A Ética da Traição
O lado brasileiro do posto fronteiriço de Itararé foi
provavelmente palco de uma atividade frenética.
Os agentes do Despacho General de Información infiltrados
na Polícia Federal brasileira disseminaram a notícia de minha
tentativa de evasão através daquela cidade. Como resultado,
centenas de policiais de elite, trajados à paisana e
recém-chegados de seus comandos regionais, devem estar até
agora vasculhando as ruas, estações ferroviárias, terminais de
turboônibus e hotéis daquele município. O treinamento que lhes
fora ministrado na Academia do Rio de Janeiro e o aparato
técnico de que dispunham lhes garantia que minha fuga teria uma
probabilidade de êxito muito baixa.
Teria sido assim, é claro, caso tivesse optado por aquela rota
de fuga.
Orientado pelo próprio cônsul da República Guarany em São
Paulo, e munido com a documentação falsa e o disfarce que ele
graciosamente mandou confeccionar, consegui embarcar incógnito
na barcaza nuclear que fazia o transporte normal de carga
e passageiros pelo trecho navegável do Paranapanema.
A Espírito Santo aproveitava a correnteza favorável,
vogando lentamente para oeste, com as turbinas gêmeas girando
bem abaixo da potência nominal. A embarcação fora construída
há cerca de quarenta anos, por encomenda do governo brasileiro,
num estaleiro paraguayo de Montivideo. Tecnologicamente
obsoleta, embora ainda operativa e confiável.
Debruçado na amurada, observei a margem esquerda do rio. Um
consórcio paraguayo-brasileiro havia retificado aquela seção
do leito do Paranapanema no início do século, ampliando o
trecho navegável. Como limite natural entre os dois países mais
desenvolvidos do hemisfério sul, o rio possuía uma importância
econômica e estratégica considerável. Através dele se fazia o
escoamento de boa parte da produção cerealífera do norte do
Paraguay.
À margem direita, meu país, onde em muito breve eu seria
considerado o traidor mais pusilânime desde D. Pedro II.
Entristecido, sorri diante daquele paralelo. Ele tampouco tivera
outra opção.
Lembrei-me daquela pintura a óleo no alto da escadaria da
embaixada guarany, na Quinta da Boa Vista. Retratava um velho
alquebrado, cuja barba alva e bem cuidada contrastava com o olhar
amargurado e o ar de quem se sentia extremamente cansado. Ao lado
do último imperador brasileiro havia um homem de meia-idade
portando as insígnias de marechal da Grande República
sobre um rude uniforme de campanha. Moreno e não muito alto, ele
estava apenas um pouco curvado sobre uma mesa trabalhada e de
aspecto imponente, para assinar a declaração de paz. A cena
real se dera na própria embaixada; então palácio imperial.
Voltei meu olhar para bombordo. A partir daquela margem se
estendiam os solos da nação mais poderosa da Terra. O país no
qual eu residira durante meus anos de doutorado e pós-doutorado.
A liberdade.
Traidor... Talvez pudesse realmente ser assim designado. Afinal,
por um ato de vontade, evitei que meu país se transformasse na
maior potência da América do Sul. Em minha defesa, não alego
ignorância ou desconhecimento. Estive em pleno domínio de
minhas ações quando destruí definitivamente as esperanças do
Secretário da Guerra, e dos poucos pesquisadores que comungavam
de seus ideais de grandeza.
Nem ao menos posso afirmar sentir algum remorso. Apenas amargura
pela certeza de que, amanhã ou depois, meu nome será usado como
sinônimo de traição. Será que meus compatriotas saberão um
dia que me devem até o futuro de seus filhos e netos por nascer?
Vinte e quatro horas, mais ou menos, para a ruína completa da
minha reputação, como homem de ciência e como ser humano.
Colegas e amigos, parentes e entes queridos, todos se
envergonharão de terem comigo convivido.
E, no entanto, eu faria tudo novamente. Uma, dez, um milhão de
vezes.
Não houve como proceder de maneira diversa. Em xadrez, chamamos
isso de "movimento forçado".
Em nome de um patriotismo insano, aquele louco propusera um outro
tipo de movimento forçado. Um absurdo que, se levado avante,
destruiria a civilização, modificando-a para além de qualquer
possibilidade de reconhecimento.
Havíamos observado os hologramas das alterações. Um mundo
conturbado e injusto. Não a nossa velha Terra, mas um planeta
sob muitos aspectos mais alienígena que aquele Marte que
paraguayos e alemanos estão começando a colonizar. Uma Terra
diferente; habitada por pessoas fisicamente idênticas a nós,
mas com pensamentos e atos estranhamente irracionais. Um planeta
repleto de conflitos, intolerâncias e desigualdades que levavam
centenas de milhões à miséria e à inanição.
