Primeiros Encontros de Ficção Científica em Cascais

por Gerson Lodi-Ribeiro

Embora a convenção portuguesa de ficção científica só fosse começar na noite da quarta-feira, cheguei a Lisboa na segunda à tarde, depois de uma escala de seis horas em Londres. No portão de desembarque do aeroporto me esperavam não apenas o João Barreiros, mas também os patrícios Luiz Marcos da Fonseca e Carlos André Mores. Cruzando um rush pesado que nada ficou a dever aos do Rio ou São Paulo, Barreiros nos conduziu até a aprazível Vila de Cascais, cerca de 40 Km distante da capital.

Para os poucos que ainda não ouviram falar em João Barreiros, trata-se do mais proeminente autor português de FC da atualidade (e sem dúvida o melhor conhecido do público brasileiro), além de crítico severo do gênero e antigo coordenador das coleções de FC&F das editoras Gradiva e Clássica, que tão boa impressão causaram entre os aficionados de ambas as margens do Atlântico. Pessoalmente, Barreiros revelou ser um sujeito afável e simpático, dotado de inteligência ágil, temperamento agitado e fino senso de humor. Foi uma pena não ter havido oportunidade para conversarmos melhor, em virtude da correria em que o envolveu naqueles dias, como organizador dos Primeiros Encontros.

Uma vez em Cascais, Barreiros nos levou à Secretaria de Cultura da Câmara Municipal, onde tivemos o prazer de conhecer Maria Augusta Geada, André Vilares Morgado e Paula Barreto, funcionários da câmara que participaram ativamente da organização do congresso, e em muito contribuíram para o sucesso dos Encontros.

Eu e Carlos André Mores aproveitamos o dia livre na terça-feira para conhecer alguns sítios históricos da cidade vizinha de Cintra, sobretudo o Palácio Nacional, o Castelo do Mouro e o Palácio da Pena. À noite fomos em carro alugado ao Cascaishopping comprar livros e alguns decalitros do precioso vinho do Porto...

O Congresso em si começou na quarta-feira.

A primeira atividade foi uma oficina literária realizada no Museu do Mar e coordenada pelos autores João Barreiros, Luís Filipe Silva e Daniel Tércio. Os três me convidaram para integrar essa equipe coordenadora. O exercício consistiu em criar um universo ficcional onde cada um dos quatro grupos (a presença foi de cerca de trinta jovens, em sua maioria alunos de literatura da Maria de Menezes, uma autora portuguesa de fantasia), sob a orientação direta de um coordenador, seria responsável pelo desenvolvimento do background relativo a uma espécie racional. Pelo desalento que a garotada demonstrou quando fomos obrigados a encerrar a atividade, julgo que a oficina foi um sucesso!

A abertura oficial dos Encontros se deu na noite de quarta-feira, no auditório da Câmara Municipal de Cascais. Entre os convidados ilustres, estiveram presentes Brian Aldiss e Joan D. Vinge. Pelos anfitriões, além do presidente da Câmara (num sistema parlamentarista, como o de Portugal, esse cargo equivale mais ou menos ao de prefeito), falaram João Barreiros e o cineasta António de Macedo. Estavam inaugurados os Primeiros Encontros de Ficção Científica em Cascais, cujo subtítulo era "Na Periferia do Império".

Durante essa sessão inaugural, travei contato com a jornalista e escritora Sacha Gonçalves, que viria a se tornar a melhor amiga da nossa pequena trupe brasileira em Cascais.

Nesse primeiro dia também começou a funcionar a Feira de Livros de FC. Havia duas grandes barracas de lona. A primeira vendia os livros portugueses, incluindo, é óbvio, os títulos das coleções Argonauta, Europa-América e Caminho. A segunda barraca era a dos pockets, hardcovers e revistas importadas. Do ponto de vista do fã brasileiro, os livros e revistas vendidos na Feira eram assustadoramente baratos, embora os portugueses reclamassem dos preços altos... Nem é preciso dizer que foi necessário adquirir outra mala para trazer o excesso de bagagem literária de volta ao Brasil!

Na manhã de quinta-feira começou a parte mais importante dos Encontros: o ciclo de palestras e comunicações apresentadas no Teatro Gil Vicente.

