CRIMES E CONFLITOS NAS RELAÇÕES
ENTRE
SENHORES E ESCRAVOS
JUIZ
DE FORA (1830/88)*
<elione@arqhist.pjf.jfa.mg.gov.br>
Mestranda
em História Social pela UFF
Pesquisadora
do Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora
RESUMO:
Estudo do cotidiano, criminalidade e conflitos nas relações entre senhores
e escravos no município de Juiz de
Fora, Minas Gerais, nos anos de 1830/88. A base fundamental da pesquisa são os
processos criminais da Comarca do Paraibuna , que tinha por sede o município de Juiz de Fora.
PALAVRAS-CHAVE:
Escravo: criminalidade; Juiz de Fora: escravos; História
Social.
ABSTRACT:
Study of the Quotidian, Criminality and Conflicts in the relations between the
possessors and slaves of Juiz de Fora city, Minas Gerais, in the comprised period of 1830/1888. The
fundamental basis of the present research is sustained by the crimnals’ process
Paraibuna’s Country.
KEY-WORD:
slave: criminality; Juiz de Fora city: slaves; Social History.
INTRODUÇÃO
Sob aspectos variados esta pesquisa se coloca como parte
dos estudos desenvolvidos pela historiografia brasileira nos últimos anos, propõe-se a abordar um tema da História
Regional e da História Social da Escravidão. O locus de estudo é Juiz de
Fora — principal município cafeeiro da Zona da Mata mineira na Segunda metade
do século XIX, sede da Comarca do Paraibuna — e demais municípios que, em
momentos variados do século XIX, estiveram
sob a jurisdição desta Comarca. O tema central é a criminalidade e as relações
cotidianas entre cativos e senhores. O período abordado abrange os anos de 1830
a 1888. As datas limites correspondem à data do documento mais antigo
localizado, relativo ao tema central, e à data em que deixou de vigorar,
oficialmente, a escravidão no Brasil. Embora o lugarejo, hoje Juiz de Fora, só
tenha se tornado Vila e sede de Comarca após 1850 optamos por manter as
informações localizadas sobre a primeira metade do século XIX para que melhor
se acompanhe a evolução da criminalidade na região[1].
Acreditamos que apesar das adversidades da escravidão os cativos lutaram pela
sua sobrevivência, resistindo cotidianamente de formas variadas, pelo trabalho
nem sempre bem-feito, pela fuga,
impondo limites de tolerância à exploração sofrida, matando e morrendo
... adaptando-se[2]. Dando
mostras de que os rigores do cativeiro não coisificaram a sua subjetividade.
Dividimos este artigo em três seções.
Na primeira seção procuramos apresentar as fontes utilizadas e demonstrar
os critérios metodológicos de abordagem, além de uma breve explanação
quantitativa sobre a criminalidade na Comarca do Paraibuna. Na Segunda seção
discutimos a Criminalidade e a Escravidão, a contradição legal da sociedade
escravista que, por um lado, reconhecia o escravo como uma mercadoria, passível
de ser vendido, trocado e alugado; por outro,
responsabilizou-os criminalmente pelos seus atos, tratando-os como
objetos e sujeitos de delitos, reconhecendo-os como humanos. Na última seção
buscamos discutir a criminalidade sofrida pelos cativos na sua relação
cotidiana com seus opressores imediatos: senhores, feitores e administradores.
Para empreender o estudo
a que nos propomos, sobre o cotidiano, criminalidade e conflito nas relações
entre senhores e escravos, tomamos por base a análise as seguintes
fontes primárias: os documentos
criminais da Comarca do Paraibuna (1830/88) e alguns inventários
post-mortem, o Código Penal do Período Imperial e o Código do
Processo Criminal do Período Imperial[3].
No que concerne à documentação criminal, foram
utilizados os documentos judiciais relativos a inquéritos, auto-de-corpo
de delito, processos, confissões, sentenças, requerimentos de habeas-corpus etc.
Quanto ao nível da abordagem da documentação criminal, realizou-se uma análise
quantitativa e qualitativa dos mesmos[4].
A opção pela utilização de processos criminais se justifica porque eles
formam um conjunto serial e massivo, o
que nos possibilita acompanhar o movimento social através do tempo, perceber os
padrões repetidos de comportamento, avaliando suas permanências e mudanças.
De um modo geral, os
processos apresentam a seguinte estrutura:
Inquérito policial, denúncia, citação e interrogatório ao réu, inquirição
às testemunhas, alegações finais, pronúncia, libelo e júri [5].
O inquérito policial contém a versão apresentada pela polícia para o incidente. Pode ser apresentado de
forma sintética ou conter várias e valiosas informações relativas ao espaço, etnia, relações entre os envolvidos etc[6].
A denúncia traz a versão da justiça para o crime, que pode
ser diferente da versão policial, e apresenta a lista das testemunhas. O interrogatório
ao réu e às testemunhas. Nem sempre o réu apresentava a sua versão do crime. O interrogatório às
testemunhas contém informações sobre o meio, comportamentos, relações pessoais,
condições de trabalho etc. Entretanto,
há que se considerar que a voz das testemunhas, e principalmente do réu, são
limitadas, discorrendo somente sobre o que lhe perguntam, sendo cortadas a
critério das autoridades e manipuladas de acordo com os interesses
preexistentes em condenar, punir ou absolver os envolvidos[7].
No inquérito policial, denúncia e
interrogatório, os pesquisadores têm a possibilidade de encontrar um
valioso arsenal de informações para as suas indagações. Entretanto, a análise
de processos criminais requer uma leitura crítica, minuciosa, cuidadosa e
rigorosa. Devem ser analisados sem que se perca de vista o seu contexto histórico
de criação. Como em qualquer pesquisa histórica a crítica às fontes não pode
ser negligenciada. No documento judicial, onde nos deparamos com escravos no
papel de vítimas, réus ou testemunhas-informantes não podemos perder de vista
que foi através de uma gama de intermediários (advogados, curadores, escrivães)
que estes se manifestaram.
POPULAÇÃO ESCRAVA E
PADRÕES DE CRIMINALIDADE NA COMARCA DO PARAIBUNA, SÉCULO XIX
Não obstante a evidência
da produção de alimentos básicos, provavelmente destinados ao mercado interno e
à subsistência das unidades produtivas cafeeiras, em Juiz de Fora a base da
economia, na segunda metade do século XIX, era a produção de café para a
exportação[8].
Concentrando um grande número de escravos, nas unidades produtivas, já num
período de crise do escravismo, e ao mesmo tempo prosperando como centro urbano[9],
Juiz de Fora da segunda metade do século XIX foi cenário de conflitos
envolvendo os diversos segmentos sociais que nela habitavam, assim como os
conflitos cotidianos que atingiam os “iguais” fossem eles ricos ou pobres,
livres ou escravos.
A expansão da economia cafeeira em Juiz de Fora ocorreu no
período de 1850 a 1870. Já em 1855/56 o município despontava como o principal
produtor de café da Zona da Mata Mineira, mantendo-se como um dos mais importantes produtores de café de Minas Gerais
até as duas primeiras décadas deste
século[10].
O desenvolvimento cafeeiro em Juiz de Fora coincidiu com o período de crise do
sistema escravista (fim do tráfico transatlântico, pressões externas e internas
contra a escravidão, leis abolicionistas etc.). Entretanto, foi o braço escravo
o responsável pela grande produção
cafeeira do município. A reposição da mão-de-obra escrava na região
deu-se basicamente através do tráfico interno, interprovincial e
intraprovincial[11].
O censo de 1872 apontou que, da população escrava da
Província de Minas Gerais (370.459), 26% concentrava-se na Zona da Mata
(95.099), tendo se elevado para 36% em 1886. Juiz de Fora, principal produtor
cafeeiro da Mata Mineira neste período, possuía 14.368 escravos, havendo uma
preponderância dos escravos do sexo masculino sobre os do sexo feminino[12].
Alguns
comentários sobre o censo de 1872, para Juiz de Fora, são pertinentes para este
estudo, como a não inclusão da Freguesia de Simão Pereira no cômputo geral de
escravos do município. Este dado, por si só, nos leva a alçar a hipótese de que o número de cativos do município era
superior ao inicialmente apresentado. Para embasar tal afirmativa consideramos o “Mapa aproximado da
população do Município da Vila de Santo Antônio do Paraibuna” [13]
de 1853/54 (Tabela 1) e os números de matrículas dos escravos
registrados na Coletoria de Juiz de Fora nos anos de 1872 e 1873, preservados nos
inventários post-mortem e nas
escrituras de compra e venda, dívida e hipoteca em que escravos matriculados em Juiz de Fora, no período
acima referido, foram transacionados.
