A LITERATURA PORTUGUESA:

DOS ANOS 70 À DÉCADA DE 90

 

Nuno Júdice

Universidade Nova de Lisboa


Resumo:

Apresentação da Literatura Portuguesa mais recente desde os anos 70: Portugal do fim do Estado Novo a sua adesão à União Européia.

Résumé:

Présentation de la Littérature Portugaise depuis les années 70: le Portugal de la fin de l'Estado Novo à son adhésion à l'Union Européenne.


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Quando, em fins da década de 60, decurso de 70, alguns poetas publicam os seus primeiros trabalhos quer em revistas quer em livro - António Franco-Alexandre (A Distância , 1969), João Miguel Fernandes Jorge Sob sobre voz, 1971), Joaquim Manuel Magalhães (Consequência do Lugar , 1974), Manuel António Pina (Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde , 1974), Rui Diniz ( Ossuário , 1977) - revelando uma atitude comum, embora não programada nem programática, perante o acto criativo do poema, o que se verifica é não só o movimento de regular pendularidade com que, na poesia portuguesa, se assiste a um render da guarda em cada década - assim desde os anos 10, com a geração de Orpheu, até à poesia 61 - mas acima de tudo a tomada de consciência de que dois caminhos se afrontavam nessa poesia, em relação aos quais importava tomar uma decisão. Eram eles o caminho da poesia comprometida, que ia buscar ao lirismo tradicional os seus recursos, e o de uma poesia que propõe modos discursivos diversos, com a sua fonte quer na herança clássica (Sophia de Mello Breyner Andresen), quer na poesia anglo-americana (Jorge de Sena), quer numa expressão filosófica que tem os seus modelos em Eliot e Rilke (Ruy Belo), quer no êxtase verbal de raiz surrealista, mas controlado por uma lúcida autoconsciência do jogo verbal e vocabular (Herberto Helder).

Essas duas vias, a que se acrescentará o paradigma experimental (Melo e Castro, Ana Hatherly), representam modelos perante os quais importava tomar posição, assumindo ou rejeitando a sua herança. Afastada a hipótese militante, dado o esgotamento das suas premissas - que fazem com que um dos seus mais altos cultores, como Carlos de Oliveira, a tenha feito inflectir no sentido de um retorno ao classicismo (o que também se irá verificar com a reivindicação camoniana no percurso poético de Manuel Alegre), apurando a perfeição formal de uma poesia que, não obstante, insiste na premissa comunicacional - e recusada a via experimental, devido à saturação do efeito vanguardista, é a partir da tomada em conta do modelo discursivo que a poesia da viragem da década de 60 para 70 vai orientar o seu rumo.

Antes de mais, essa inflexão verifica-se na recusa de um sentido (pré-)determinado (a mensagem da poesia comprometida), e na exploração de uma plurissignificação que não se esvazia na entrega ao leitor da decisão sobre o sentido, antes coloca esse leitor no centro de um percurso por entre sentidos diversos, vindos do cruzamento labiríntico de imagens de fonte diversa, literária, poética, real, histórica, etc., que são os materiais de trabalho do poema. Não é estranho a este trabalho quer o domínio do espaço interior, recusando de forma implícita o inconsciente da psicanálise e do surrealismo, e que tem em Jorge Luis Borges um paradigma, quer o trabalho de ficcionalização do espaço do poema, com a capacidade de pôr o anedótico individual da situação lírica no mesmo plano que o drama vivido pelo protagonista histórico. Assim, a proposta desta poesia é fazer sair o eu poético do espaço circunscrito e pateticamente trágico do destino pessoal para o de uma expressão em consonância com a Tradição, fazendo desse poeta o continuador dessa tradição e, noutro plano, o mediador entre a Voz poética intemporal e universal e o momento actual e contemporâneo.