Mesmo conhecendo esse quadro, o Secretário da Guerra pretendeu
tornar a nossa Terra naquele mundo.
Movimento forçado! Tive vontade de gargalhar. Minha fuga
desesperada, deixando minha terra natal para trás, e nela os
amigos e tudo o quanto amei... isto sim é um movimento forçado!
Era o tipo de pensamento que me assolava o espírito por aqueles
dias. Procurei consolo no argumento (irrefutável?) que era
preferível a infelicidade à inexistência. Sempre nutrira
dúvidas de caráter filosófico a esse respeito. Metafísica
repentinamente transformada em pragmatismo: talvez tenha sido
isso que forçara minha mão, quando finalmente adquiri coragem
para instruir o programa coordenador do Projeto para emitir os
sessenta e poucos quilogramas de água clorada.
* * *
A maioria da população brasileira sente, bem lá no âmago
de sua alma, uma ardência dolorosa, causada pela presença de
uma mistura fumegante, composta de partes iguais de ódio e
inveja pela República Guarany. Afinal, ela havia vencido a
guerra contra a Tríplice Aliança e fragmentado o Império
Brasileiro em duas nações soberanas distintas, além de um
protetorado bem maior que o nosso território remanescente. Essa
vitória possibilitou a continuação da revolução industrial
paraguaya, e a ascensão desse país como a maior potência da
América, já à época da Grande Guerra, no início do século.
Sempre julguei que, se fosse necessário atribuir alguma culpa,
que não a nós mesmos, pelos malogros militares do Império,
esta deveria recair sobre o capitalismo britânico. A Guerra da
Tríplice Aliança foi fomentada - como é atualmente de
conhecimento público - pelos ingleses, temerosos da
concorrência potencial representada por um Paraguay militarmente
forte, politicamente voluntarioso, economicamente independente,
industrializado e começando a ensaiar um sistema econômico que
já era socialista em sua essência.
Um de meus bisavôs pelo lado materno, filho de ex-escravos
brasileiros radicados na República Guarany, foi oficial do
exército paraguayo. Serviu durante alguns anos nas tropas de
ocupação que estiveram aquarteladas em várias das principais
cidades brasileiras, desde a Queda do Império até a primeira
década do nosso século. Costumava passar seus períodos de
licença na cidade do Rio de Janeiro. Numa dessas ocasiões,
conheceu uma jovem carioca de uma família de negros já
alforriados antes da Guerra e cujas atividades agro-comerciais
prosperaram bastante com a Abolição em 1876 - minha bisavó
Lucinda.
Com tais antecedentes, é compreensível que não estivesse
sujeito à onda de preconceitos antiguaranys que são inculcados
ainda hoje nas mentes dos jovens brasileiros.
* * *
A Espírito Santo levava pouca carga em sua viagem para
noroeste. Algumas toneladas em sacas de café paulista de alta
qualidade, bastante apreciado pelos cidadãos da República
Guarany. Muito pouco em comparação com os cereais e
eletrodomésticos de procedência paraguaya. Isso, para não
mencionar as micropastillas de silício de penúltima
geração já liberadas pelo Despacho de la Ciencia,
avidamente importadas pelas indústrias montadoras de supermicros
paulistas e mineiras.
O mesmo não se podia dizer quanto à lotação de passageiros.
Mais de uma centena de turistas regressava a seu país de origem,
juntos com cerca de uma dúzia de executivos das filiais
brasileiras das multinacionais estatais paraguayas. Para aliviar
a tensão que me oprimia o espírito durante aquelas primeiras
horas após o embarque, procurei me distrair tentando adivinhar,
pela atitude desses executivos, quais deles estavam retornando ao
Paraguay para as férias merecidas, e quais regressavam às
matrizes para se submeterem a ciclos de atualização
hipnopedagógica.
Havia também cerca de duas dezenas de brasileiros a bordo, em
sua maioria turistas abastados. E um jovem casal alemán em
lua-de-mel.
Contudo, dois de meus compatriotas não conseguiriam se passar
facilmente por turistas, mesmo que se esforçassem para tal. Eram
altos e bem musculados. Ambos na casa dos trinta e com cortes de
cabelo em estilo tipicamente militar. O branco era maior e mais
corpulento, com mais de dois metros de altura. O mulato, quase
tão escuro quanto eu, possuía feições aquilinas, usava
óculos espelhados e agia como se fosse mais graduado.
Estavam invariavelmente juntos. Mantinham-se sempre próximos do
pequeno industrial paulista que eu fingia ser. Coincidência ou
não, a porta do camarote deles dava para a do meu.
Verifiquei com o comandante da barcaza, um velho oficial
reformado da Marinha Paraguaya, que eu e os dois nos sentaríamos
à mesma mesa durante o almoço. Teríamos ainda a companhia do
casalzinho alemán e, felizmente, do meu contato.