DE JUIZ DE FORA EM 1853-54
Freguesia |
Masculina |
Feminina |
Total |
Nome atual |
Santo Antônio de Juiz de
Fora |
2.607 |
1.418 |
4.025 |
Juiz de Fora |
N. S. Assunção de Chapéu
D’Uvas |
584 |
421 |
1.005 |
Chapéu D’Uvas |
São José do Rio Preto |
2.088 |
1.303 |
3.391 |
Três Ilhas (distrito de
Belmiro Braga) |
São Francisco de Paula |
2.848 |
1.239 |
4.087 |
Torreões (distrito de
Juiz de Fora) |
N.S. da Gloria de São
Pedro de Alcântara |
2.573 |
1.347 |
3.920 |
Simão Pereira |
TOTAL
|
10.700 |
5.728 |
16.428 |
|
Fonte: Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora. Fundo Câmara
Municipal no Império. Série 139, Mapa aproximado da população da Vila de
Santo Antönio do Paraibuna.
A
Paróquia de Rio Preto, que havia sido anexada à Vila de Santo Antônio do
Paraibuna em 1854, foi emancipada em 1857[14],
portanto não entrando os escravos desta Freguesia no somatório da população
cativa de Juiz de Fora em 1872[15].
Mesmo assim, se considerarmos que a expansão da lavoura cafeeira no município
de Juiz de Fora ocorreu no período de 1850 a 1870, e teve como mão-de-obra
básica o trabalhador escravo, pode-se inferir que a tendência era ocorrer um
acréscimo populacional de cativos no município entre os anos de 1855 e
1872. A análise dos números de
matrículas de escravos registrados na Coletoria de Juiz de Fora amparam este
raciocínio.
A “matrícula especial” de escravos foi um instrumento legal
instituído pelo Governo Imperial com a Lei 2040 (a Lei do Ventre Livre), de 28
de setembro de1871, com o objetivo de fiscalizar o uso e a transmissão da
propriedade de escravos. De acordo com esta Lei os proprietários de escravos
ficaram obrigados a registrar seus cativos na Coletorias dos municípios onde os
mesmos residiam, entre 1872 e 1873[16]. A lista de matrícula continha dados que
permitiam a identificação dos escravos, tais como: nome, cor, idade, estado
civil, filiação, naturalidade, profissão, aptidão para o trabalho e um campo para
observações. Estas listas, preenchidas pelos proprietários e entregues na
Coletoria do município onde estavam estabelecidos os cativos, eram, no ato da
entrega, datadas e numeradas e cada escravo recebia um número de ordem de
acordo com o seu registro seqüencial naquela Coletoria. Apesar dos Livros de
Registros de Matrículas de Escravos terem sido eliminados por ordem de Rui
Barbosa as cópias das listas de matrículas, que foram anexadas aos inventários post-mortem
para comprovar a posse de escravos e garantir os direitos de herança,
ficaram parcialmente preservadas. Os números de matrículas de escravos eram,
também, relacionados nas escrituras de compra e venda, dívida e hipoteca que
envolveram escravos[17].
Considerando estes pressupostos, observamos que a lista de
matrícula apresentada pelos herdeiros
da Baronesa de Santanna, de 1872, apresentava escravos com o número de
matrícula 18.906[18]. Na
escritura de compra e venda da Fazenda do Morro Alto, situada na Freguesia de
Simão Pereira, incluindo a transação de cinqüenta e quatro cativos, o escravo
Augusto, preto, de 23 anos, foi matriculado na Coletoria de Juiz de Fora em 23
de setembro de 1873 sob o número 19.141[19].
Os números destas matrículas não nos permite afirmar qual o quantitativo de
cativos de Juiz de Fora nos anos de 1872 e 1873, mas nos permite inferir que
eles superavam significativamente os 14.368 apontados pelo Censo de 1872 e que
somavam, no mínimo, 19.141 elementos.
Para tentar compreender o
significado dos crimes e conflitos sofridos e/ou praticados por escravos
apresentamos um quadro geral da criminalidade na Comarca do Paraibuna no
período 1830 a 1890 demonstrando o
número de infrações e a sua distribuição pelos diversos tipos de delitos (Tabela
2). Na demarcação cronológica o ano 1830 corresponde ao documento criminal
mais antigo localizado no acervo, ao passo que em 1890 entrou em vigor o
novo Código Penal Brasileiro no Estado
de Minas Gerais[20].
Seguindo a orientação do Código Criminal Brasileiro do
período Imperial, optamos por agrupar os delitos em quatro grandes grupos[21]:
1. Crimes Públicos: São aqueles que dizem respeito aos crimes
políticos, que ofendiam a “integridade e a existência do Império e dos poderes
políticos instituídos”[22] que feriam os direitos do cidadão ou
corrompiam a administração pública. Aqueles que por suas tendências,
caracteres, atrocidades ou conseqüências afetam principalmente os interesses
sociais[23].
Crimes particulares: Aqueles que têm condições
e conseqüências que importam mais uma lesão individual do que geral. São os
chamados crimes de ação privada, que compete apenas ao ofendido[24].
São os crimes cometidos contra a pessoa ou contra a propriedade.
Crimes Policiais: São os crimes que dizem
respeito à desordem, à contravenção, aos pequenos delito. São crimes de menor potencial ofensivo[25].
Outros Documentos
Criminais: Este conjunto de documentos
comportam os delitos que não puderam ser enquadrados nos três grupos
anteriores, como por exemplo os inquéritos relativos a suicídio, morte natural,
afogamentos etc.; os crimes contra as Posturas Municipais e aqueles documentos
cujos delitos não puderam ser identificados.
Crimes públicos |
|||||||
TIPO/DÉCADA |
30-39 |
40-49 |
50-59 |
60-69 |
70-79 |
80-91 |
Total |
Contra o direito político |
--- |
--- |
--- |
01 |
01 |
--- |
02 |
Contra a segurança Do império |
--- |
--- |
01 |
09 |
10 |
09 |
29 |
Contra a ordem e a administração |
01 |
--- |
12 |
14 |
20 |
21 |
68 |
Contra o tesouro e a propriedade |
--- |
--- |
02 |
01 |
--- |
--- |
03 |
Crimes Particulares |
|||||||
TIPO/DÉCADA |
30-39 |
40-49 |
50-59 |
60-69 |
70-79 |
80-91 |
Total |
contra a liberdade |
--- |
--- |
04 |
04 |
03 |
01 |
12 |
tentativa de
homicídio |
01 |
01 |
10 |
16 |
42 |
68 |
138 |
homicídio |
01 |
03 |
17 |
37 |
75 |
90 |
223 |
ofensas físicas |
03 |
10 |
48 |
77 |
114 |
135 |
387 |
ameaças |
02 |
02 |
06 |
06 |
07 |
07 |
30 |
entrada em casa alheia |
--- |
--- |
01 |
02 |
03 |
--- |
06 |
contra a honra |
01 |
04 |
13 |
47 |
68 |
66 |
199 |
contra
a segurança do estado civil e doméstico |
--- |
--- |
--- |
--- |
02 |
--- |
02 |
contra a propriedade |
03 |
05 |
29 |
35 |
60 |
57 |
189 |
contra pessoa e a propriedade |
--- |
01 |
10 |
15 |
27 |
42 |
95 |
Crimes Policiais |
|||||||
TIPO/DÉCADA |
30-39 |
40-49 |
50-59 |
60-69 |
70-79 |
80-91 |
Total |
Ajuntamentos ilícitos |
-- |
--- |
--- |
--- |
01 |
01 |
02 |
uso de armas proibidas |
01 |
01 |
09 |
05 |
07 |
13 |
36 |
uso de nomes supostos |
--- |
--- |
01 |
--- |
--- |
02 |
03 |
Outros crimes |
|||||||
TIPO/DÉCADA |
30-39 |
40-49 |
50-59 |
60-69 |
70-79 |
80-90 |
Total |
contra as Posturas Municipais |
--- |
--- |
01 |
08 |
07 |
04 |
20 |
suicídio |
03 |
04 |
02 |
09 |
27 |
12 |
57 |
diversos |
04 |
--- |
04 |
26 |
44 |
55 |
133 |
Totais por décadas |
|||||||
TOTAL/DÉCADA |
30-39 |
40-49 |
50-59 |
60-69 |
70-79 |
80-91 |
Total |
Total por década |
20 |
31 |
170 |
312 |
518 |
583 |
1.634 |
Fonte: Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora. Processos
Criminais do
período
Imperial, 1830/1891.