Faz-se isto, por outro lado, sem renunciar a todas essas formas que podem contribuir para a realização desse objectivo, um pouco à maneira de Ezra Pound que não hesita em traduzir, incorporando a tradução no seu discurso - e assim traindo absolutamente o original - sempre que o seu discurso próprio não oferece os recursos necessários para transmitir uma dada figura do real. O projecto é, por isso, totalizante, num retorno de certo modo inesperado à épica; e, de facto, só não existe uma História por detrás desse discurso porque, ao contrário do projecto épico, já não existe uma crença em heróis nem sequer uma História com princípio, meio e fim para contar. O tempo presente é o verdadeiro objecto desta poesia - e, por isso, não se encontra nela uma simples enunciação culturalista ou veneziana de absolutos estéticos ; e é um tempo em fragmentação, antecipando já a crise e o estilhaçar dos valores civilizacionais e sociais a que o curso do tempo vai dar intensidade crescente e dramática.

É claro que, na génese desta atitude, se encontram fenómenos que tiveram eco em Portugal, desde o Maio de 68 até à invasão da Checoslováquia pelos tanques soviéticos, em Agosto desse ano, momento inicial de um processo degenerativo do Comunismo soviético que terminará com a queda do muro de Berlim. A situação portuguesa, em que se assiste ao fim da era salazarista e à decomposição que se lhe segue, culminando com o 25 de Abril de 1974, permite que o conflito ideológico seja vivido de forma intensa, uma vez que não é possível a indiferença perante a situação política. A rejeição da ditadura, e a oposição mais ou menos clandestina a que isso obriga, já não pode encobrir a inocência do intelectual. Assim, resta fazer com que as mãos sujas de quem escreve o sejam apenas de tinta, e não de contaminações ideológicas, limpando o poema dessa carga - o que, por outro lado, representa já uma atitude de antecipação do movimento da História que, ao varrer de cena essa ditadura agonizante, varre simultaneamente a literatura que dela se alimentou, mesmo que o tenha feito com a boa intenção de se lhe opor, esquecida da frase conhecida de que não é com boas intenções que se faz boa literatura.

Aqui se encontra, então, um tom que vai ao encontro de um espaço a que se pode chamar europeu, o que correspondia, na altura, a um pôr entre parêntesis a situação portuguesa - que, a ser tida em conta, apenas contribuiria para fechar e enclausurar o poema nas suas obsessões circunstanciais - e, finalmente, a seguir o preceito de Rimbaud de que a poesia já não tem que ritmar a acção mas sim de ir à sua frente. Se este cosmopolitismo tem aspectos comuns com o Orpheu (1915), que também ia buscar a sua articulação com as vanguardas europeias (do cubismo ao Futurismo), a semelhança termina aí dado que, em 1970, o que predomina é a afirmação individual, e a procura do respectivo caminho, sobre a do grupo que, de resto, nem chegou a haver. Neste sentido, está-se já num período pós Modernista, ou seja, numa época que assimilou a lição das vanguardas e que as catalogou na prateleira da História. Fernando Pessoa, pela primeira vez, é lido como um clássico, estando suficientemente longe do presente para já não ter, nele, mais do que o estatuto de uma voz (uma das vozes...) fundadoras da contemporaneidade.

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Enfim, dá-se a Revolução dos Cravos em Abril de 1974; e, passado o período de pasmo em que a literatura portuguesa parece ter caído no imediato pós-revolucionário, surgem, na década de 80, os primeiros sinais de uma digestão mais tranquila da vida democrática, de que o primeiro sinal é o ressurgimento do romance, com os nomes de José Saramago (Memorial do Convento , 1982), António Lobo Antunes (Memória de Elefante , 1979) , Lídia Jorge (O Dia dos Prodígios , 1980), entre outros, a marcarem um, talvez fátuo, período de renovação temática e estilística. A poesia não acompanhou esse chamado boom, mas não é por ter deixado de estar no primeiro plano que deixou de se mover; pelo contrário, dão-se alguns sinais importantes de uma alteração que se irá acentuar no decurso da década, prolongando-se nos anos 90. Essa alteração tem a ver com aquilo a que poderei chamar uma linguagem desinibida, sentindo-se então pela primeira vez a libertação do poeta relativamente às condicionantes impostas pela situação de censura anterior à revolução, que ainda atinge a geração que publica em 70. Uma nova educação, sob parâmetros democráticos, vai então manifestar-se na geração seguinte, fazendo com que a poesia se torne mais directa, caminhando no sentido de uma novo conceito de realismo que, no limite, será apenas o uso da linguagem na sua literalidade, sem ter de passar pelo crivo do simbolismo metafórico ou da ficção alegórica.