O mayor Hernandez era um oficial do D.G.I. Estava
travestido como executivo da Compañia de Petróleo del
Paraguay, a poderosa multinacional que extraia óleo cru
tanto em território venezuelano, quanto nas areias da península
arábica, nas selvas da Indonésia, na província pernambucana de
Recôncavo ou, mais recentemente, na plataforma continental
brasileira da Bacia de Campos.
O falso executivo era exatamente o oposto daquilo que imaginei
como o arquétipo de um agente secreto. Franzino, de meia-idade e
com um ar agitado; branco, mas muito bronzeado, cabelos lisos e
escuros, e com um bigodinho que considerei de imediato como sendo
no mínimo ridículo.
Mal tive oportunidade de trocar meia dúzia de palavras com meu
contato, quando esse percebeu a presença dos federais
brasileiros e me alertou para a conveniência de nos mantermos
afastados, a fim de não despertarmos suspeitas. De qualquer
forma, era reconfortante saber que havia um oficial, treinado no
melhor e mais forte serviço secreto do mundo, designado para a
missão de me fazer chegar incólume em território paraguayo.
Diante da afobação enérgica de Hernandez, não houve tempo
para lhe relatar o comportamento estranho do casal de alemanos.
Particularmente, a atitude de Inga Hoffmann.
Primeiro, para um casal alemán em lua-de-mel, passavam demasiado
tempo fora do camarote nupcial, reservado especialmente para
eles. Lembrando-me do quão puritana é a moral alemana, concluí
que dificilmente teria havido muitas oportunidades para
intimidades sexuais, enquanto solteiros. Ao contrário do que
ocorre entre nós, ouvi dizer não ser um hábito arraigado dos
alemanos fazer amor antes da noite de núpcias.
Segundo, aquela mulher loura e bem proporcionada vinha me
focalizando com a câmera holográfica de um modo sub-reptício,
julgando provavelmente que eu não percebia. Uma jovem alemana
bela e saudável, em viagem de núpcias no continente
sul-americano e com uma câmera na mão, deveria se preocupar em
filmar o marido ou, ao menos, a fauna e a flora exuberantes da
região. Jamais um estranho. Afinal, mesmo com o disfarce, não
me considerava tão atraente assim. Principalmente, levando em
conta os ideais de beleza física advogados pela cultura alemana.
A não ser que o jovem casal não fosse exatamente o que
aparentava.
Senti que estava começando a me tornar paranóico.
Pareceu-me provável que ela estivesse apenas mirando o aparelho
em minha direção para ajustar o foco, sem ativar o disparador.
Estava com os nervos a flor da pele. Julgava existir uma
eficiente espiã da Confederação Germânica onde, ao que tudo
indicava, só havia uma jovem entusiasmada com seu brinquedo
novo. Muito provavelmente, o presente de casamento de um parente
rico.
2: "UM RATÓN EN EL ALMUERZO DE LOS
GATOS..."
A barcaza era um retângulo de cento e dez metros de
comprimento por dezoito de boca e três de calado. Seu casco de
fundo chato, sem quilha, fora especialmente projetado para a
navegação fluvial.
A embarcação possuía três conveses. Aquele a que o comandante
se referiu como sendo o "convés principal", onde se
situavam os camarotes dos passageiros, os restaurantes, as salas
de jogos, o cinema, a biblioteca e outros aposentos dedicados à
recreação dos viajantes; o convés superior, onde se
localizavam os alojamentos da tripulação, as amuradas interna e
externa, e o passadiço; e o convés inferior ("cobertas
abaixo", segundo os marujos fluviais), recondicionado para o
transporte de carga perecível e abrigando os sistemas de
propulsão nuclear e auxiliar.
Soou a sirene que anunciava o início do horário de almoço.
Soube por intermédio de Hernandez que o comandante da Espírito
Santo sentaria à nossa mesa.
Caminhei pelo convés superior, ao longo da amurada interna de
bombordo, em direção à pôpa.
Enquanto rumava para o pequeno restaurante da primeira classe,
observei os campos cultivados da região ribeirinha na margem
paraguaya. Vi um camponês alto e mulato, com um chapéu de aba
larga que à distância pareceu ser de couro autêntico. Estava
sozinho e a pé no meio daquela vasta extensão de terra
cultivada, comandando com voz firme, audível mesmo na barcaza,
mais de uma dúzia de máquinas agrícolas automáticas.
Obedientes, as máquinas iam e voltavam. Semeadoras preparando a
safra futura em alguns trechos, enquanto tratores sulcavam
outros, aspergindo fertilizantes bacterianos no solo revolvido, e
colheitadeiras extraíam o cereal maduro.