Boris
Fausto já nos chamou a atenção para o problema da sub-representatividade das
estatísticas criminais:
... as estatísticas
referentes a prisões, ou a processos criminais, correspondem ao nível da
atividade policial e judiciária, variável em função da eficácia. A questão da
eficácia não é apenas técnica, mas está ligada à discriminação social e às
opções da política representativa, sobretudo no campo das contravenções. Certas
condutas passíveis abstratamente de sanção só se tornam puníveis quando se
referem aos pobres[26].
O que dizer então dos delitos cometidos contra escravos ou
por escravos contra escravos? Apesar de ser uma mercadoria, o escravo não
deixou de ser sujeito, de ser humano. Assim, “possui corpo, aptidões
intelectuais, subjetividade”[27].
A sociedade escravista reconheceu o escravo como “sujeito de delito e também
como objeto de delito”[28].
Ou seja, através do crime sofrido ou do crime praticado, o escravo foi
humanizado. Graças a esta ambigüidade
do sistema escravista, que responsabilizou criminalmente e ouviu como
testemunha informante o cativo, ficaram-nos ricas informações através das quais
podemos penetrar na vivência da comunidade escrava[29].
Entretanto, os proprietários escravistas resolviam internamente muitas das contravenções ou
delitos praticados pelos cativos, como uma maneira de preservar seus interesses
econômicos. Prática esta que se afrouxou ao longo do século XIX na medida em
que a conjuntura desfavorável ao sistema escravista retirava aos senhores de escravos a preponderância
por eles exercida até então. Como forma mesmo de demonstrarem que a escravidão
estava vinculada a uma ordem, senhores de escravos passaram a entregar os
cativos criminosos para o julgamento da Justiça[30].
Note-se, porém, que só nos casos mais graves os senhores adotaram este
procedimento e que, além disto, havia toda uma rede de influencias, interesses
e poder permeando o resultado destes julgamentos.
Observando a Tabela 2 acima (Tabela Geral da
Criminalidade na Comarca do Paraibuna, 1830-1890), constatamos um aumento
significativo do número de delitos à medida que o século XIX avançava e uma
predominância dos crimes contra a pessoa em relação aos crimes contra a
propriedade. No caso dos crimes contra a pessoa, podemos associar este aumento da criminalidade ao desenvolvimento
urbano e econômico da região,
principalmente do município sede da Comarca, correspondendo a um aumento da
concentração de indivíduos e, consequentemente, a um aumento das tensões e
conflitos e das possibilidades destes desencadearem em delitos. Quanto à preponderância dos crimes contra a pessoa,
em relação aos crimes contra a propriedade, concordamos com Maria Thereza
Cardoso, que chegou aos mesmos resultados ao analisar os padrões de
criminalidade em São João Del Rei no período 1750-1890:
Em uma ordem social marcada pela violência, é
compreensível a grande incidência de crimes deste tipo [Crimes contra a pessoa,
em especial os crimes de homicídio, tentativa de homicídio e ofensas físicas].
Muitos desses processos relatam o rompimento de relações de solidariedade entre
aqueles que, vivendo nas fímbrias do sistema, disputam entre si bens materiais,
relações afetivas estruturantes e bens simbólicos, derivando muitas vezes em
situações de extrema agressão[31].
2. CRIMINALIDADE E ESCRAVIDÃO
2. 1 Escravos como atores e sujeitos de delitos
Graças à contradição do direito escravista pré-burguês, que
considerava o escravo um bem semovente, incapaz de atos de vontade,
portanto irresponsável por seus atos, mas que o incriminava por delitos
cometidos e o ouvia como testemunha-informante[32],
ficaram-nos preciosas informações que permitem-nos resgatar o cotidiano da vivência escrava, suas manifestações de
resistência e seus mecanismos de sobrevivência no interior do sistema
escravista. Na formação social escravista moderna os escravos eram considerados
grupos humanos juridicamente classificados como “coisa” (objeto de propriedade,
“incapazes de atos de vontade”), sob os quais se estabelecia a negação jurídica
da condição de pessoa. Em contraposição apresentavam-se os senhores
escravistas, “dotados de vontade subjetiva”, aos quais o primeiro grupo estava subjugado[33].
A legislação escravista moderna conferiu aos proprietários
de escravos o direito privado de ministrar-lhes castigos físicos correcionais.
Entretanto, à medida que a escassez de
mão-de-obra (fim do tráfico transatlântico) e a luta de classes (crescentes
revoltas de escravos e movimento abolicionista) tornavam inevitável o fim da
escravidão, o Estado escravista adotou sucessivas medidas de moderação aos
castigos disciplinares que os proprietários escravistas poderiam aplicar a seus
cativos. Passou a intervir com maior freqüência no direito privado do senhor de
escravos em aplicar punições disciplinares em seus cativos, promovendo uma
“personificação parcial” do cativo, reconhecendo-o como objeto de delito. Uma
série de leis foram criadas com o objetivo de coibir os castigos físicos
privados, como o uso de ferros e chicotes, castigos corporais etc[34].
A Legislação escravista do período 1830-1880 estabeleceu
normas de moderação ao tratamento aplicado ao cativo, procurando promover o
prolongamento da vida produtiva dos planteis. Ao mesmo tempo, buscou intimidar
a resistência escrava, cujo crescimento se fez sentir, em parte, como contradição das leis de moderação. O Estado
escravista estabeleceu leis rigorosas para punir o escravo criminoso,
principalmente quando as vítimas dos delitos praticados pelos cativos fossem
seu senhor ou familiares, administradores ou feitores das propriedades destes.
Como, por exemplo, a Lei de 10/06/1835, que previa a pena de morte com
julgamento sumário ao escravo que matasse ou ferisse gravemente seu senhor ou
familiares, administradores ou feitores[35].
Desta feita, o cativo foi reconhecido, também, como sujeito de delito, passível
de punição legal pela Justiça[36].
Ao longo da Segunda metade do século XIX, à medida que a
escravidão perdia legitimidade com a
crescente concentração da posse de escravos nas mãos de uma pequena parcela da
classe dominante, os proprietários escravistas passaram a entregar seus cativos
criminosos para julgamento. Buscavam, desta forma, demonstrar que a escravidão
se enquadrava na ordem político-jurídica do Império[37].
Ao mesmo tempo, crescia a resistência escrava, manifestando-se de formas
variadas: aumento do número de fugas e da criminalidade do cativo[38].
A Legislação escravista, no período 1830-1880, adotou leis
personificadoras do cativo, reconhecendo-o como sujeito e objeto de delito[39].
Mas o que de fato interessava proteger
era um bem pessoal. Observe-se que as leis que pregavam a moderação no
tratamento a ser dispensado aos escravos, sob diversos aspectos, correspondiam
aos interesses políticos e econômicos da elite dominante escravista, defendiam
o “interesse coletivo de uma classe”[40].
Na prática o interesse individual levou muitos proprietários a “boicotar a
execução das medidas por eles consideradas lesivas”[41].
Muitas vezes os senhores deixavam de entregar escravos criminosos para
julgamento e punição pela justiça. A racionalidade do sistema econômico
escravista levou os proprietários de escravos a optarem por castigos
disciplinares no interior da propriedade rural, evitando a perda temporária ou
definitiva de seus cativos. Só os delitos mais graves, como os crimes de sangue
(homicídio, tentativa de morte e ferimentos graves) eram, de um modo geral,
denunciados e levados a julgamento. E nestes casos, tinham a função de coibir
novos delitos, funcionando como punições exemplificadoras.
A violência é uma característica inerente às
sociedades desiguais e não uma particularidade do escravismo. Basta lembrar que
o mesmo Estado escravista que pregava a moderação no tratamento que os senhores
deviam aplicar a seus cativos, recomendava o uso de açoites, ferros e correntes
para punir escravos criminosos. Mais importante do que discutir o óbvio (a
violência inerente ao sistema perpassando as relações senhor-escravo), é
procurar resgatar os cativos enquanto agentes de sua própria história,
participando ativamente através da resistência cotidiana e da construção de
espaços de atuação dentro do sistema[42].