Há, por outro lado, um fenómeno de urbanização que também atinge a poesia, depois de o romance o ter experimentado . A marginalidade, a cultura pop, o rock, passam para a experiência poética, tornando-se visíveis em publicações ligadas a pequenas casas editoriais: a & etc, pese algum enfeudamento seu ao surrealismo-abjeccionismo, versão portuguesa do surrealismo; a Fenda, de Coimbra; a Black Sun Editores, curiosa mistura de intelectuais universitários e de activistas culturais, designadamente jornalistas, muitas vezes publicando sob pseudónimo. Não sendo demasiado visível, em termos de grande público, é de realçar no entanto que foram estas editoras que mantiveram a capacidade laboratorial para testar novas linguagens e processos, numa fase em que se assistiu ao progressivo desaparecimento dos suplementos literários e revistas em que isso se verificava.

À evolução da poesia não é indiferente a aventura do próprio campo editorial. Com efeito, eram reconhecíveis, até aos anos 70, afinidades entre poetas que decorriam da sua opção por colecções: a Ática, a Moraes, a Guimarães, a Inova, a Dom Quixote, a Sá da Costa, as Iniciativas Editoriais , eram algumas editoras com alguma dimensão, à escala nacional, onde se desenvolveram colecções de poesia que tinham uma coerência estética que, até certo ponto, marcava os poetas que nelas iam surgindo. Essa dinâmica reduziu-se substancialmente, quer no tocante à existência de colecções de poesia quer no tocante a essas afinidades poéticas; e é esta situação aleatória que explica a dificuldade em situarmos, muitas vezes, um determinado poeta, para o que contribui a própria escassez de antologias representativas.

Podemos detectar duas direcções importantes da poesia de 80: uma primeira está ligada à revalorização do quotidiano, dentro de um novo realismo que já não visa uma denúncia ou crítica de situações sociais, consistindo apenas no retrato nu dessas situações. Nesta linha, com maior ou menor densidade metafórica, vamos encontrar o desenvolvimento de uma poesia do corpo, acentuando a dimensão física da sua relação com o espaço e com os outros, em poetas como, entre os mais significativos, Luís Miguel Nava ( Películas , 1979), Al Berto (Trabalhos do Olhar , 1982), e o segundo fôlego de alguns poetas de 61, como Gastão Cruz (Órgão de Luzes , 1981), Fiama Hasse Pais Brandão (Obra Breve , 1991) ou Casimiro de Brito ( Labyrinthus , 1981), renovando ou depurando os seus temas e a sua inspiração;

Uma segunda decorre da carga cultural e do acentuar dos traços da Tradição, que torna o poeta um depositário de linguagens e modelos do passado, embora o faça com um excesso que denuncia, quer pelo lado barroco desse excesso (Paulo Teixeira), quer pelo lado irónico-destrutivo (Adília Lopes), o próprio processo criativo, deixando à vista os fios que conduzem à mão que produz o poema.

Mais recentemente, assiste-se ao aparecimento de uma poesia depurada dessas estratégias formais, visando apresentar-se com uma limpeza retórica que vai ao encontro de um objectivo de transparência, como se tentasse que entre o leitor e o poema não existisse sequer esse écran que é a linguagem, com a sua espessura figurativa. É o caso de um Fernando Pinto do Amaral (Acédia , 1990), um dos mais interessantes poetas da linha do novo realismo, de um Luís Filipe Castro Mendes ( A Ilha dos Mortos , 1991), que caminha no sentido de uma recuperação das formas líricas tradicionais, fazendo da sua habituação o veículo para fazer passar a estranheza de uma nova mensagem; de um João Luís Barreto Guimarães (Rua Trinta e Um de Fevereiro , 1991), explorando o soneto - forma nunca esgotada, na poesia portuguesa - até ao ponto de o converter no veículo de uma expressão quase inteiramente discursiva e anti-lírica.