Reconheci milho, feijão e algodão. Três plantas que os
paraguayos haviam tornado mais resistentes às intempéries e
praticamente imunes à ação das pragas, graças ao emprego das
técnicas de DNA recombinante. Mais ao sul, na campanha gaúcha,
os agricultores da República Guarany produziam trigo e soja,
cujos excedentes eram exportados a preços subsidiados para
muitas das jovens nações africanas e asiáticas. Nas
províncias do Rio Grande del Sur e do Uruguay
produziam-se uvas finas, transformadas nas pequenas vinícolas
familiares da região no melhor vinho tinto do planeta. Do outro
lado do Paranapanema, os brasileiros ainda praticavam a
monocultura cafeeira, entremeada aqui e ali pelo cultivo da soja.
Já próximo à pôpa, seguindo as indicações luminosas
assinaladas nas anteparas do convés superior, desci uma escada
em espiral que desembocou no átrio do restaurante da primeira
classe.
Apenas duas das quatro mesas compridas de oito lugares estavam
guarnecidas com pratos, copos e talheres. Avistei o casal
Hoffmann sentado numa delas e me dirigi para lá. Sentei-me no
lugar indicado, em frente a Hans Hoffmann, um homem branco no
final da casa dos vinte, de pele bem clara, olhos azuis e cabelos
castanhos. Um garçom vindo da copa retirou da mesa o cartão com
o nome da minha identidade falsa. Os agentes, que me haviam
seguido de perto, sentaram-se pouco depois. O mais robusto, Sr.
Pereira segundo o cartão, sentou-se a meu lado direito e em
frente a Inga. Seu amigo, o Sr. Silva, posicionou-se à sua
direita e em frente ao assento vago sobre o qual a jovem alemana
depositara sua indefectível holocâmera.
O mayor do D.G.I., que utilizava o mesmo nome com que se
apresentou a mim, chegou alguns minutos mais tarde, salvando-me
de uma conversa maçante com o casal de alemanos, versando sobre
a diversidade da flora remanescente na região do Paranapanema. O
assunto, confesso, estava bem longe de ser o meu forte.
Os alemanos articulavam um castellano tão bom quanto o meu. O
fato não me causou surpresa, considerando a maciça influência
cultural paraguaya também presente na Europa, pelo menos desde o
término da Guerra Mundial em 1927, e o conseqüente plano de
auxílio econômico empreendido por Assunción às nações
européias do pós-guerra.
Com um sorriso cativante aos alemanos, Hernandez se sentou na
cabeceira mais distante, tendo o atlético Sr. Silva à sua
esquerda.
O comandante foi o último a chegar, cerca de dez minutos depois
de Hernandez. Sentado na cabeceira à minha esquerda, o tenente-de-corbeta
Ruiz Daross me pareceu menos paraguayo que Hans Hoffmann. Ao
longo da refeição, confirmei o que suspeitara: o oficial
reformado nascera na cidade guarany de Blumenau, uma colônia de
imigrantes alemanos e austríacos radicados na província de
Santa Catarina, uma década após o final da Guerra da Tríplice
Aliança.
Louro, alto, com olhos verde-água e complexão robusta, o
comandante aparentava ter mantido o vigor intato durante a
meia-idade. Articulava o alemán, o castellano, o português e,
como descobri mais tarde, o guarany, com igual fluência.
Mostrou-se um homem extremamente simpático, expansivo e de
temperamento extrovertido. Contou-nos que a carreira naval era
uma espécie de tradição de família: o avô lutara na Guerra
Mundial pela Marinha Paraguaya, protegendo os comboios que
transportavam alimentos e armamento para a pátria de seus pais e
para os seus aliados austro-húngaros. Um irmão de seu pai fora
adido naval junto aos Estados Unidos da América, e atuara como
observador neutro durante a guerra sangrenta, duradoura, mas
inconclusiva, que os norte-americanos travaram com o Império
Nipônico no Pacífico.
Degustamos nossos aperitivos, enquanto os garçons nos serviam
apetitosos filetes da boa carne bovina paraguaya. A jovem
alemana dirigiu-me uma pergunta em castellano:
"E então, quais são as novidades do Brasil?"
Lembrei-me que o casal embarcara na Espírito Santo no
porto fluvial de Itararé, após duas horas de viagem no
turboônibus expresso. Haviam tomado aquele expresso ainda no
interior do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, minutos
depois de desembarcarem do estratosférico procedente de Berlim.
Deveriam realmente estar curiosos para saber o que havia de novo
pelo país que cruzaram tão rápido.
Decidi evitar qualquer menção a assuntos de caráter técnico
ou científico, e não ousei arriscar comentários sobre
política. Afinal, como europeus típicos, os Hoffmann deviam
acreditar piamente que os brasileiros nada entendiam do assunto.