No entanto, não podemos negar que castigos físicos
“exagerados” e “desumanos”, para usar uma linguagem da própria época, além dos
recomendados pela política de moderação do Estado, não estiveram ausentes das
relações entre senhores e seus cativos. Também não podemos negar a prepotência
e arbitramento da classe senhorial, que
utilizou da força e do favor para tornar o cativo prisioneiro de seus
próprios anseios e esperanças[43].
O conceito de violência, empregado ao longo deste
estudo, afina-se com a definição de Jacob Gorender,
Defino violência como
pressão ou agressão física. Também pode-se falar em violência exercida por
meios exclusivamente psíquicos, mas vamos omitir esta modalidade cujos limites
são menos claros. A violência não está isenta de variáveis históricas. Mudam
as formas e graus de violência legítimas, ou seja, socialmente aprovadas.
Formas e graus cabiam através do tempo, porém a violência legítima nem por
isso deixa de ser reconhecida como violência, pelos que a aplicam e pelos que a
sofrem[44].
(Grifos nossos).
2.2 Criminalidade escrava
em Juiz de Fora e adjacências
Em artigo recente, Patrícia Genovês e Sônia Souza
tiveram por objetivo “verificar como se dava a regulamentação do cotidiano escravista no
município de Juiz de Fora".[45]
As autoras definiram as áreas de atuação do poder público e do poder privado.
Aos senhores cabia governar a família e a escravaria, empreendendo, inclusive,
o uso de violência, o que seria limitado pelo poder público. Ao Estado cabia
equacionar a defesa dos interesses
senhoriais com a necessidade de moderação do uso da violência por parte dos
mesmos[46].
Assim, as Posturas Municipais, que são leis locais,
elaboradas pela primeira Câmara de Vereadores (1857) da recém-nascida cidade de
Santo Antônio do Paraibuna, e aprovada pela Câmara seguinte, veio regulamentar
o cotidiano da escravidão em Juiz de Fora, juntamente com as leis nacionais, a
Constituição de 1824 e o Código Penal. As autoras observam que: “Neste mundo
de valiosas peças de ébano é necessário ao historiador estar atento às
flexibilidades dos dois mundos da escravidão, o prático e o legal, respeitando
suas interpenetrações.”[47]
E, ainda, que esta flexibilidade não se restringiu ao plano
formal, uma vez que o Código de Posturas regulamentava que os fiscais dos
distritos deveriam participar aos fiscais da cidade os maus tratos praticados
pelos senhores sobre seus escravos. Concluem, com base em observações próprias
e na historiografia local sobre escravidão que os senhores permitiam certos
“privilégios” aos seus escravos, tais como a
constituição de famílias e a posse de
pequenas roças de alimentos.
A análise da documentação criminal nos leva a
acrescentar às observações das autoras alguns dados para reflexão:
1. A economia cafeeira teve sua expansão, no município de Juiz de
Fora, entre 1850 e 1870. Portando, a economia mercantil agro-exportadora
cafeeira encontrava-se em alta e a
exploração sobre o cativo era intensa, visando tirar do sobre-trabalho dele o
maior lucro possível. Neste contexto, a economia própria do escravo (costume de
conceder aos escravos um lote de terra para cultivo por conta própria) tendia a
ter seu espaço diminuído pela necessidade de mercado[48].
O número de escravos que obteve “privilégios” para formar pecúlio ou possuir
roças não nos parece, num primeiro momento, ter sido significativo.
2.
Se o número de escravos era grande e a exploração sobre os
mesmos desumana (como podemos observar
pela documentação criminal), a resistência do cativo tendeu a manifestar-se de
formas variadas e crescente ao longo dos anos 70/80 do século XIX: fugas,
suicídios, furtos, homicídios etc.
3.
O Código de Posturas Municipais elaborado em 1857, assim como
outras leis do Império no período 1830-1880, foi elaborado e aprovado já sob a
evidência da escassez da mão-de-obra escrava e das pressões abolicionistas. A
Legislação deste período, que pregava a moderação no tratamento disciplinar
aplicado pelos senhores a seus escravos, defendia interesses coletivos da elite
senhorial e visava prolongar ao máximo a possibilidade de exploração da
mão-de-obra escrava. Não possuía um veio paternalista e anti-escravista; ao contrário, possuía racionalidade
sócio-econômica. E se a Câmara Municipal preocupou-se com a questão da
moderação de castigos a ser aplicado em escravos é por que tinha conhecimento
da sua existência ou, pelo menos, da possibilidade da sua existência. Afinal,
os fatos criminosos ou delituosos precedem às Leis que regulamentam e punem a
sua existência. A Resolução da Câmara de 28 de junho de 1862, aditivo número 8,
indicou a substituição da pena de açoites
pela pena de prisão[49].
No entanto, os crimes de anos posteriores continuaram sendo sentenciados com
açoites, assim como penas de prisão foram substituídas por açoites e ferros ao
pescoço ou aos pés (Conforme o artigo 60 do Código Penal). Era mais econômico
para o proprietário entregar sua “peça de ébano” para ser açoitada e voltar a
produzir do que perdê-la definitiva ou temporariamente.
4.
Dos relatórios de fiscais
do município enviados ao Presidente da Câmara, entre 1854 e 1888, 191 ficaram
preservados[50]. Nestes, é
bastante comum encontrarmos reclamações de que alguns distritos não possuíam
agentes ficais, que os fiscais dos distritos lesavam os cofres públicos e não
obedeciam o Código de Posturas, alguns distritos passavam mais de um ano sem
mandar um só relatório. As reclamações do Fiscal de Juiz de Fora, em relação
aos dos distritos não mudou de tônica ao longo da segunda metade do século XIX. Em 1860, o fiscal da
cidade, José Cândido Americano, em ofício ao Presidente da Câmara, relatou:
Sinto Dizer-vos
que nada posso acrescentar ao que tive a honra de expender-vos no Relatório da
Sessão passada, e que continuo ainda a ignorar o estado das Escolas de
primeiras letras e o modo porque são tratados os escravos neste município,
por quanto os Fiscais dos Distritos de fora da cidade nenhuma participação me
têm feito... (Grifos
nossos)[51].
5.
A presença escrava nos crimes contra a pessoa, seja como sujeito de
delito ou paciente dele, demonstra a tensão permanente das relações escravistas
em Juiz de Fora.Cientes da necessidade de conter grande número de homens
explorados em trabalhos desumanos, a ideologia oficial do Estado escravista
pregou a moderação no tratamento dado
pelos senhores aos seus escravos. Contudo, a prática cotidiana não correspondeu
a esta ideologia. Além disso, havia, ainda, a ameaça permanente da violência,
que poderia ser efetivada a qualquer momento[52].
Trabalhando nas pequenas e médias lavouras de
alimentos, nas grandes propriedades cafeeiras, alugados aos serviços rurais e
urbanos, servindo ao público (no cumprimento das penas de galés[53],
por crimes cometidos), a presença escrava foi marcante em Juiz de Fora e
adjacências. Mas a maioria destes escravos estava nos serviços de eito das
lavouras cafeeiras: no plantio, beneficiamento e transporte do café[54].
A legislação escravista reconhecia o escravo, juridicamente, como uma
propriedade semovente, sendo que todo o
produto de seu trabalho pertencia a seu senhor[55].
Reduzido à condição de mercadoria produtora de riqueza, cuja importância se
media pela sua capacidade produtiva, descartado tão logo se tornasse inapto
para o trabalho[56].Oprimidos
por um rígido sistema de exploração do trabalho, os escravos, a maioria,
adaptaram-se à escravidão para sobreviver, resistindo cotidianamente através do
“corpo mole”, do serviço nem sempre bem feito, do furto, da fuga individual ou
coletiva, etc[57]. Outros, a
minoria, combateram a violência com a violência: fugiram, suicidaram-se,
mataram e morreram[58].
Se estas manifestações de resistência
não chegaram a abalar as bases do sistema escravista atingiram diretamente o
domínio dos senhores, provocaram prejuízos econômicos e transtornos[59].
Os registros de casos de fuga na documentação
criminal ocorrem indiretamente[60].
Para viabilizar a fuga e/ou para mantê-la o escravo evasor acabava por
cometer um delito grave: homicídio,
tentativa de morte, lesão corporal, roubo — que resultaram na abertura de
processos ou inquéritos para julgar ou investigar os delitos. Neste momento,
faz-se menção às fugas, muitas vezes com riqueza de detalhes e informações que
nos permitem perceber as estratégias empreendidas pelo escravos para viabilizar
a fuga e manter-se evadido, tais como: a fuga para as matas, fugas para os
centros urbanos, troca de nome, furto de gêneros e roupas, roubo de jóias e
dinheiro objetivando “financiar” a fuga
etc.[61].
