A importância da memória nas ciências cognitivas é uma
preocupação humana que remonta a vários séculos no passado. Para os gregos,
Mnemósine (de onde vem as palavras "mnemônico", "mnemotécnica",
etc.), deusa da memória, é a mãe das nove musas que presidem o conhecimento.
Nessa época e no Renascimento, a memória era considerada como receptáculo de
todo conhecimento. Mais tarde, no entanto, foi substituída pela primazia do
raciocínio. Veja-se o que Descartes diz a respeito em suas críticas a Lambert
Schenckel : "Percorrendo as fecundas tolices de Lambert Schenckel, pensei
que me seria fácil abarcar com a imaginação tudo o que descobri: a saber, por
intermédio de uma redução das coisas a causas, e reduzidas todas esta
finalmente numa única, fica claro que não há nenhuma necessidade de memória
para todas as ciências. Pois quem compreender as causas reconstituirá
facilmente em seu cérebro, pela impressão da causa, fantasmas totalmente
apagados. Essa é a verdadeira arte da memória, totalmente oposta à arte desse
imbecil: não que sua arte não tenha efeito, mas ela invade todo o papel, que
poderia ser melhor empregado, e não se estabelece numa ordem correta. (...)
Ele, no entanto, omite exatamente, não sei se propositalmente, qual é a chave
de todo o mistério." Essa crítica, em parte fundamentada, concede
primazia ao raciocínio em detrimento da memória. Será preciso saltar séculos
para reencontrar uma concepção que valorize a memória, graças a influência
de uma máquina: o computador.[LIE 97]
Pode-se definir a memória humana como a conservação e
evocação da informação adquirida através da experiência. Tão grande é o
papel da memória na cognição humana que se pode entender o processo de
aprendizado como "aquisição de memórias". Aprendem-se memórias. A
vida é um contínuo aprendizado : uma infinita construção de memórias.
Definir experiência pode se mostrar um pouco mais difícil. Pode ser a
percepção de algo externo ao organismo (uma ave que passa, o latido de um cão
), um conjunto de atividades e conceitos (a medicina). Pode ser uma dor ou
sensação em alguma parte do corpo. Pode ser uma súbita associação de
idéias (como quando Arquimedes gritou "Heureca!") ou uma associação
lenta (como quando alguém se dá conta, passados anos, que seu sócio o vem
enganando). Pode ser algo que alegra ou entristece ou não cause emoção
alguma. Pode ser o rosto da mulher amada ou um número telefônico. [IZQ 92]
Os seres humanos são dotados de sentimentos e emoções que
interferem nos processos cognitivos e por conseqüência nos processos de
memorização. Segundo Ivan Izquierdo, o estado de ânimo (também definido por
António Damásio como uma espécie de "sentimento de fundo" ) e
nível de consciência "modulam" a formação e a evocação de
memórias. Às vezes, o profundo sentimento de aversão gerado por determinadas
memórias chega a impedir sua evocação.
Outro ponto abordado por Ivan Izquierdo, que também merece atenção é o
processo de abstração envolvido no conceito de memória. A realidade a que se
é submetido é uma coisa, a memória é outra e a evocação desta realidade
memorizada é ainda outra coisa. A memória não ocupa o mesmo espaço e nem
consiste no mesmo que os olhos da pessoa amada ou o vento que sopra em nos
cabelos. A evocação destes olhos e deste vento não cria olhos nem vento. A
memória não é um retrato fiel da realidade, existe um processo de tradução
dessa realidade para sua representação na memória e entre esta
representação e o que se evoca. Em toda tradução se perde algo, quem teve a
oportunidade de ler um poema no seu idioma original e depois em outro idioma
sabe muito bem disto. A memória também é responsável pela noção de
continuidade, de tempo. Graças a ela alguém se recorda de um passado e se dá
ao luxo de projetar um futuro. O que não se recorda, nem de forma inconsciente
ou subliminal não influi no comportamento presente nem permite formular
previsões; não é parte do passado, não é nada.[IZQ 92]