Não importava que fôssemos a quinta economia do mundo. Na
opinião dos alemanos seríamos sempre - e apenas - o "País
do Futebol". O estereótipo não me irritava, ao contrário
do que ocorria com a maioria de meus conterrâneos.
"Rodrigues é o novo técnico da nossa seleção. Ouvi dizer
que a lista dos convocados para a Copa do Japão deve sair ainda
este mês."
Hernandez assentiu quase imperceptivelmente e aproveitou a deixa.
"Mas ainda faltam quase dois anos para o Mundial de
95!"
Hans Hoffmann riu e olhou para a esposa com o ar de triunfo de
quem acabara de vencer uma aposta. Aquele era o lado ruim de
sermos pentacampeões mundiais de futebol, quando tanto o
Paraguay quanto a Confederação Germânica possuíam apenas dois
títulos cada. Os paraguayos, nossos vizinhos e "fregueses
de caderno" habituais, conheciam bem a nossa maneira de ser.
Mas, aos olhos embevecidos dos alemanos, todos os brasileiros
eram grandes especialistas no rude esporte bretão.
Atencioso, o comandante pareceu perceber que meu conhecimento
futebolístico não ia muito além da afirmação sobre
Rodrigues. Infelizmente, portou-se como um autêntico cavalheiro
portenho e decidiu me tirar daquela enrascada, atendendo ainda à
curiosidade dos alemanos.
"A última grande novidade do Brasil, minha bela jovem, foi
o desaparecimento de um físico importante. O chefe de pesquisas
de um projeto secreto de grande porte que, segundo dizem, o
governo brasileiro desenvolvia na Universidade de São
Paulo."
A notícia seria a sensação do almoço.
Senti meu sangue gelar. Meus olhos procuraram os de Hernandez,
mas este insistiu em cofiar o bigode lustroso enquanto examinava
minuciosamente seu bife, como se pretendesse descobrir ali uma
saída para a situação perigosa na qual nos encontrávamos.
Pereira se mostrou indignado. "Mas isto ainda não saiu nos
jornais!"
Por um momento, o comandante Daross analisou a fisionomia do
agente, como o estrategista de um exército invasor, procurando
uma falha nas muralhas da cidadela inimiga sitiada. Depois,
relaxou e sorriu, comentando em tom de confidência:
"Ainda não. Recebi a notícia há cerca de uma hora pelo
telefax. Estão mantendo um certo sigilo, pois parece haver
suspeitas de sabotagem e esse é o tipo de assunto normalmente
capaz de assumir os contornos de uma crise diplomática. Há
insinuações de que o pesquisador tentaria fugir para o nosso
país. De qualquer modo, amanhã provavelmente toda a história
já estará nos jornais."
"O señor por acaso se lembra do nome desse
cientista?" O jovem alemano se mostrou interessado demais
para o meu gosto. Hernandez me lançou um breve olhar de
advertência.
"Claro. Trata-se do professor Júlio César de Albuquerque
Vieira. De acordo com o fax, ele se graduou pela Universidade de
Campinas, fez mestrado no Instituto de Astronomia e Geofísica da
USP, o doutorado no Instituto de Física Avanzada de
Assunción, tendo sido durante vários anos professor titular do Centro
de Pesquisas Cosmologicas de la Cidad de Lopez. Foi o tal
físico brasileiro que recebeu o Prêmio Nobel de Física em
1985."
Hoffmann arregalou os olhos e assobiou. "Albuquerque, o
grande teórico das dobras espaçotemporais! Não sabia que
estava trabalhando num projeto secreto..."
"Se todos soubessem, não seria secreto." Brincou
Hernandez, demonstrando um sangue-frio admirável.
* * *
Trabalhar naquilo fora sem dúvida uma péssima idéia.
Entretanto, há cinco anos, quando o Governo me ofereceu um
laboratório completo para testar minhas teorias, uma equipe de
físicos experimentais de gabarito internacional e verbas
virtualmente ilimitadas, senti-me como se estivesse ganhando um
segundo Nobel. As condições não eram piores que as que me
seriam oferecidas, caso me dispusesse a trabalhar na República
Guarany, na Confederação Germânica ou no Império Nipônico.
Uma tonelada e pouco de orgulho idiota e comodismo descabido,
mesclada com uma pitada ou duas de patriotismo mal aplicado,
quase fez com que eu compactuasse involuntariamente com a
obliteração do mundo conhecido.
Desde o mestrado no IAG, venho me dedicando à tentativa de
compreender a estrutura e o comportamento das dobras
espaçotemporais.
As equações que utilizo na descrição dessa estrutura prevêem
a possibilidade teórica de se rastrear os fluxos de
perturbação puramente temporal de uma dobra de quarta espécie.