Noutra direcção, temos a voz atenta ao trabalho da linguagem de Manuel Gusmão (Dois Sóis , A Rosa a arquitectura do mundo ), retomando o percurso no sentido de um novo formalismo que não recusa, porém, a contaminação do real, encontrando-se aqui com poetas que retomam a linha visível em António Ramos Rosa de um recuperação da imaginação elementar como Firmino Mendes (Fronteira Animal , 1993) e Carlos Poças Falcão (Três Ritos , 1993), embora nestes a pesquisa formal não atinja o radicalismo de Gusmão.

É um facto que a nova geração de poetas - os que publicam na transição de 80 para 90 - apresentam significativas diferenças em relação à geração precedente. O discurso coloquial, um certo desprezo pela convenção literária e pelos códigos do lirismo, manifestam-se de forma quase programática, retirando ao poema a efusão subjectiva que, seja qual for a posição que se tem para com ela, próxima ou distanciada, surge ainda com acentuada visibilidade na poesia de 70. Por vezes, o poema aproxima-se de uma literalidade que quase se confunde com o prosaísmo; e é sintomático que essa nova sensibilidade se manifeste no aparecimento de um número significativo de mulheres poetas, rompendo com um predomínio quase exclusivo da escrita masculina ao longo de todo o século . E é igualmente curioso verificar que é nessa poesia feminina que certas rupturas se tornam mais evidentes, e que Adília Lopes (O Decote da Dama de Espadas , 1988), Ana Luísa Amaral ( Coisas de partir , 1993), Isabel Cristina Pires (A roda do olhar , 1993), Inês Lourenço (Os solistas , 1994), Rosa Alice Branco (A mão feliz , 1994), Teresa Rita Lopes (Cicatriz , 1996) apontam caminhos que pode m conduzir a desenvolvimentos interessantes das respectivas poéticas.

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Depois da uma fase experimental que se inicia nos anos 60, com Rumor branco (1962) e, sobretudo, A Paixão (1965) de Almeida Faria, de influência faulkneriana, com o aparecimento de uma ficção feminina que se desenvolveria nos romances de Maria Velho da Costa, cujas Casas Pardas (1977) têm presente a leitura de Joyce, de Nuno de Bragança (A Noite e o Riso , 1969, Directa, 1977) com o registo impiedoso e apaixonada da vivência citadina), de Maria Isabel Barreno (O inventário de Ana , 1982), cuja narrativa ensaia um jogo plural da voz disseminada no texto, de Maria Teresa Horta ( Ema , 1984) que trabalha uma escrita fragmentada como a emoção detonadora dos estilhaços narrativos, e com algumas vozes singulares, na sua antecipação, como a dos poetas Herberto Helder (Os Passos em Volta , 1963) e Ana Hatherly (O Mestre , 1963)) que prosseguem interessantes experiências de prosa poética, a ficção atravessa um período de recomposição interior a partir dos anos 70. Se a década de 80 representou o grande momento de afirmação do romance, com José Saramago mas também com a actividade importante de nomes já reconhecidos, como Agustina Bessa Luís, Vergílio Ferreira ou José Cardoso Pires, é nela que se verifica a fractura em relação ao percurso experimental da ficção, dado que as leis do mercado obrigam a uma normalização por vezes redutora da liberdade processual do escritor.

Talvez se deva, por outro lado, à própria evolução do gosto dominante essa evolução. O regresso do romance histórico, que vai desde os modelos mais tradicionais, visíveis em João Aguiar (A voz dos deuses , 1984) ou Fernando Campos (A casa do pó , 1986), até autores mais recentes como Luísa Beltrão, tem aspectos interessantes em Álvaro Guerra (trilogia do Café República , 1982, Café Central , 1984 e Café 25 de Abril , 1987), que revê a história portuguesa deste século, em Mário de Carvalho (A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho , 1983) que subverte as regras do género através de uma sistemática e irónica utilização do anacronismo que coloca os seus textos entre Mark Twain e a ficção científica, e representa uma necessidade de regressar ao passado para interrogar as raízes de um presente em deriva de valores e certezas. Projecto análogo, de resto, se encontra em Mário Cláudio, que pega em figuras da vida portuguesa erudita ( Amadeo , 1984, Guilhermina , 1986, respectivamente sobre o pintor cubista Amadeu de Sousa-Cardoso e a violonista Guilhermina Suggia) ou popular ( Rosa , 1988, sobre a louceira de Barcelos Rosa Ramalho) para construir um tríptico das raízes culturais do Norte, ou em Luísa Costa Gomes que reelabora formas narrativas como o romance epistolar (O pequeno mundo , 1988) ou histórico (A vida de Ramón , 1991) numa direcção pós-moderna, no sentido de superação da fase modernista para, através do uso de formas tradicionais, reencontrar os sentidos da ficção.