Dos nove processos de roubo, em que escravos figuram
como réus, quatro apresentam escravos evadidos como responsáveis pelo delito em
questão[62].
Outros tipos de delitos também nos fornecem informações sobre fugas. Em 28 de
outubro de 1867 o fazendeiro David José Franco entrou nas matas da Fazenda da
Graminha, pertencente a Eduardo Teixeira de Carvalho Hungria, para caçar. No
dia seguinte, preocupado com o amigo que não havia retornado da caçada, Eduardo
Hungria comunicou o caso às autoridades policiais e junto com um grupo de
pessoas entrou na mata em busca do desaparecido. Encontraram um negro ferido,
próximo a uma cafua construída no interior da mata. Affonso, africano de
Angola, de aproximadamente 50 anos, confessou-se escravo evadido de Antonio
Caetano de Oliveira Horta, fugido havia seis anos. Primeiro se escondeu nas
matas do “Bahú”, em terras de seu senhor, depois encontrou-se na mata com Serafim,
também escravo fugido, que o convidou a esconder-se nas matas da Fazenda da
Graminha, onde havia muitas pacas para alimentá-los. Naquele dia de outubro de
1867 David José Franco entrou na mata e
encontrou-se com Serafim e Affonso, dando-lhes voz de prisão. Os escravos
resistiram e David atirou atingindo a
perna de Affonso. Serafim atacou David a pauladas e bateu até matá-lo. Com o
objetivo de atrasarem a busca dos que fossem à procura de David, os escravos
evadidos enterraram seu corpo e pretendiam empreender nova fuga. Serafim seguiu
só, Affonso, ferido, não pode acompanhá-lo[63].
De outra feita, em 1882, Eduardo, escravo de Antonio
Caetano Horta Júnior, e João Baptista, escravo de José Francisco Alves Mandini,
foram responsabilizados pelo roubo de jóias e pertences na residência de Antero
José Lage Barbosa, sita à rua Direita. No auto de perguntas ao réu João
Baptista ele declarou ter 21 anos
incompletos, saber ler e escrever, ser carpinteiro e encontrar-se evadido havia
aproximadamente um ano. Durante o tempo de sua evasão manteve-se escondido em
uma casa vazia que havia servido de morada a Victorino Braga e também na Casa
de Misericórdia do Alto dos Passos[64].Estudos
realizados sobre fugas de escravos em Juiz de Fora e adjacências[65],
empreendidas no jornal “O Pharol”, compreendendo o período 1876-1888 e
totalizando 281 anúncios, apontam 210
casos de fugas individuais e 71 de fugas coletivas. Deste total temos 387
escravos evasores, sendo 25 mulheres, correspondendo a 6,5% em relação ao total.
Esta relação é coerente com a preponderância masculina registrada nos planteis
de Juiz de Fora[66].
A fuga do escravo representava para o proprietário
um prejuízo econômico imediato. A perda de uma peça de produção afetava
imediatamente a reprodução de sua riqueza[67].
Ao protagonizar uma fuga o escravo tornava-se notícia de jornal, onde
normalmente, aparecia nos classificados como objeto a ser comercializado, ou
nas páginas policiais, como criminoso ou evasor. Os anúncios de fuga/captura ao
denunciarem o escravo “fujão” evidenciavam as crueldades do sistema escravista
apresentando suas mutilações e as
marcas dos açoites[68].
Chamou-nos a atenção a quantidade de
auto-extermínios ocorridos em Juiz de Fora, quando comparados com outras
regiões. Ana Maria Faria Amoglia encontrou 46 casos de suicídio de escravos e duas tentativas de
morte. Mesmo inferindo, como a autora, que alguns destes casos tidos como de
suicídio possam não sê-lo de fato, ainda assim o número é considerável[69].
O número de suicídios não diminuiu, significativamente, no período
abolicionista de 1880/88. Assim como a fuga, o suicídio ocasionava um prejuízo
econômico ao senhor do cativo.
Maria Helena Machado encontrou, para os anos
1830-88, onze casos de suicídio de
escravos na região cafeeira de Campinas
(SP), também com grande concentração de população mancípia[70].
Em São João Del Rey, Maria Thereza Cardoso registrou somente um caso de
suicídio de escravos para o período 1870-90[71].
Dos 48 inquérito de suicídio e tentativa
de morte computados em Juiz de Fora, 15 fazem menção a estar o escravo
“evadido” na ocasião em que o corpo foi
encontrado.
Mesmo admitindo que muitos autos se perderam ao
longo do tempo, resultado do descaso de nossos administradores para com os
arquivos públicos, temos que considerar a baixa representatividade dos crimes
de escravos que foram registrados pelo poder judicial da Comarca do Paraibuna.
Como já observamos, os senhores escravistas possuíam o direito privado de punir
seus cativos. Conjugado esse direito com o interesse do proprietário e a
racionalidade econômica do sistema, muitos proprietários de escravos resolveram
internamente parte dos conflitos envolvendo escravos[72].Ainda
assim, registramos 116 casos em que escravos aparecem como sujeitos de delito e
109 casos em que eles aparecem como objetos de delitos.
TABELA 3
PRESENÇA ESCRAVA NOS CRIMES DA COMARCA DO
PARAIBUNA (1830-88)
Crime |
Morte* |
Ferimentos** |
Furto/roubo |
Outros |
Total |
Como réu |
76 |
24 |
10 |
08 |
116 |
Como vítima |
68 |
39 |
— |
02 |
109 |
Fonte: Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora. Processos
Criminais do Período Imperial.
* Incluindo tentativa de homicídio.
** Incluindo denúncias por maus tratos.
A análise da documentação
criminal da Comarca do Paraibuna, no período 1830/88, aponta uma tendência
crescente da criminalidade escrava à medida que o século XIX avançava. No
período 1830-1849 não ficou registrado nenhum caso de crime cometido por
escravo, no período 1850-1859 registramos
oito delitos, elevando-se para 25 no período 1860-69. A década seguinte,
1870-79, registrou um aumento quantitativo muito significativo: 42 casos,
resultado do acirramento das tensões que afetavam o sistema escravista nesta
década[73].
A última década da escravidão também registrou um número elevado de delitos de
escravos: 41casos[74]. Esta mesma
tendência pode ser observada em relação à população livre, conforme já
analisamos no primeira seção.
Década |
Crime contra a pessoa |
Contra a propriedade |
Contra a pessoa e a propriedade |
Outros |
Total |
|||
|
Vítimas enquadradas na Lei de 1835 |
Livres |
Escravos |
Outros* |
|
|
|
|
1850/59 |
01 |
05 |
02 |
— |
— |
— |
— |
08 |
1860/69 |
05 |
13 |
06 |
— |
— |
— |
01 |
25 |
1870/79 |
05 |
12 |
15 |
04 |
01 |
02 |
03 |
42 |
1880/89 |
09 |
11 |
14 |
02 |
— |
04 |
01 |
41 |
TOTAL |
20 |
41 |
37 |
06 |
01 |
06 |
05 |
116 |
Fonte: Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora. Processos
Criminais do Império.
* Consideramos as vítimas cuja condição
não foi identificada.
2.3 A evolução da
criminalidade escrava
Que hipóteses podemos apresentar para
explicar esta tendência crescente da criminalidade escrava ao longo da segunda
metade do século XIX? Ora, a expansão da lavoura cafeeira em Juiz de Fora
ocorreu no período 1850-1870. Na década de 70, do século passado, a Zona da
Mata concentrava 26% da população escrava de Minas Gerais, percentual este que
se elevou para 36% em 1886[75]. A crescente
concentração de cativos é uma explicação para o aumento da criminalidade. Por
outro lado, ao longo da segunda metade do século XIX os senhores de escravos
passaram a enfrentar pressões externas e internas contra a escravidão, vendo
crescer a resistência mancípia através de levantes, fugas, homicídios de
proprietários e seus representantes diretos. Os proprietários de escravos foram
impelidos, pelas circunstâncias, a entregar com maior freqüência o escravo
criminoso para a justiça[76].