Em termos leigos, isto significa a possibilidade de
visualização de um conjunto de eventos passados nas
proximidades de um objeto massivo. No caso de um sólido com a
massa da Terra, a persistência máxima de um fluxo é de quase
quatrocentos anos.
Quando regressei a USP, depois de um longo período lecionando na
Unicamp, para assumir a coordenação científica do Projeto
Cronos, não esperava construir uma máquina do tempo.
Ao menos, não um mecanismo de estilo vitoriano, como o proposto
pelo cientista fictício inglês Herbert Wells...
Julguei, contudo, que talvez fôssemos capazes de fabricar uma
espécie de "televisor temporal". Um dispositivo que
proporcionasse a visualização de eventos históricos
pretéritos; uma ferramenta tecnológica poderosa, não apenas
como instrumento auxiliar para as pesquisas do Departamento de
Historiografia Aplicada da universidade, mas, principalmente
para, através de empregos sequer imaginados, modificar a
sociedade humana como um todo, tornando a civilização atual
mais cônscia do cotidiano complexo das culturas passadas e, por
comparação, dos caminhos possíveis para um futuro melhor.
Ingenuidade.
Idealismo pueril e incrivelmente tolo.
Realmente - após mais de quatro anos de cálculos, simulações
computacionais, soluções numéricas e fabricação de
componentes alguns desses implicando no desenvolvimento de
tecnologias específicas inteiramente novas - o rastreador ficou
pronto. Levamos mais um ano e oito meses ajustando o equipamento
para a obtenção de hologramas nítidos, e quatro meses para
graduar a profundidade de penetração temporal do feixe de
rastreio.
Somente então compreendemos que havia algo errado.
O rastreador funcionara perfeitamente. A programação fora
correta tanto em nitidez quanto na graduação de profundidade.
Entretanto, os hologramas, os próprios hologramas, estavam
errados.
Não que houvesse qualquer falha de projeto. Apenas os
hologramas, a partir de um determinado ponto, não condiziam mais
com os eventos históricos, tal como sabemos que ocorreram.
"Señor Oliveira, está se sentindo bem? Mal tocou em
seu filete. A comida não está do seu agrado?"
"Está deliciosa." Assegurei ao comandante, cujo
semblante mostrava preocupação e uma certa curiosidade.
"Estou apenas um pouco indisposto. Enjôo de viagem,
creio."
"Mas o rio está tão calmo. O barco quase não está
jogando..." Parecendo magoado com meu pretenso excesso de
susceptibilidade ao balanço de sua embarcação, ele decidiu
mudar de assunto. "Passemos à sobremesa, então."
Senti alívio por não ser mais o centro das atenções. A
sensação se desvaneceu quando percebi o cuidado velado com que
os dois agentes, praticamente calados durante todo o almoço,
examinavam meu comportamento e reações.
Tentei disfarçar o melhor possível o calafrio de medo que me
deslizou medula acima.
Pensei no que aconteceria, caso fosse capturado e repatriado ao
Brasil. O julgamento e a execução não me atemorizavam tanto
assim. Muito pior seria a execração pública. Os milhões de
rostos irados que, ignorando o propósito que guiara meus atos,
pronunciariam apenas a mesma palavra odiosa com que o velho
imperador fora brindado durante a partida de seu navio para o
exílio na Europa: "Traidor!".
Depois da sobremesa, o comandante provou mais uma vez ser um
excelente anfitrião, ao mandar que servissem um Amaretto
simplesmente soberbo. Infelizmente, com o sistema nervoso já em
frangalhos, fui obrigado a cometer o mais ingrato dos
sacrilégios, ao tomar aquele digestivo de qualidade superior sem
a apreciação e o prazer gustativo devidos. Engoli o conteúdo
do cálice minúsculo num único gole, mal sentindo o bouquet
ou o sabor.
Desculpando-me com os demais, levantei-me e rumei para o camarote
com passos rápidos. Não me importei nem um pouco se o Sr. Silva
ou Pereira seguia meus movimentos.
3: UM MAPA MUITO ESTRANHO
Senti-me um pouco menos inseguro no camarote. Julguei que os
agentes provavelmente não teriam ousado instalar equipamentos de
escuta ali. De qualquer modo, não me arrisquei a ponto de
remover a máscara de material biossintético que me recobria o
rosto.
Liguei o micro do camarote, colocando-o no modo teletexto.
Acessei as manchetes dos principais jornais paraguayos e
brasileiros. Ainda não havia notícias sobre a fuga. Segundo
ouvira falar, as edições jornalísticas em teletexto eram
atualizadas a cada três horas. A última atualização acabara
de se dar. Trinta minutos após a próxima, pensei, se tudo
corresse bem, eu estaria desembarcando no porto fluvial de
Barranquilla, no lado paraguayo do rio.