Também a sociedade na sua imediata contemporaneidade desperta o interesse de autores como Augusto Abelaira (Outrora, agora , 1996), Urbano Tavares Rodrigues (A hora da incerteza , 1995), Fernanda Botelho (Dramaticamente vestida de negro ), de acordo com um modelo narrativo no quadro do realismo e da psicologia. Na linha de A balada da praia dos cães (1982) de José Cardoso Pires, o Portugal dominado pela Ditadura encontra um princípio de retrato em A cavalo a tinta-da-China (1995), de Baptista-Bastos, ou em Os netos de Norton (1994), de Orlando da Costa.

Outras realidades encontram, entretanto, uma expressão ficcional, como é o caso do mundo insular, na prosa de João de Melo, que desenha o percurso açoriano, condenado à emigração para os Estados Unidos ou para o continente (Gente Feliz com Lágrimas , 1988) ou de Helena Marques (O último cais , 1992), reconstituindo o cenário da Madeira em fundo de viagens marítimas e novela sentimental, para não falar da insularidade feminina que, depois da experiência pioneira e quase isolada de Natália Correia (Mátria , 1968), encontra na Morte da Mãe (1972) de Maria Isabel Barreno um texto quase programático, mas que tem expressões diversas, no plano da escrita, no romance-inquérito de Olga Gonçalves ( A floresta em Bremerhaven , 1975), ou no universo fragmentado até ao limite de uma ruptura com a representação do mundo real em Maria Gabriela Llansol (Um falcão no punho , 1985), que avança decisivamente no sentido do esvaziamento do conceito de género, projectando na escrita as dimensões da ficção e da autobiografia, da prosa e da sua desconstrução, do diário e da reflexão, ao mesmo tempo que rompe criativamente com os modelos tradicionais da sintaxe lógica, quase inventando uma gramática própria.

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O que mudou, então, significativamente desde o pós-25 de Abril até à actualidade? Embora correndo o risco de uma análise demasiado aproximada para poder tirar conclusões fundadas na objectividade (possível) que só a distância temporal permite, vemos definirem-se alguns aspectos interessantes da nossa realidade. O primeiro, é a afirmação de alguns escritores que, embora tenham iniciado a sua actividade em anos anteriores (por vezes, como é o caso de Manuel Gusmão, de Luís Filipe de Castro Mendes ou de João Camilo) só em 90 publicam as suas obras em livro (Manuel Gusmão), ganham a densidade de uma voz pessoal (Luís Filipe Castro Mendes) ou entram, sem que se tenha alterado significativamente a sua linguagem, no ar do tempo (João Camilo). Outros, esperam ainda um reconhecimento valorativo da sua obra, de pouco retorno crítico, talvez pela dificuldade das suas propostas (Manuel da Silva Ramos e Alface, Os Lusíadas , 1977) ou por desatenção (Eduarda Dionísio, Retrato dum amigo enquanto falo , 1979).

De facto, é entre dois extremos que se faz uma parte do percurso desta última década:

Em Paulo Teixeira vemos afirmar-se uma poesia de exclusiva raiz cultural. Assim, em A Região Brilhante (1988), de Homero e Anacreonte a Pasolini e Thom Gunn, são dezenas as referências literárias a partir das quais se constrói cada poema. O excesso reconduz-nos a Borges; embora, na identificação da voz do poeta a cada um desses autores, haja algo de heteronímico que, no entanto, logo se afasta do caminho pessoano porque, finalmente, é a mesma voz - a do poeta - que assume cada uma dessas diferentes condições, como se tivesse de passar pela máscara para se afirmar. Máscara, então, que nada tem a ver com as máscaras humanas de Pessoa, sendo antes a máscara elegante de um Carnaval veneziano; o que, noutros livros irá ser substituído pelo recurso a espaços da viagem, ou a intertextos , que fornecem o mesmo efeito especular de um ser em perpétua deslocação de si.