Carlos Mores, Luiz Marcos da Fonseca e eu aproveitamos uma demora no início dos trabalhos para travar contato com os fãs portugueses Álvaro Holstein e José Manuel de Morais. Para quem não sabe, Morais foi o notório editor da antologia luso-brasileira, O Atlântico Tem Duas Margens. Ambos os fãs portugueses mostraram-se amargos a seu modo. Enquanto Holstein não perdia oportunidades para criticar a organização dos Encontros, Morais preferia descer o malho na situação econômica e política do país. Não obstante essa relativa amargura, em nenhum momento deixaram de nos tratar com a extrema hospitalidade que, aliás, parece ser uma constante na atitude dos portugueses em relação aos brasileiros.

A primeira palestra foi justo a ministrada por Morais sobre dois precursores portugueses no gênero da FC&F. Finda sua participação brilhante, o etéreo e volátil dublê de editor fantasma e advogado evolou-se misteriosamente do Gil Vicente, não sendo jamais encontrado até o término do congresso.

Ainda antes do almoço dessa quinta-feira, o físico Carlos Fiolhais ministrou uma palestra interessantíssima, "Física & Ficção Científica", onde abordou sobretudo a questão da plausibilidade científica nos argumentos do gênero, não se furtando a comentar mesmo os enredos de Jornada nas Estrelas.

Depois do almoço deu-se a mesa-redonda que reuniu, de um lado a autora norte-americana Joan D. Vinge, e do outro um punhado de escritoras feministas portuguesas. A oportunidade do surgimento de um debate amplo e de alto nível, proporcionada pelo tema dessa mesa-redonda, "O Fantástico e o Feminino", foi desperdiçada pela total falta de preparo da parte das portuguesas, que pareciam ignorar tanto o papel da temática feminista na FC&F americana recente, quanto a importância dessa temática na obra de Joan Vinge.

Após essa mesa-redonda frustrante, David Pringle, o editor do magazine inglês Interzone, ministrou uma palestra que acabou revelando um lado polêmico na sua defesa apaixonada da FC como o único gênero visionário, capaz de expandir os horizontes intelectuais do leitor, e sua insistência em considerar o Horror e a Fantasia como expressões menores.

À noite deu-se o lançamento pela Caminho, do maciço romance Terrarium, escrito a quatro mãos por João Barreiros e Luís Filipe Silva. O título recém-lançado recebeu boa cobertura da imprensa. Comentava-se à boca pequena que o livro tiraria a Caminho do buraco ou a enterraria em definitivo. Na primeira hipótese, já estariam sendo cogitadas as continuações Aquarium e Solarium, para completar a trilogia.

Durante o jantar Carlos André Mores realizou um assédio literário mal sucedido contra a Joan D. Vinge, que se recusou a ceder material para o fanzine Hipertexto.

Após o jantar fomos convidados pela Câmara a assistir um balé erótico light no Cassino de Estoril. Tudo muito artístico, e o champanhe razoavelmente potável.

A manhã de sexta-feira foi marcada por duas decepções. A primeira foi a ausência de Jean-Pierre Moumon, editor da revista francesa de FC Antàres. Moumon não compareceu devido a uma greve nos transportes ferroviários franceses. Uma pena, pois mantendo correspondência com ele há anos, eu sonhava em conhecê-lo pessoalmente. A segunda decepção foi a perda da palestra "H.G. Wells' The Time Machine vs. Stephen Baxter's Time Ships", remanejada para a parte da manhã enquanto ainda constava à tarde na programação original.

Regressando do almoço, Carlos Mores empreendeu nova cantada literária. A vítima escolhida, Joe Haldeman, mostrou-se muito mais afável do que Joan Vinge, cedendo prontamente o conto vencedor do Hugo, "None So Blind". Graças à ousadia editorial de Mores e à tradução caprichada de Fábio Fernandes, o leitor brasileiro deverá ter breve à disposição um dos contos mais badalados dos últimos tempos. Vamos conferir!

Na noite dessa sexta-feira deu-se o lançamento da antologia bilíngüe comemorativa dos Encontros, Inconseqüências na Periferia do Império. Entre os trabalhos, incluem-se contos de João Barreiros, Daniel Tércio, Luís Filipe Silva, Maria de Menezes e José Manuel de Morais.

A palestra de Brian Aldiss fechou com chave de ouro esse terceiro dia de congresso. Aldiss ilustrou sua fala com slides das capas das primeiras edições dos seus livros.

Sábado, penúltimo dia dos Encontros, foi para mim o auge do congresso, pois foi nessa tarde que apresentei a minha palestra, "Histórias Alternativas". Como todas as outras participações, minha fala sofreu tradução simultânea para o inglês e o espanhol.