Desativei o micro e girei a poltrona do console, passando a fitar
a antepara oposta. Havia um mapa fixo num quadro, protegido com
vidro e moldura. Reparara que se tratava de um quadro antiquado
já na ocasião em que estive brevemente no camarote, antes da
partida da barcaza, para tirar alguns objetos pessoais da
mala e guardá-los no armário.
Observando-o mais atentamente, percebi que o mapa era
consideravelmente elaborado. Um trabalho de artista: feito à
mão e, ainda assim, perfeito em seus mínimos detalhes e
tonalidades, como se houvesse sido executado por um programa
gráfico de última geração.
Um mapa da América do Sul. Bem delineado, mostrando o relevo, os
principais rios, ilhas e lagos, e as cidades. Como todos os
brasileiros, estava acostumado desde a infância aos mapas
geopolíticos do subcontinente.
É o segundo a ser apresentado pelos hologramas gerados nos
programas educacionais, que os pais comumente alugam para rodar
nos micros dos filhos em idade escolar. Logo depois do holo do
Brasil, bem no início do módulo de geografia.
Uma figura bastante familiar e, no entanto, estranha.
Aquilo, ao menos, mudara pouco desde os meus tempos de menino.
Ouvi dizer que, nos programas mais recentes, os holomapas da
América do Sul já aparecem com as cidades e acidentes
geográficos das regiões paraguayas conquistadas durante a
Guerra da Tríplice Aliança designadas em castellano e não mais
em português. Pelos nomes que os seus novos senhores lhes haviam
dado.
Cidad de Lopez, no lugar de Porto Alegre? Não sei se gostaria de
um holomapa assim...
Mas um dia, mais ano menos ano, a sociedade brasileira vai ter
que encarar a história de frente. Nossos antepassados perderam
uma guerra que haviam considerado ganha. Uma guerra na qual
dispúnhamos aparentemente de todos os trunfos. Não necessitamos
mais, passado tanto tempo, nos envergonhar pela incompetência e
pelas falhas estratégicas dos generais do Império. Temos que
reconhecer os fatos históricos, e parar de nos esconder atrás
das desculpas do tipo
"poderia-ter-sido-se-tivéssemos-ganho-a-Guerra".
Parei de filosofar sobre essa "política de avestruz"
mantida há mais de um século pela cultura brasileira, fixando a
atenção no trabalho do artífice. Creio ter sido uma espécie
de mecanismo de fuga, algo capaz de me fazer esquecer
momentaneamente a crise que culminou em minha evasão do Brasil,
após a sabotagem do Projeto.
A Grande República del Paraguay merecia a designação.
Numa tonalidade vinho rosê, destacava-se como a nação de maior
área na América do Sul; mesmo sem levar em conta o Protetorado
del Mato Grueso, sob controle político e econômico
paraguayo. O grande território se estendia, em vermelho claro,
até a margem sul do Amazonas. Apesar de rebatizado em
castellano, o português ainda era, a despeito dos esforços e
incentivos das autoridades guaranys, o idioma mais falado na
região.
A leste, banhados pelo Atlântico, os dois únicos Estados
independentes que restaram do outrora vasto e orgulhoso Império
Brasileiro, da época anterior à Guerra da Tríplice Aliança.
Maior e mais ao norte, em azul cobalto, escuro a fim de não se
confundir com o tom mais claro do oceano, estavam os nossos
vizinhos de língua portuguesa, a República de Pernambuco, a
última ditadura militarista remanescente no subcontinente. Ao
sul, menor, porém mais rico e industrializado (em grande parte,
reconheço a contragosto, graças às reformas econômicas
impostas durante a Ocupação) está o Brasil. Em verde claro, o
nosso território, que antigamente ocupara quase metade do
subcontinente, aparecia reduzido às proporções atuais, pouco
menos de 1.000.000 Km2.
A obra de arte me fez lembrar daquele outro mapa. Uma figura
bidimensional composta por um dos subprogramas do Projeto a
partir das holografias geradas pelo rastreador temporal. Uma
América do Sul diferente. O Brasil com um território ainda
maior que nos tempos do Império.
Um país com as dimensões de continente e, mesmo assim, fraco. E
muito pobre... Habitado predominantemente por um povo faminto e
ignorante. Um país cruel, cujo sistema econômico era o
capitalismo sob uma forma em muitos aspectos ainda mais selvagem
que a praticada pelo Império Britânico em meados do século
passado. Um Brasil cujas riquezas estavam concentradas em
pouquíssimas mãos, numa situação sem paralelo em qualquer
país atual do nosso mundo.
O Brasil de uma Terra que não fora beneficiada por quase
sessenta e cinco anos de Pax Paraguaya.
