Trabalhos: A Reforma do Ensino ou A Domesticaçãao do Adolescente ou A Escola Totalitária

in "Rebeldia", nº 2, Grémio Rebeldia, Lisboa, Maio 1988

O sonho que todos os ministros é deixarem o seu nome ligado a grandes reformas. Os ministros da Educação não fogem à regra e, por cada um que passa, multiplicam-se as leis e os decretos, revogando, alterando, criando. Até porque é mais fácil e mais barato reformar o Ensino do que remodelar a rede viária de um país ou tocar nas bases da distribuição da sua propriedade. E quando, para azar dos cidadãos, há mais estabilidade governativa e, portanto, mais tempo para legislar, os resultados podem ser verdadeiramente desastrosos!

A. H. de Oliveira Marques

Isto não quer dizer que se proscrevam as reformas. Nada disso. Reformar é dar mostras de compreender que algo está mal, está obsoleto, está ultrapassado, e que é preciso adaptá-lo às circunstâncias, e às condições em que se vive. Ninguém o nega. Mas o que é preciso, para que uma reforma se imponha, é que as leis anteriores se revelem tão más que o progresso e o bem-estar do país o exijam.

Ora, nada disto sucede com o actual Ensino, em qualquer dos seus graus. Ninguém adinda provou que um médio ou bom estudante, aprovado sem abusos nem injustiças, nos níveis básico, secundário e superior - ou ainda só em dois deles, ou mesmo só num -, não esteja em condições suficientes para enfrentar o mundo de hoje - que não é assim tão revolucionariamente diferente do mundo de ontem como o Partido dos Computadores nos quer fazer crer - com preparação, pelo menos tão adequada como noutros países da Europa. Há correcções a fazer? Claro que há. Há que apertar um poucochinho mais a torneira da discipina da conduta diária, tanto de docentes como de discentes. Há que aperfeiçoar critérios de avaliação. Há tudo isso e muito mais. Mas não nos venham com visões catastróficas do Ensino que temos. Ele não é, em geral, inferior ao que tivemos e, em muitos casos, mostra-se infinitamente superior. Não é por causa do tipo actual de Ensino que deixaremos de nos integrar na CEE. É antes pela escolaridade insuficiente, pela falta de estabelecimentos de ensino adequados em muitas regiões do País e, sobretudo, pelo subdesenvolvimento cultural de uma vasta camada de cidadãos que enquadra tudo e todos.

Vêm estes considerandos a propósito da Reforma do Ensino Educativo em discussão. Têm saído a público vários livrinhos subordinados ao título Documentos Preparatórios. Lemos, para já, o vol. I, e ficámos estarrecidos com muito do que lá se diz.

Para começar seria bom que os redactores de alguns dos capítulos (não de todos, note-se) voltassem à escola e aprendessem, por um lado, a escrever bem a sua língua e, pelo outro, o que é muito mais importante, a exprimir bem as suas ideias. A confusão no estilo e na apresentação dos conceitos causa pavor. Até nos quadros esquemáticos há confusão e pouca legibilidade. Como querem esses senhores reformar o Ensino num país de língua portuguesa, se eles próprios não conseguem redigir claramente no seu idioma? E nós, que tínhamos algumas dúvidas sobre a indespensabilidade do ensino do Português, do primeiro ao último ano, ficámos mais do que convencidos ao ler tanta confusão. Neste aspecto, damos-lhe toda a nossa concordância. Língua materna do Básico ao Superior, com muita, muita leitura de bons autores nacionais e muita, muita gramática (não sei se ainda se diz assim, na moderna ciência da Linguística).

Vêm depois as pesporrências, fruto das ignorâncias. A nova escola, a resultante da reforma, será a Escola Cultural, oposta à do passado, a Escola Curricular. É triste, se não fosse ridículo, considerar a Escola, por onde todos nós aprendemos, a Escola Curricular, desligando-a de quaisquer preocupações humanistas e mormente da de fazer do aluno um cidadão culto, livre e consciente. Só por total e assombrosa ignorância se pode afirmar tal coisa dos planos e das realidade escolares de todo o passado português, até do mais próximo, até do salazarista! E mais assombrados ficamos ao ver a alternativa proposta pela tal "Escola Cultural". É uma reedição, correcta e aumentada, da escola totalitária, muito do agrado dos regimes fascistas, comunistas ortodoxos e, mais actualmente, da preconizada pela Opus Dei. O professor da "Escola Cultural" já não será "transmissor do saber e do saber-fazer constituídos" (oh, delicioso professor o do futuro, o que não transmite saber...), porque "demasiado perigoso para a plena humanidade (sic) do homem". O professor novo será o que tem de propôr "a axiologia das letras e das artes", ensinando o aluno a "hierarquizar" os valores, sobretudo os éticos e estéticos. Na "Escola Cultural", onde se dirá que "o homem age sob o signo do Bem e do Mal" (sic), apontar-se-á também o caminho da Verdade, "ao nível em que ela é supremamente o Bem" (sic).

Lê-se e não se acredita. Ou melhor, lê-se e fica-se aterrado com o que semelhantes ideias representam para um docente e podem representar para um aluno. Maniqueísmo puro em 1988. Bem e Mal. Verdade e Bem. Etc. Etc. Ciência moderna construída sobre valores absolutos ligados, evidentemente, às crenças e aos critérios religiosos. A Escola Cultural aponta, assim, para uma Filosofia dogmática e moralista, para uma História dogmática e moralista, porventura para uma Biologia, uma Física, uma Química dogmáticas e moralistas. É o regresso à Idade Média! E um "educador" de 1988 permite-se desabafar assim nos considerandos a propósito do "culto da qualidade": "Deus nos livre a todos, sempre, e Deus livre a escola, sempre, dos delegados da propaganda cultural". Deus nos livre!!? Deus livre a escola!!? Que Deus?! A Santíssima Trindade? Jehovah? Allah? Manitú? O Supremo Arquitecto do Universo?