A primeira palestra da tarde, "Como Assassinar uma Mulher Jovem e Bela", sobre a obra de Edgar Allan Poe, não chegou a despertar a platéia de sua sesta vespertina. A segunda, muito menos. A minha foi a terceira. Ao contrário de meus antecessores, procurei falar ao invés de ler o texto que tinha a minha frente. Esta estratégia heterodoxa resultou num surpreendente êxito em manter os ouvintes despertos. É claro, a minha voz desafinada também ajudou um pouco...

Atendendo a um pedido dos organizadores, preparei uma palestra com uma hora e meia de duração. Uma mudança drástica de planos, minutos antes da primeira palestra da tarde, reduziu a duração da minha fala para 25 minutos. Mas, se o estudo da história da colonização portuguesa mundo afora nos ensina algo é que, não obstante os Tratados de Tordesilhas da vida, com um pouco de jeitinho brasileiro (aliás, esta parece ser uma virtude que herdamos aos portugueses...), sempre é possível se empurrar certos limites com a barriga, devagarzinho, sem brigar com ninguém. Pois bem, para resumir, minha palestra durou 54 minutos cravados, fora os vinte e poucos minutos, dedicados a cerca de uma dúzia de perguntas e respostas. Pela reação da platéia, creio que o assunto despertou bastante interesse. Após o término dessa participação, pela primeira vez na vida senti-me como um autor famoso: cercado pelos fãs, concedi dezenas de autógrafos e dedicatórias no meu conto publicado na antologia luso-brasileira organizada pelo Morais.

Depois das três palestras vespertinas, Joan D. Vinge apresentou fez a sua participação formal. Uma fala curta e sem atrativos especiais. O mesmo não se pode dizer, contudo, de "Methods of Madness", a palestra de um outro convidado de honra, Joe Haldeman. O autor de Forever War empolgou a platéia e os escritores presentes ao descrever o seu processo de criação literária. Falou também sobre a crítica literária em termos gerais, além de estabelecer uma relação entre o alcoolismo e a atividade literária dos autores norte-americanos. Ao final da participação de Haldeman houve um consenso entre os ouvintes de que aquela havia sido a culminância dos Primeiros Encontros.

Encerrado o expediente formal do congresso no sábado, os organizadores nos convidaram para um buffet num clube em Estoril. Durante esse evento, eu, Carlos Mores e Luiz Marcos da Fonseca ("os três mosqueteiros brasileiros", segundo os amigos portugueses) fomos apresentados à fotógrafa da Locus, o que nos valeu uma foto junto com a autora portuguesa Maria de Menezes na edição de janeiro. Minutos depois, a fotógrafa falou a Charles N. Brown da nossa presença ali, e o editor nos chamou a sua mesa para um bate-papo rápido sobre o Brasil em geral e a FC brasileira em particular. Segundo ele, a Locus teria cerca de uma dúzia de assinantes no Brasil.

Na manhã do domingo, último dia dos Encontros, o mesmo Charles Brown ministraria a palestra "The Importance of Science Fiction". Uma participação interessante que se tornou antológica mais pelas perguntas do que pela fala do palestrante em si. David Pringle, editor da Interzone, indagou com aquela impertinência sutil, tipicamente inglesa, se Brown de fato considerava a Locus um magazine internacional de FC. Mas a grande pergunta, que acabou ficando sem resposta, foi a de Brian Aldiss sobre o pretenso envolvimento de Charles Brown com a Cientologia de L. Ron Hubbard.

O Gran Finale dos Encontros foi o último jantar, mais uma vez por conta dos organizadores. O clima nostálgico de despedidas tornou-se (muito!) mais cálido, graças a duas garrafas de vodca ucraniana que o representante desse país fez passar de cálice em cálice pelas mesas, como uma espécie de cachimbo da paz. Segundo se dizia, além do seu teor alcoólico estratosférico, a tal beberagem era fermentada com pimenta.

Joe Haldeman, que ao longo de todos os almoços/lanches/jantares já se revelara um copo excelente, foi induzido a ingerir aquele extrato de bafo de dragão como se fosse água. Para resumir uma longa história, ele acabou aterrissando em nossa mesa e se engajando num animado papo literário conosco que deve ter durado horas, embora na época parecessem instantes. Dizem que os assuntos foram interessantíssimos. Mas o fato é que, tendo provado (e repetido...) da vodca e de outras coisinhas mais, o meu próprio teor alcoólico já estava bastante elevado. Não vou dizer que não me lembro de nada, mas apenas que não me considero um testemunho confiável para transcrever aqui o que foi dito naquela noite memorável.

 

 

Gerson Lodi-Ribeiro,

Janeiro 1997.

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