Em João Camilo (Nunca mais se apagam as imagens , 1996), estamos no extremo oposto. Poeta que vive uma experiência de exílio cultural (não sai de Portugal por razões políticas, como Manuel Alegre), Camilo situa-se na linha de um Jorge de Sena, vivendo esse exílio numa dimensão mais pessoal do que colectiva. Poeta da observação, o seu universo nasce do quotidiano mais banal, como se uma constante solidão precisasse do encontro com o mundo, no que ele tem de mais banal e tranquilizante, desde a mesa de café até à rapariga que se senta em frente, com o gesto habitual de cruzar as pernas. Anti-retórico, até ao instante em que incorre no risco de ser anti-poético, o discurso de João Camilo desenvolve até à exaustão a experiência da simplicidade horaciana que já Pessoa ensaiara com Alberto Caeiro - mas sem ter, por trás, qualquer ambição de uma filosofia das coisas.

Idêntico contraste se verifica em dois outros poetas: Luís Filipe de Castro Mendes que avança no sentido de um neo-classicismo, despido de envolvimentos vanguardistas ou barrocos, transformando o poema no registo de formas passadas (da ode ao soneto e à elegia), regressando à expressão de um sentimento cuja evidência o Modernismo contestara e esgotara, até ao ponto de, por vezes, evocar o ultra-Romantismo com a facilidade aparente dos recursos ao adjectivo e à música imposta pela rima; e Manuel Gusmão, trazendo uma linguagem de violenta subversão formal, ao ponto de parecer fora de um tempo que já não está para rupturas, embora o seu projecto de fazer convergir no poema o discurso do mundo, com as suas contradições e a sua História, o afaste decisivamente do gratuito experimentalismo da poesia que se limita a simples jogos de vocabulário e sintaxe, não se importando com a relação absoluta que existe entre a linguagem e o real.

Verifica-se, acima de tudo, um ecletismo tanto geracional como estético que afasta estes últimos anos de qualquer período anterior - excepto, talvez, o fim do século XIX, o que não deixa de constituir um admirável paralelismo de épocas, por sobre um difuso sentimento de melancolia, lucidamente diagnosticado por Fernando Pinto do Amaral (Na órbita de Saturno , 1982) e por João Barrento (A palavra transversal , 1996).

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Não são visíveis, na literatura contemporânea, manifestações de literatura a que se poderia chamar extra-canónica, no sentido da marginalidade que, nos EUA, caracterizou a geração beat, ou uma literatura anti-sistemática, como a dos angry young men em Inglaterra. Isto não quer dizer que, para além de correntes ou formas dominantes não se encontrem, nas franjas do cânone, sintomas de uma linguagem que procura reflectir as mudanças, epidérmicas ou substanciais, do trânsito social. É o caso de novos autores que se situam em zonas fronteiriças da literatura com o social: Nuno Félix da Costa ( Panfletarium ,1996), em cuja poesia o fôlego discursivo vai ao encontro da vivência urbana, num regresso a Álvaro de Campos confrontado com a era de Sida e da democracia do marketing; José Riço Direitinho (Breviário das más inclinações , 1994), regressando a uma narrativa de ambiente rural, mas transfigurada por uma suspeita de fantástico que corresponde à dissociação crescente entre o campo e a tradição, destruída pelo avançar da cultura da cidade; Pedro Paixão (A noiva judia ,1992), avançando com uma prosa esvaziada de entoação estilística, num tom que se confunde com o próprio enunciado da banalidade factual do quotidiano.