A dita Escola Cultural vai porém mais longe. À maneira da antiga Mocidade Portuguesa, ela encerra em si mesma tudo o que ao adolescente poderá interessar e motivar: "exposições; concertos; recitais literários; conferências; colóquios; palestras; sessões de cinema; sessões de vídeo; jornadas desportivas; provas desportivas; concursos científicos, literários, artísticos, técnicos; publicação de jornais ou revistas escolares; festas escolares; sessões de teatro; etc.", distribuídos por clubes de toda a ordem que ocupam mais de três páginas do livrinho. É o delírio! Nem com um orçamento dez vezes superior ao actual, nem na próspera Alemanha ou nos evoluídos Estados Unidos, se conseguiria tal desiderato. A preocupação de absorver a inteira actividade do aluno, de o conservar anos a fio dentro das paredes da escola, está bem patente num plano como este. No fundo, o que importa é domesticar o adolescente dentro dos parâmetros da "Escola Cultural", ou seja, das hierarquias de valores, dos conceitos de Bem e Mal que ela define e lhe incute. O que importa é evitar ao máximo que o estudante contacte com o mundo exterior, que possa encontrar uma realidade diferente da da Escola e que seja, assim, levado a escolher o seu caminho. O que importa é coarctar a liberdade, é "proteger" o menino para que ele veja os "bons" filmes que a Escola Cultural lhe proporciona e não se perca no Olímpia, vendo um filme pornográfico hard-core. É isto que se pretende.

O projecto não vai mais longe, porque não se pode ir mais longe do que domesticar um adolescente e transformá-lo num inócuo papagueador do "Bem" e do "Mal". Mas contém variados aspectos que vale ainda a pena apontar.

Um deles é o conjunto de obcessões que, aparentemente, o nortearam do princípio ao fim: a obcessão da "inserção na vida activa", a obcessão do "insucesso escolar" - chega a dizer-se que "o sucesso é o próprio sentido do sistema" e que "todo o insucesso educativo de qualquer educando é, a esta luz, um insucesso do sistema (sic)"; a obcessão do ensino da cultura e língua portuguesa; a obcessão do ensino religioso; etc.

A "inserção na vida activa" traduz-se no desejo, impossível e contrário à inquietação que toda a vida humana deve conter, de que o diplomado entre, sem transições, para um emprego e lá se deixe ficar para sempre, plenamente realizado, preparado e sem problemas.

O "insucesso escolar" procura resolver-se, na prática, com uma política demagógica de passagens de ano para ano, com um mínimo de 2 valores em 5, embora se diga, sem sofismas, que a classificação de 2 indica que o aluno satisfaz "com dificuldade nos mínimos essenciais". Então como é? Satisfaz, sem saber bem o mínimo essencial? É claro que, assim, 90 ou mesmo 95 por cento dos alunos satisfarão sempre e o sucesso escolar estará garantido de vez. A Escola Cultural preparará para a vida activa alunos que nem sequer sabem o mínimo essencial das disciplinas que aprenderam?! Tudo bem!

A "cultura e língua portuguesa" procuram ministrar-se ao aluno, ano após ano. Nada a objectar, claro, desde que se lhe ensine, também, cultura europeia e até mesmo cultura mundial, num ensino que se propões adaptar os currículos e os objectivos à nossa entrada para uma Europa unida. Então não interessa ao aluno, para lá de saber que é o que valem os Portugueses, saber também que é europeu e português cidadão do mundo? Que nacionalismo chauvinista é este, no final do século XX, na era da Europa transnacional, com direitos e deveres iguais para todos os seus filhos? É assim que a "Escola Cultural" se propõe preparar os cidadãos portugueses?

Quanto ao ensino religioso, ele perpassa do princípio ao fim do livrinho, como qualquer coisa que os autores do projecto consideram essencial. É claro que um dos objectivos da reforma respeita a converter o aluno num bom católico, impermeável às influências nefastas do laicismo. E o curioso é que não se confia lá muito no papel da família na educação religiosa dos jovens. Tem de ser a escola a ministrá-la para que se fique tranquilo. Vai-se assim ao ponto de hesitar, na definição de uma quinta disciplina para o tronco comum de formação geral, entre Educação Cívica e Religião e Moral. Quer dizer: no Portugal de 1988 não se sabe se é preferível preparar um bom cidadão ou um bom beato!

Não vale a pena criticar alguns pormenores mais anedóticos que contém este curioso livrinho, símbolo bastante claro do espírito tacanho e retrógado que parece dominar as autoridades educativas portuguesas. Alguns, como o homem-animal antes de ter ido para a Escola, e o homem-pessoa depois de lá ter estado, foram já suficientemente comentados, até mesmo na Assembleia da República.

Outros mereceriam glosa desenvolvida, como o das crises do petróleo abaladoras do mundo ocidental, o do ano 1988-89 como sendo o "Ano Novo" na educação portuguesa, o dos professores capazes de ensinarem todas as disciplinas chamadas de "Ciências Sociais", o da ideia-força de que "não vale a pena gastar um minuto nem um centavo em acções que não constituam desde logo parte integrante de uma estratégia de fundo", o da escola actual afastada da realidade, etc., etc.

Também não entraremos hoje na análise dos currículos, já muito ventilados por toda a parte. Ficam para o próximo artigo, de par com os comentários que nos irá merecer o vol. II dos Documentos Preparatórios, se for tão interessante como o I...