Maria Helena Machado tomou como
parâmetro para avaliar o efetivo crescimento da criminalidade escrava a
evolução dos crimes enquadrados na Lei de 10 de junho de 1835, aqueles que
atingiam as autoridades senhoriais[77]:
A hipótese da
existência de uma ampliação efetiva dos crimes de escravos, neste período,
baseia-se na consideração dos homicídios contra senhores e feitores à medida
que estes foram percebidos, tanto pelos senhores quanto pelo aparelho
judiciário, como crimes limites, uma vez que atentavam frontalmente contra os
princípios da sociedade escravista. Conscientes da fragilidade dos mecanismos
paternalistas de que dispunham, os senhores, desde sempre, temeram os ataques
de seus cativos[78].
Em Juiz de Fora registramos 22 casos
de delitos denunciados na Lei de 10 de junho de 1835 entre 1853 e 1883. Destes,
03 referem-se a ferimentos graves e 19 a homicídios de senhores, feitores e
administradores. Das 22 denúncias, 11 foram sentenciadas na mesma Lei, 07 foram
sentenciadas no artigo 193 do Código Penal (relativo a homicídio), 02 ficaram
inconclusos e 02 foram absolvidos. Não registramos nenhum caso de
feitor-escravo que, tendo sido morto por seus parceiros, teve seu homicídio
denunciado na Lei de 1835. Desses 22 casos denunciados na Lei de 10 de junho de
1835 dois referem-se a homicídio do proprietário. Três foram delitos contra o
administrador. Dezessete são relativos a homicídio ou lesão corporal contra o
feitor. Os resultados são coerentes se levarmos em consideração que o feitor
era o representante direto dos interesses senhoriais e estava mais próximo do
cativo, marcando presença na vigilância constante sobre o mesmo nos serviços do
eito, corrigindo-os e castigando-os dia a dia. Os crimes contra a pessoa
destacaram-se sobre os demais. Entretanto, temos que considerar que as pequenas
contravenções ou delitos “menores”, sob a ótica escravista, foram punidos pelos
próprios senhores.
Em diversos casos de furto e
outros crimes contra a propriedade,
cujas denúncias foram dadas contra homens livres, que o proprietário escravista
denunciava estes como receptores de produtos furtados por seus escravos[79]. Alguns
processos de lesões corporais ou homicídio mencionam casos de furtos praticados
por escravos contra seus proprietários. O Código de Posturas de 1857, em seu
artigo 157, estabelecia multa de 10$ a 30$, e oito dias de prisão, para os
comerciantes que negociassem com escravos sem que estes apresentassem uma
licença escrita de pessoa de “boa fé”[80]. Este
dispositivo legal, porém, não foi eficaz .Pode-se inferir que o senhor
escravista não fosse denunciar e entregar à Justiça um escravo seu que viesse a
furtar produtos de sua propriedade.
Quanto aos crimes contra a pessoa
(ferimentos e ofensas físicas), verifica-se que as principais vítimas dos
escravos criminosos foram os homens livres, seguidos dos escravos e por fim dos
senhores e seu correlatos.
Condição da vítima |
Quantidade |
Porcentagem |
Homens livres |
42 |
40,36% |
Escravos |
37 |
30,47% |
Senhores, administradores e feitores |
22 |
20,18% |
não identificados |
06 |
08,09% |
TOTAL |
107 |
100,00% |
Fonte: Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora. Processos
Criminais do
Período Imperial.
Os documentos criminais
em que escravos aparecem como vítimas e/ou réus representam aproximadamente 20%
dos registros. Como observamos, na
tabela de crimes de escravos (Tabela 4), os anos 80 presenciaram um
decréscimo muito pequeno dos delitos praticados por eles, em relação à década
anterior. Uma diferença de apenas 01 delito, considerando, ainda, que a década
de oitenta teve um ano e sete meses a menos que a década anterior. Note-se que
os crimes de escravos contra senhores e/ou seus administradores e feitores
cresceram na última década, evidenciando que as tensões senhor/escravo, em Juiz
de Fora, não diminuíram na última década da escravidão.
3.
ESCRAVOS OBJETOS DE DELITOS
Na defesa de interesses coletivos dos proprietários
escravistas, o Estado, ao longo do século XIX, passou a intervir com maior
freqüência no direito privado dos senhores de cativos, pregou leis de moderação
no tratamento dispensado ao escravo por seus proprietários, reconheceu a
mercadoria escravo como sujeito e objeto de delito, concedeu-lhes alguns
“direitos” (vide Leis abolicionistas)[81].Mas
na prática, no cotidiano escravista da Comarca do Paraibuna, como se processou
a equação dominação/moderação? Ao buscar respostas nos documentos criminais
deparamo-nos com as contradições do sistema escravista. Para tentar compreender
as relações senhor e escravo, o cotidiano escravista em Juiz de Fora, nada
melhor do que dar voz, ouvir os protagonistas: proprietários de escravos,
juristas e outros representantes da lei e, é claro, o cativo.
A Tabela
6 (Escravos vítimas de crimes contra a pessoa em Juiz de Fora e redondezas) nos permite perceber que, ao longo do
século XIX, os escravos passaram a figurar cada vez mais como objetos de
delito, dobrando este número da década de 60 para a de 70 e mantendo-se
praticamente o mesmo percentual nos anos 80 do século XIX. Tal fato se explica
pelos motivos já explicitados: a maior intromissão do Estado no direito privado
do proprietário escravista, a perda da
legitimidade do escravismo e o crescimento urbano da região, principalmente do
município de Juiz de Fora. Cresciam os questionamentos à escravidão, a
população urbana passou a denunciar os casos “abusivos” de maus tratos.
EM JUIZ DE FORA E REDONDEZAS[82]
Crime/ década |
Homicídio e tentativa de morte |
Lesões corporais |
Contra liberdade
individual |
Total |
||||
Condição réu |
Livre |
Escravo |
Outros* |
Livre |
Escravo |
Outros* |
Livre |
|
1840-49 |
– |
– |
– |
01 |
– |
– |
– |
01 |
1850-59 |
04 |
02 |
01 |
02 |
– |
01 |
01 |
11 |
1860-69 |
07 |
04 |
01 |
03 |
02 |
01 |
01 |
19 |
1870-79 |
11 |
14 |
02 |
08 |
01 |
02 |
– |
38 |
1880-88 |
11 |
10 |
01 |
10 |
04 |
04 |
– |
40 |
total |
33 |
30 |
05 |
24 |
07 |
08 |
02 |
109 |
Fonte: Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora. Processos
Criminais do Período Imperial.
* Réus cuja condição não foi identificada
e crimes cometidos por homens livre em co-autoria com escravos.
Quantos foram os escravos que vitimados pelos
maus tratos de seus senhores ou seus representantes diretos (administradores
e/ou feitores) não puderam denunciá-los? Afinal, a lei impedia-os de dar queixa ou de testemunharem
contra seus senhores, salvo os casos em que estivessem amparados pela opinião
pública dos homens livres[83].
E os que conseguiram fugir e se apresentar aos delegados ou subdelegados,
queixando se de maus tratos e sevícias, quando foram ouvidos, quantos
inquéritos se abriram para apurar as
denúncias e quantos se transformaram em processos?
Dos 24 casos de delitos classificados como ofensas
físicas praticadas por homens livres contra escravos 12 referem-se a maus
tratos praticados ou ordenados por senhores, administradores e feitores, sendo
estes acusados como réus[84].
Destes, sete casos foram considerados improcedentes, dois ficaram inconclusos,
dois réus foram absolvidos e um foi condenado. Em alguns casos, os castigos
físicos aplicados pelo senhor e seus representantes e, às vezes, até por
escravos a mando de seus senhores, redundaram em morte. De 22 casos de
homicídio em que escravos foram vítimas de homens livres seis tiveram como
suspeitos os proprietários dos mesmos[85].
Destes seis, 2 ficaram inconclusos, dois foram julgados improcedentes e dois
foram absolvidos. E estes, foram apenas os casos que ficaram registrados, a
grande maioria dos castigos físicos imoderados ocorridos, supomos, não chegaram
ao conhecimento da justiça. Acreditamos que muitos outros até chegaram ao
conhecimento dos homens da lei, mas não
constituíram inquérito, auto de corpo de delito ou processo. O caso de
Ernesto, doze anos, escravo de Marcelino de Brito Pereira de Andrade,
fundamenta nossa crença.
Em 20 de junho de 1873 o
escravo Ernesto fugiu da casa de seu senhor, no município de Juiz de Fora, e
apresentou-se à cadeia da cidade queixando-se de maus tratos, de sofrer surras
aplicadas com bacalhau, amarrado à
escada da casa de seu proprietário. Surras aplicadas por outro escravo e
assistidas por Marcelino de Brito. O delegado pediu um exame de auto de corpo
de delito, constatando que Ernesto apresentava cicatrizes na parte posterior do
tronco, de mais de dois anos, e ferimentos purulentos nas nádegas, resultantes
das surras maisrecentes. Realizou-se um auto de perguntas ao ofendido.
