CASTRO ALVES


Antônio de Castro Alves, romântico que "mais perto andou da alma nacional e o que mais tem influído em nossa poesia". Nascido em 1847, na fazenda Cabaceiras, a sete léguas da vila de Curralinho, hoje Cidade Castro Alves, morre com 24 anos em 1868.


CREPÚSCULO SERTANEJO

A tarde morria. Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas;
Na esguia atalaia das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas.

A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.

A tarde morria! Mais funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro…
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro.

Sussurro profundo! Marulho gigante!
Tal vez um silêncio!… Tal vez uma orquestra…
Da folha, do cálix, das asas, do inseto…
Do átomo à estrela… do verme - à floresta!…

As garças metiam o bico vermelho
Por baixo das asas - da brisa ao açoite:
E a terra na vaga de azul do infinito
Cobria a cabeça co'as penas da noite!

Somente por vezes, dos jungles das bordas
Das golfas enormes daquela paragem,
Erguia a cabeça, surpreso inquieto,
Coberto de limos - um touro selvagem.

Então as marrecas, em torno boiando,
O vôo encurvavam medrosas, à-toa…
E o tímido bando pedindo outras praias
Passava gritando por sobre a canoa!…
…………………………………………



VOZES D'AFRICA

Deus! ó Deus, onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes,
Embuçando nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?…

Qual Prometeu, tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia,
Infinito galé!…
Por abutre - - me deste o sol ardente!
E a terra de Suez - foi a corrente
Que me ligaste ao pé…

O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino,
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do "simum" dardeja
O teu braço eternal.

Minhas irmãs são belas, são ditosas…
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos "haréns" do Sultão,
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes,
Nas plagas do Indostão.

Por tenda - tem os cimos do Himalaia…
O Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais…
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do deus Brama,
- Pagodes colossais…

A Europa é sempre Europa, a gloriosa!…
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista - corta o mármor de Carrara;
Poetisa - tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã!…

Sempre a láurea lhe cabe no litígio…
Ora uma "c'roa", ora o "barrete frígio"
Enflora-lhe a cerviz.
O Universo após ela - doido amante
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.

Mas e, Senhor!… Eu triste, abandonada,
Em meio dos desertos esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro… bebe o pranto a areia ardente!
Talvez… pra que meu pranto, ó Deus clemente,
Não descubras no chão!…

E nem tenho uma sombra na floresta…
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador…
Quando subo às pirâmides do Egito,
Embalde aos quatro céus chorando grito:
"Abriga-me, Senhor!…"

Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal, que volve
O siroco feroz…
Quando eu passo na Saara amortalhada…
Ai! Dizem: "Lá vai a África embuçada
No seu branco albornoz…"

Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo, onde o cardo apenas medra,
Boceja a Esfinge colossal de pedra,
Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim…
Onde branqueja a caravana errante
E o camelo monótono, arquejante,
Que desce de Efraim…
………………………………………
Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!…
É pois teu peito eterno inexaurível
De vingança e rancor?
E o que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais, que assim me oprime
Teu gládio vingador?!
…………………………………………
Foi depois do "dilúvio"… Um viandante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará…
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cam!… serás meu esposo bem amado…
Serei tua Eloá…"

Desde este dia o vento da desgraça
Por meu cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o "nômada" faminto corta as plagas
No rápido corcel.

Vi a ciência desertar do Egito…
Vi meu povo seguir - Judeu maldito - 
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada,
Pelas garras da Europa arrebatada,
- Amestrado falcão.

Cristo! embalde morreste sobre um monte…
Teu sangue não lavou da minha fronte
A marcha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos - alimária do universo,
Eu - pasto universal…

Hoje em meu sangue a América se nutre:
- Condor, que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão.
Ela juntou-se às mais… irmã traidora!
Qual de José os vis irmãos, outrora,
Venderam seu irmão!
……………………………………………
Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão pra os crimes meus!
Há dois mil anos… eu soluço um grito…
Escuta o brado meu lá no infinito…
Meu Deus! Senhor, meu Deus!
São Paulo, 11 de Junho de 1868.


TRAGÉDIA NO MAR
(O NAVIO NEGREIRO)

1.ª

'Stamos em pelo mar… Doido no espaço
Brinca o luar - dourada borboleta -
E as vagas após ele correm… cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar… Do firmamento 
Os astros saltam como espuma de ouro…
O mar em troca acende as ardentias
- Constelações do líquido tesouro.

'Stamos m pleno mar… Dois infinitos
Ali s' estreitam num abraços insano…
Azuis, dourados, plácidos, sublimes…
Qual dos dois é o céu? qual o oceano?

