PREFÁCIO AOS POEMAS

 ESTAS ninharias são coligidas e publicadas de novo, principalmente a-fim-de redimi-las dos muitos aperfeiçoamentos a que foram expostas, enquanto faziam "excursões pela imprensa". Sinto-me naturalmente desejoso de que aquilo que escrevi circule tal como foi escrito, se é que deve circular. Em defesa de meu próprio gosto, contudo, cabe-me dizer que penso nada haver neste volume de muito valor para o público, nem de muito crédito para mim.
Acontecimentos independentes de minha vontade impediram-me de realizar, em qualquer ocasião, um esforço sério naquilo que, sob mais felizes circunstâncias, teria sido a carreira de minha escola. Para mim, a poesia não tem sido uma finalidade, mas uma paixão; e as paixões deveriam merecer reverência; não devem, nem podem, ser excitadas á vontade, com vistas às mesquinhas compensações, ou aos louvores, ainda mais mesquinhos, da humanidade. (1845) E.A.P.

	O CORVO

			Tradução Oscar Mendes e Milton Amado


Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,
a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,
e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
"É alguém"- fiquei a murmurar - "que bate à porta, devagar;
		sim, é só isso e nada mais".

Ah claramente eu relembro! Era no gélido dezembro
e o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda
algum remédio à amargura, infinda, atroz saudade de Lenora
- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
		e nome aqui já não tem mais.

A sede rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia
e a sossegá-lo eu repetia: "É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo
		É apenas isso e nada mais".

Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
"Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;
mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
assim de leve, em hora morta". Escancarei então a porta:
		- escuridão, e nada mais.

Sondei a noite erma e tranqüila, olhei-a fundo, a perquirí-la,
sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo
só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: "Lenora!"
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: "Lenora!"
		Depois, silêncio e nada mais.

Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, derepente,
mas forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
"É na janela"- penso então. - "Por que agitar-me de aflição?
Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento, 
o vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.
		É o vento só e nada mais".

Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
- é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto,
adeja e pousa sobre o busto - uma escultura de Minerva,
bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
		empoleirado e nada mais.

Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,
desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
"Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular"- então lhe digo
"não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo,
qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!"
		E o Corvo disse: "Nunca mais."

Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,
misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;
pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta
		e que se chame "Nunca mais".

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,
enquanto a mágoa me envenena: "Amigos… sempre vão-se embora".
Como a esperança, ao vir a aurora, ELE também há de ir-se embora."
		E disse o Corvo: "Nunca mais."

Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que perplexo,
julgo: "É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
e a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo
de seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: - o ritornelo 
		de "Nunca, nunca, nunca mais".

Como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,
girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais
e, mergulhado no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,
visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,
com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo
		grasnava sempre: "Nunca mais".

Sentindo da ave, incandescente, olhar queimar-me fixamente,
eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.
Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada
dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,
dessa poltrona em que ELA, ausente, à luz que cai suavemente,
		já não repousa, ah! nunca mais…

O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso
ali descessem a esparzir turibulários celestiais.
"Mísero!"- exclamo - "Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus,
esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora.
Sorve o nepentes. Sorve -, agora! Esquece, olvida essa Lenora!"
		E o corvo disse: "Nunca mais".

"Profeta!" - brado - "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal
que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
de algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita
mansão de horror, que o horror habita, imploro, diz-mo em verdade:
EXISTE um bálsamo em Galaad! Imploro! Diz-mo, em verdade!"
		E o Corvo disse "Nunca mais."

"Profeta!" - exclamo - "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,
- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!"
		E o Corvo disse: "Nunca mais!"

"Seja isso a nossa despedida!"- ergo-me e grito, alma incendiada. -
"Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta!
Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!"
		E o Corvo disse: "Nunca mais!"

E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,
		não há de erguer-se, aí! Nunca mais!

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