Minhas divagações foram interrompidas por um estalido seco
vindo da porta. Eu a havia trancado e, no entanto, a maçaneta
girava.
Mal tive tempo de me levantar da poltrona, quando Silva e Pereira
ingressaram no camarote sem a mínima cerimônia. Silva portava
uma pequena pistola-metralhadora, enquanto o outro mantinha as
mãos ocupadas com um aparelho minúsculo, certamente o que
permitira o desarme da fechadura eletrônica. Desabilitou o
dispositivo e o guardou no bolso da calça. Comentou em tom
casual:
"Essas fechaduras antigas acabam sempre dando mais trabalho.
Imagine, quase dez segundos para desarmar."
Silva lançou-lhe um breve olhar de repreensão. Desviou o cano
da arma ligeiramente, de minha cabeça para a antepara alguns
centímetros à direita, num gesto calculado cujo objetivo talvez
fosse o de me tranqüilizar. "Solicitamos que permaneça
calmo, Sr. Oliveira. Não há o menor motivo para o temor. Somos
policiais federais." Com a mão livre, mostrou um distintivo
de plástico metalizado, com as armas nacionais em relevo e sua
fotografia colorida com as platinas de oficial sobre os ombros.
"Pretendemos apenas revistá-lo e examinar seus
documentos."
"Mera questão de rotina." Explicou Pereira, dando uma
piscadela enquanto estendia a mão para trás a fim de fechar a
porta.
Foi tudo muito rápido. Não reparei bem o momento em que
Hernandez entrou no camarote.
Sei somente que deve ter atravessado o pórtico com um salto,
antes que Pereira fechasse a porta. Num instante eu estava
sozinho com os dois agentes, no outro, o oficial do D.G.I. já
estava no centro do aposento.
Dotado de uma agilidade que eu jamais lhe atribuiria, saltou
sobre o maciço Pereira, como um Davi contra Golias. Com um chute
aplicado em cheio na face do gigante, derrubou-o no carpete do
camarote, onde o agente permaneceu estirado.
O paraguayo não dispôs do tempo para colher os louros da
vitória parcial. Os décimos de segundo que me dispensou, quando
pretendeu, com um breve sorriso, assegurar-me que tinha tudo sob
controle, foram bem aproveitados por Silva, que, com uma pancada
seca da coronha de sua arma na nuca do oficial franzino,
colocou-o fora de ação. Hernandez primeiro caiu de joelhos e
depois, com um gemido, tombou por sobre Pereira, igualmente
desacordado.
"Um falso executivo de uma estatal paraguaya vindo em
socorro de um industrial brasileiro." O agente já não
tentava simular qualquer simpatia. O cano da pistola voltou a
apontar para o meu crânio. "Isto parece muito estranho.
Creio que minhas suspeitas talvez não sejam tão infundadas
assim, não é professor?"
"Não sei do que o senhor está falando. Apresentarei
queixas ao comandante por esta sua conduta injustificável!"
Reconheço que como blefe, a ameaça fora hilária. Em minha
defesa, alego apenas ter conseguido manter o sangue-frio diante
das circunstâncias. O que, por si só, já se mostrou muito
difícil.
"Certamente apresentará." O tom de voz do agente
revelou todo o desprezo que sentia. "Colaboracionista!"
Mesmo oitenta e poucos anos após o término da Ocupação,
aquela ainda era considerada uma ofensa grave. Senti o sangue me
subir às faces, por baixo da máscara do disfarce.
"Gostaria de apresentar sua reclamação agora, meu
caro?"
Silva e eu olhamos ao mesmo tempo em direção à porta.
O comandante ingressara silenciosamente no aposento. Na mão
direita portava uma pistola semi-automática de fabricação
paraguaya. Apontava a mesma de forma inequívoca para o peito do
agente. Atrás dele, e também armados, estavam Hans e Inga
Hoffmann.
Surpreso e furioso, Silva esteve prestes a reagir. Mas,
felizmente, parece que também notou os outros dois. Após um ou
dois segundos de impasse, avaliou de forma correta o ar obstinado
sob a expressão calma de Daross.
Com um palavrão abafado, atendeu ao gesto do comandante e largou
a arma. Inga se aproximou, cautelosa, abaixou-se e recolheu
rapidamente a pistola-metralhadora. Hans retirou um rolo de fio
sintético de um dos bolsos. Em menos de um minuto, Silva se
encontrava imobilizado, solidamente atado à poltrona.
Hans e o comandante tiveram um trabalho considerável para
remover Pereira de baixo do oficial do D.G.I. e colocá-lo sobre
a cama, na qual foi amarrado. Durante aquela manobra árdua, Inga
manteve-me sob a mira de um revólver minúsculo.
* * *
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