Não é, por isso, uma época de construção e de transformação, esta a que assistimos, mas de reconstrução e de reformulação. Perde-se aqui, sem dúvida, o sentimento de originalidade e de novidade que marcou o período das rupturas, do Modernismo até aos anos 70; mas não se deixa de assistir a uma busca de caminhos que, em relação ao passado, se distinguem pela não conflitualidade do seu pluralismo, mais do que pela afirmação manifesta do colectivo estético. Fala-se, a esse respeito, de pós-modernidade: e encontramos, pelo menos no espaço de uma deriva individual e de um jogo lúdico com o presente, algo que se pode confundir com a demanda formal do aleatório que marca o gosto pós-moderno, nisso identificado com um certo histerismo plasmado do universo exibicionista da moda (no sentido de um esvaziamento da personalidade própria em proveito de uma absorção artificial da euforia de grupo, como é visível na ficção de Miguel Esteves Cardoso (O amor é fodido , 1994), assumindo com talento a função zeliguiana de eco discursivo das primeira geração criada sob a democracia, sem o peso de um passado que importa redimir nem a esperança messiânica num futuro a cada instante adiado. Geração do presente, o seu espaço natural é do espectáculo - o mais efémero possível, desde os diversos palcos da noite lisboeta até à televisão - onde tudo se queima com o brilho fátuo da afirmação histriónica.

É evidente que, neste universo, a crítica sofre a sua primeira grande crise, quer de sentido quer de vocação. Já os anos 70 viram surgir uma forte alteração do seu paradigma, transferido do espaço subjectivo da opinião jornalística, tacitamente aceite pelo público em função da personalidade de quem julgava (sendo João Gaspar Simões o modelo dessa crítica do gosto) para a cena universitária, avançando com uma autoridade disciplinar que, com os seus rígidos critérios de análise, transferiu a personalidade da obra em análise para a justeza ou não dos seus conceitos operatórios (por exemplo, uma crítica de Eduardo Prado Coelho valia mais pelo brilho da sua lógica do que pelo texto que lhe servia de pretexto). Este substituição acabou por impor um novo modelo de gosto, em que era a teoria a exigir que a obra fosse ao seu encontro - invertendo o caminho habitual de que é a obra que vai produzir o seu crítico. Violentas polémicas já do fim do anos 80 puseram em causa autores cujos textos não se conformavam com uma suposta expectativa crítica (Almeida Faria, Lídia Jorge, João de Melo); e o que é de registar, no balanço final, é que tudo isto se passa, de facto, à margem do leitor, que entrou numa cinzenta era da suspeita em que a recepção se faz, praticamente, sem mediações entre obra e leitor.

Talvez seja isso que explique que, no fim da década de 90, a História literária faça o seu regresso. Reformulam-se ou produzem-se dicionários de literatura, desde a Idade Média até ao presente; fazem-se colóquios sobre autores vivos (caso de Vergílio Ferreira, antes da sua morte em 1996, ou de Eugénio de Andrade); e é desse espaço informativo que se colhem, actualmente, os mais seguros referentes para avaliar autores e obras individuais, o que não significa que a crítica não prossiga, em diversas direcções, um trabalho indispensável de limpeza do terreno em jornais ou revistas, acompanhado por um notável recrudescimento do ensaio onde se devem ter em conta nomes como Eduardo Lourenço, José Gil, Boaventura de Sousa Santos, José Mattoso, Fernando Guimarães, entre outros.

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Em nota conclusiva, aquilo a que se assiste neste momento é a uma adaptação da literatura a um período de gigantescas transformações na sociedade portuguesa, muitas delas imperceptíveis, dada a rapidez com que se processa a evolução histórica num país durante décadas fechado no imobilismo e na estreiteza de hábitos provincianos. Se essa adaptação se faz de modo feliz, é algo que só o tempo poderá confirmar; mas a nossa forte tradição, sobretudo no domínio da poesia, e a experiência recente de uma ficção que conseguiu sair de uma época de formas e temas envelhecidos num contexto europeu que, logo a partir do pós-guerra de 1945, entrara na plena modernidade, indica que, uma vez mais, esse processo de renovação se encontra em curso. Em que direcção, ou com que intensidade - são as interrogações que ficam, e a que só o desenvolvimento das tendências já visíveis poderá dar uma resposta.


Nuno Júdice é dono de vasta e importante produção na poesia portuguesa contemporânea, tendo sido premiado por diversas vezes, e de importante produção ensaística a respeito da poesia portuguesa. Reside atualmente em Portugal, onde é Professor da Universidade Nova de Lisboa.


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