Enviado o processo ao Promotor Público, José Corrêa
e Castro, para oferecer denúncia, o mesmo entendeu que não havia crime e
portanto nada a ser denunciado. Declarou, ainda, que o auto de corpo de delito
estava irregular, pois não se ateve a responder aos quesitos apresentados,
extrapolou ao constatar sevícias antigas. E, a bem dos proprietários de
escravos e da sociedade, aconselhou aos delegados, em casos similares, a não “procederem
tão irregularmente, enviem tais escravos imediatamente a seus senhores,
recomendando a estes moderação.”[86]
Vale a pena conhecer um
pouco mais da conclusão do Promotor José Corrêa e Castro.
Os castigos desta ordem
todavia foram, são e serão tolerados entre nós até que se extinga a classe
escrava, e essa tolerância nasce da necessidade que há em conservar-se o
prestígio do senhor para com o escravo, a fim de que a obediência do escravo
não desapareça, porque então teríamos uma verdadeira conflagração com prejuízo
de todos os proprietários e da sociedade (...) Além disso, não sendo a denúncia
do escravo contra o senhor aceitável perante o espírito de nossa lei, me parece
inútil em tais casos um auto de perguntas como o de folhas, que para nada prestando,
tendo somente o [acoroçoamento] da desobediência do escravo contra os senhores,
e dá lugar a que todos os dias, por fúteis pretextos, vejam-se estes
proprietários privados dos serviços de seus escravos, que [presurosos] correm
para as autoridades, julgando que por esta forma podem vingar-se.[87]
Como vimos, os propalados castigos moderados, quando
não eram cumpridos, geralmente, não ocasionavam prejuízos aos senhores. Dos 12
casos de queixa de maus tratos em escravos, registrados, e preservados pelo
tempo, em Juiz de Fora, nove não foram
adiante (os considerados improcedentes e os inconclusos). E estes representam
apenas a pequena parcela dos casos ocorridos que chegaram a ser registrados.
Possivelmente o mais comum é que os delegados e subdelegados seguissem orientações como as do Promotor Corrêa e Castro... devolvessem o
escravo a seu proprietário sem mais delongas, a fim de poupar-lhes os prejuízos
acarretados pela ausência do trabalho dos mesmos.Raras foram as ações movidas
contra senhores que castigaram imoderadamente seus escravos. O que não quer
dizer que, na prática, os castigos exacerbados não ocorreram. Além disso,
denúncias por agressões físicas deveriam ser custeadas pelo queixoso, a menos
que se comprovasse a sua gravidade para a sociedade ou a miserabilidade do ofendido.
Em 29 de janeiro de 1888 Antônio Cassiano Augusto de
Paula foi acusado de haver mandado aplicar castigos excessivos no escravo José,
pertencente a seus sobrinhos Manuel Antônio Assis e José Francisco de Assis.
Após ter sido seviciado, no arraial do Chácara, José evadiu-se e apresentou-se
à delegacia de Rio Novo, onde o processo teve início, sendo depois transferido
para Juiz de Fora.Interrogado, Antônio Cassiano explicou que, como era seu
costume todos os anos, no mês de outubro, após a capina de sua lavoura,
ofereceu um jantar com pagode a seus cativos. Estavam presentes à comemoração
alguns escravos de seus sobrinhos Manuel Antônio e José Francisco. Durante o
acontecimento dois escravos dos sobrinhos, José e Agostinho, se desentenderam,
e José ameaçou a vida de Agostinho.
José Francisco queixou-se ao tio do mal
comportamento do escravo e este aconselhou-o a mandar-lhe José, para
aplicar-lhe um corretivo. Claro que Antônio Cassiano não admitiu ter surrado ou
mandado surrar José além do aconselhável. Disse que apenas prendeu uma corrente
à argola que José trazia ao pescoço (resultado de parcela da pena que cumpria
pelo homicídio do feitor de Joaquim Antônio dos Santos, na fazenda de Antônio
José de Assis, pai de Manuel Antônio e José Francisco)[88].
No entanto, o auto de corpo de delito constatou surra de bacalhau.Os
depoimentos das testemunhas confirmaram os castigos. Mais do que isto... o
depoimento de Antônio Duque compromete o acusado. Duque afirmou que tendo
sofrido um atentado de morte, praticado por um de seus cativos, entregou o
mesmo à justiça. Sabedor do fato, Antônio Cassiano, encontrando-se com ele no
arraial, teceu o seguinte comentário:
... perguntou-lhe se com
efeito a testemunha [Duque] havia entregado seu escravo criminoso à justiça, ao
que respondeu a testemunha que sim, então replicou, Antônio Cassiano de Paula,
dizendo que a testemunha havia procedido mal, por que a justiça o que queria era
comer dinheiro, e que ele testemunha devia ter feito, o que ele Antônio
Cassiano fez com José, escravo de seu sobrinho Manuel Cândido de Assis, isto é,
surrado com bacalhau ...[89]
Muito interessante foi o desfecho desta história. O
processo foi arquivado e a municipalidade condenada nas custas, pois o Promotor
Público concluiu que “Não achando provada a miserabilidade do
ofendido, nada tenho a requerer por parte da Justiça Pública.”[90]
Decisão muito coerente por sinal. Afinal, José era uma mercadoria à qual
estava negado o status de pessoa. Cabia
a seu proprietário, Manuel Antônio de Assis, o ofendido, queixar-se de seu
ofensor. A relação de parentesco entre Antônio Cassiano e Manuel Antônio, assim
como o aparente prestígio do primeiro conduziram o desfecho desta história.
O homicídio do escravo Teóphilo, ocorrido em março
de 1884 também é elucidativo para que se perceba as contradições do aparato
jurídico do escravismo moderno. Teóphilo, “fiel da casa”, era escravo de
dona Francisca Umbelina Nazareth, proprietária em Vargem Grande. Em um domingo
de 1880 sua senhora e o sinhozinho foram à missa no arraial com a escravaria.
Alegando não estar se sentindo bem, o fiel Teóphilo ficou cuidando da
propriedade e dos escravos que permaneceram na casa. Quando regressaram da
missa, dona Umbelina e o filho Antônio José dos Santos Nazareth não encontraram
mais Teóphilo, que havia se evadido[91].Quatro
anos se passaram até que um mascate italiano encontrou Teóphilo, em Porto Novo
do Cunha (Província do Rio de Janeiro) e o devolveu a seus proprietários. O
caminho de volta, longo e sob sol
forte, Teóphilo fez a pé. Logo após ser entregue, o senhor moço mandou o
escravo Marcellino aplicar uma surra com chicote a Teóphilo, para servir
de exemplo aos demais escravos. No dia seguinte, Teóphilo amanheceu
morto. Abriu-se um processo contra Antônio José dos Santos Nazareth (mandante)
e o escravo Marcellino (mandatário). Condenados em primeira instância no artigo
19 da Lei 2033 de 20 de setembro de 1871 (homicídio doloso), o advogado dos
réus recorreu e eles foram absolvidos em sentença final de 20 de setembro de
1884. Sentença que traduz as contradições e tensões de sua época.
Como no caso do pequeno escravo Ernesto, também aqui
o representante da Lei, o juiz, reconheceu a necessidade dos castigos físicos
como meio de conter e disciplinar o grande contingente de escravos que
cotidianamente eram explorados em trabalhos “sobrenaturais”, “forçados” e “desumanos”. E ainda que
tenha resultado na morte do “fiel”
Teóphilo ... “O réu cometeu o crime no exercício e prática de
um ato lícito”[92].
Também Maria, preta, 29 a 30 anos, casada,
utilizada em serviços domésticos, escrava de Antônio Joaquim Gonçalves, fugiu
da casa de seus proprietários em Juiz de Fora e apresentou-se à cadeia da
cidade em 23/04/1873, reclamando maus tratos e sevícias, praticados, nela e num
seu filho menor, por sua senhora, dona Maria Umbelina da Encarnação. Ao se
apresentar, a escrava encontrava-se ferida e ensangüentada. Maria era reincidente na fuga e na queixa.
