistas da época e a própria Igreja. Mas recentemente, o jornal El Pais (Agosto, 1987) denunciou negociações entre o Governo madrileno e a Santa Sé para a retirada do embaixador espanhol do Vaticano (acusado pelos conservadores católicos de ser agnóstico e candidato ao divórcio): uma das condições impostas por Madrid seria que o Vaticano não nomeasse para Espanha mais bispos pertencentes à Opus Dei. Como o embaixador foi mudado em Setembro último, presume-se que o Vaticano tenha aceite a condição (cf. Europe et Laïcite, no. 115, cit., pp. 10-11); Em Itália, a Opus Dei deu igualmente escândalo político ao ter sido publicado, em 1986, no semanário L'Expresso, alguns dos 479 artigos de um suposto regulamento "secreto" da Obra, que teria estado em vigor até 1982, data em que a Opus Dei foi elevada a "Prelatura Pessoal". Pelas disposições desse regulamento e pela disposição final do segundo regulamento ("Todos os membros da prelatura estão sujeitos às mesmas obrigações do regime antigo"), este sim entregue às autoridades eclesiásticas, chegou a ser pedido um inquérito parlamentar, na medida em que; sendo assim; a Opus Dei caía no estatuto de sociedade secreta, proibida pela lei italiana no. 17 de 25 de Janeiro de 1982 (CF. Cecília de Ardanaz, ob. cit.).

  7. Instituto secular, primeiro estatuto jurídico da Opus Dei, concedido pela Constituição Apostólica Provida Mater Ecclesia (2.2.1947).

  8. Escrivá de Balaguer, A Constituição Apostólica "Provida Mater Ecclesia" e o Opus Dei, Porto, 1949, p. 19.

  9. Opus Dei, Coimbra, 1954, art. 9.

  10. A primeira edição desta obra data de Outubro de 1986. Em finais de 1987 contava já com 12 edições, em 5 idiomas, num total de 140 989 exemplares. Edição portuguesa citada na nota 1.