'Stamos em pleno mar… Abrindo as velas
Ao quente arfar das vibrações marinhas,
Veleiro brigue corre a flor dos mares
Como roçam na vaga as andorinhas…

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?…
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço…

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir desde painel a majestade!…
Em baixo - o mar… em cima - o firmamento…
E no mar e no céu - a imensidade…

OH! Que doce harmonia traz-me a brisa!…
Que música suave ao longe soa!
Meus Deus! Como 'sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando atoa!

Homens do mar! Ó rudes marinheiros
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundo!

Esperai! Esperai! Deixai que eu beba
Esta selvagem livre poesia…
Orquestra - é o mar que ruge pela proa,
O vento que nas cordas assobia…
……………………………………

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?…
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar doido cometa…

Albatroz! Albatroz! Águia do oceano,
Tu, que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviatã do espaço!
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas…

2a. 
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?…
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina…
Resvala o brigue à bolina
Como um golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa a bandeira acena
Às vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor.
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente
- Terra de amor e traição - 
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos do Tasso
Junto às lavas do Vulcão.

O inglês - marinheiro frio
Que ao nascer no mar se achou - 
(Porque a Inglaterra é um navio
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátria glórias,
Lembrando orgulhoso história
De nelson e de aAboukir…
O Francês - predestinado - 
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir…

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga iônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens, que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu…
…Nautas de todas as plagas!
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu…

3a.
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais, inda mais… não pode o olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador…
Porém que vejo ai… que quadro de amarguras!
Que canto funeral!… que tétricas figuras!
Que cena infame e vil! Meu Deus! Meu Deus! que horror!

4a.
Era um sonho dantesco… O tombadilho,
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros… estalar do açoite…
Legiões de homens negros como a noite
Horrendos a dançar…

Negras mulheres suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães.
Outras, moças… mas nuas, espantadas
No turbilhão de espectros arrastadas
Em ânsia e mágua vãs.

E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serente
Faz doidas espirais…
Se o velho arqueja… se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala
E voam mais e mais…

Presa nos elos de uma só cadeia
A multidão faminta cambaleia
E chora e dança ali…
Um de raiva delira, outro enlouquece…
Outro, que de martírio embrutece,
Cantando geme e ri…

No entando o capitão manda a manobra…
E após, fitando o céu que se desdobra.
Tão puro sobre o mar,
Diz, do fumo sobre o mar,
Diz, do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar."

E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doidas espirais!…
Qual num sonho dantesco as sombras voam…
Gritos, ais, maldições, preces ressoam
E ri-se Satanás!…

5.ª
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus…
Ó mar! Por que não apagas
Coa esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?…
Astros! noite! tempestade!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Que são estes desgraçados,
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?…
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dizei-o tu, severa musa!
Musa libérrima, audaz!

São filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz,
Onde voa em campo aberto 
A tribo dos homens nus…
São os guerreiro ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão…
Homens simples, fortes, bravos…
Hoje míseros escravos
Sem luz, sem ar, sem razão…

São mulheres desgraçadas…
Como o Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe… bem longe vêm,
Trazendo com tíbios passos
Filhos e algemas nos braços,
N'alma - lágrimas e fel.
Como Agar sofrendo tanto
Que nem o leite do pranto
Têm que dar para Ismael…

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram - crianças lindas,
Viveram - moças gentis…
Passa um dia a caravana
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus…
Adeus ó choça do monte!…
Adeus! Palmeiras da fonte!…
Adeus! amores… adeus!…

Depois o areal extenso…
Depois o oceano de pó…
Depois… no horizonte imenso
Desertos… desertos só…
E a fome, o cansaço, a sede…
Ai! quanto infeliz que cede
E cai pra não mais s'erguer!…
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido a toa
Sob a tenda da amplidão…
Hoje o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste porjaguar…
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar…

Ontem plena liberdade…
A vontade por poder…
Hoje… cúm'lo de m,aldade!
Nem são livres pra… morrer!…
Prende-os a mesma corrente
- Férrea, lúgubre serpente - 
Nas roscas da escravidão…
E assim roubados à morte
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite… Irrisão!…

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós Senhor Deus!
Se eu delírio… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus
Ó mar! Por que não apagas
Coa esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?…
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!…


6.ª
Existe um povo que a bandeira empresta
Pra cobrir tanta infâmia e covardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de Bacante fria!…
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta
Que impudente na gávea tripudia?!…
Silêncio!… Musa! Chora, chora tanto,
Que o pavilhão se lave no teu pranto…

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança…
Tu, que da liberdade após a guerra
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha
Que servires a um povo de mortalha!…

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo 
O trilho que Colombo abriu na vaga
Como um íris no pélago profundo!…
…Mas é infâmia demais… Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo.
Andrada! Arranca esse pendão dos ares!…
Colombo! Fecha a porta de teus mares!…

São Paulo, 18 de Abril de 1868.
  

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