Um ano antes ela já havia adotado o mesmo procedimento, mas nesta primeira
ocasião foi devolvida a seus proprietários sem que se tivesse aberto processo
para apurar as queixas[93].Maria,
escrava casada com um homem forro, alega que por ocasião da primeira fuga
encontrava-se grávida, e ao ser devolvida a seus senhores apanhou tanto que
sofreu um aborto dias depois. Segundo a queixosa, ela e o filho apanhavam todos
os dias. Eram tantos os maus tratos “... que por isso pedia intervenção das
autoridades para que fosse vendida a outro qualquer senhor para evitar que ela
suicidasse ...”[94].Ao
ser ouvido, o proprietário alegou que
ele e a esposa tratavam seus escravos com bondade e humanidade e que
desconhecia quem poderia ser o autor dos ferimentos de Maria. “Disse
mais que o único motivo destas repetidas fugas são por que sendo ela casada com
um homem forro, também quer ser livre.”[95]
A testemunha Manuel Joaquim Alves de Oliveira,
vizinho de Antônio Joaquim Gonçalves, contou que por várias vezes ouviu gritos
na casa, como se alguém sofresse castigos e que por vezes já havia apadrinhado[96]
a escrava Maria. No desenrolar do processo, entretanto, o Promotor diz não ter
provas bastantes para denunciar dona Maria Umbelina da Encarnação, pois, desta
feita, os castigos foram leves e as sevícias antigas — as crueldades que
resultaram no aborto de ano antes — não poderiam mais serem detectadas. O
delegado, porém, aconselhou a venda da escrava Maria, baseado no fato de já ter
sido dona Umbelina, anos antes, acusada de castigos violentos em uma preta
velha de sua propriedade.
Outro exemplo significativo foi a denúncia
apresentada por Manuel Antônio da Silva contra dona Antônia Luísa Horta Barbosa
proprietária da Fazenda Cafezal, em
março de 1872. Dona Antônia foi acusada de mandar aplicar castigos, palmatória
e surra de bacalhau, num escravo de sua propriedade, causando sua morte[97].Em
sua carta-denúncia Manuel Antônio disse que o caso tendia a passar
desapercebido porque dona Antônia Luiza era mãe do Promotor Público e, por
certo, o delegado de polícia não iria “jogar as cristas contra esta
autoridade.”[98] As
testemunhas foram chamada a depor reservadamente e atestaram a “humanidade”
e “bondade” de dona Antônia Luísa. Alegaram
desconhecer o acusador Manuel Antônio da Silva.Dados contraditórios nos
permitem questionar tanta “humanidade”
e “bondade”. A testemunha Mariano Gomes da
Silva, vizinho de dona Antonia Luísa há dezoito anos, alegou que a dita senhora
era “um amor” e que
sempre atendia a padrinho quando os escravos dela fugiam e que, além do mais, a
“dita senhora não tem administrador e nem feitor forro”. Se dona Antonia
era “um amor”,
por que seus escravos fugiam para buscar padrinho? Escravos que procuravam
apadrinhamento estavam buscando quem intercedesse por eles junto a seus
senhores, visando escapar a castigos, ou pelo menos minorá-los. Se os escravos
da Fazenda Cafezal tinham o costume de buscar padrinho é porque nesta
propriedade havia a prática da aplicação de castigos físicos rigorosos.
O fato de não haver feitor ou administrador
livres na propriedade dos Horta Barbosa
não abona a “humanidade” e “bondade” de seus
proprietários. O feitor era o elemento regulador do trabalho e mantenedor da
disciplina no interior das unidades produtivas. Livre ou escravo era esta a sua
função: supervisionar os trabalhos e exercer a violência[99].
Não existe comprovação empírica de que feitores-escravos tratassem com mais “humanidade” os seus
parceiros. Mesmo considerando que lhes era necessário um bom relacionamento com
seus parceiros subordinados, temos que considerar, também, que a manutenção do
privilégio alcançado dependia da possibilidade de manter a produtividade e a
disciplina de seus parceiros, o que lhes forçava a agir com rigor.
Não bastassem os dados já explicitados, chamou nossa
atenção o crime ocorrido na Fazenda Cafezal em 1865. Frederico, escravo da
fazenda dos Horta Barbosa, africano, idade alegada de 25 anos, foi acusado da
morte de seu parceiro Joaquim, preto velho
quase cego, responsável pela vigilância do café colhido. Joaquim havia acusado
Frederico por furto de café. Frederico ter-se-ia evadido e retornado, mais
tarde, para vingar-se de Joaquim. Frederico foi condenado a galés perpétuas[100].A
história poderia ter se encerrado aqui, embora com uma curiosidade na sentença,
quando comparada a tantos outros processos envolvendo crimes entre parceiros de
cativeiro no mesmo período. Estranhamente, a pena de Frederico não foi
convertida a açoites e ferros aos pés ou ao pescoço por período determinado,
como geralmente acontecia com escravos criminosos, principalmente se o crime
fosse contra outro cativo. Por que os Horta Barbosa, família de prestígio, (o
marido de dona Antônia Luísa havia sido um Conselheiro do Império, seu filho
Luiz Eugênio era um advogado, que mais tarde chegou a promotor público e
presidente de Província), não tentaram converter a pena de Frederico em açoites
e ferros (conforme o artigo 60 do Código Criminal)? Afinal, ele era do sexo
masculino e declarou ter 25 anos, a
princípio, uma peça valiosa[101].
Uma das testemunhas que
depôs neste processo foi Manuel Carlos Marcondes, homem livre, administrador da
Fazenda Cafezal em 1865. Este dado contraria as informações de Mariano Gomes da
Silva, testemunha no outro processo acima mencionado, de que na Fazenda Cafezal
não havia o costume de se empregar administradores e feitores livres. Óbvio que
este costume, de usar feitores e administradores escravos, pode ter sido adquirido nos sete anos que
separam os dois processos.
A história de Frederico é
retomada em 1878, quando seu curador envia uma petição de graça ao Imperador.
Embora extensa, tomamos a liberdade de reproduzi-la quase que na íntegra.
... O suplicante residiu com seu senhor na
fazenda cafeial (sic) distante algumas milhas da cidade do Paraibuna Província
de Minas Gerais, lugar onde gozava de maior estima de seus senhores, despeitado
com um seu parceiro de nome Joaquim, desapareceu este e porque fosse muito
reprovada conduta (sic) e odiado pelos senhores. Dias passados soube-se que ele tinha morrido recaindo
graves suspeitas em outros da casa, mas como o suplicante era intrigado com ele
e os que maiores indícios tinham de culpabilidade, faziam mais falta à fazenda
do que o suplicante a qual deu em resultar a condenação em galés perpétuas.
Há aqui porém um mistério
que o suplicante não pode investigar, pois após este fato desastroso, um
sussurro geral se espalhou por toda a fazenda contra alguém da família e isto
ainda mais se prova pelo suborno costumado a praticar de atos tais. Assim que a
liberdade foi prometida ao suplicante se este confessasse o delito.
Fosse como fosse o
suplicante é quem está na prisão a doze anos e portanto só ele é criminoso
incapaz de semelhante atentado e disposto somente para sofrer humilhações do
cárcere a que por sua cruel desventura se acha para sempre lançado.
Senhor! Quem pede não
pode acusar: o processo dirá o que falta ao magnanimo coração de V. M.
Imperial, falaram também as lágrimas e os soluços d’um desgraçado que com
gemidos partidos do fundo d’alma
Pede pelo amor de Deus,
Perdão, Perdão[102].
Frederico, em sua petição, deixa-nos entrever a
hipótese de que o responsável pela morte de Joaquim fosse um de seus senhores, que lhe ofereceu a liberdade em troca
da sua responsabilidade pelo crime ocorrido. Jamais saberemos quem de fato
matou Joaquim, mas o que importa aqui é a possibilidade de concluir que a
família Horta Barbosa, como tantas outras famílias escravistas, não primava
pela bondade e humanidade no tratamento dado a seus escravos. E ainda, a
hipótese de que Frederico tenha assumido a culpa por um crime de seus senhores
abre a possibilidade de que ele não tenha sido o único cativo a encobrir
delitos de seus proprietários em troca de promessas de liberdade ou outros
“privilégios”. Concordamos todavia, que o uso de castigos físicos imoderados
não eram corriqueiros. Não interessava ao proprietário a mutilação ou a perda
de uma peça tão valiosa e, além do mais, geradora de riqueza. Mas a
racionalidade econômica não foi suficiente para evitar casos dessa natureza.
Em 1879,
Antônio Augusto Vieira castigou dois escravos seus, Adão e João, com
requintes de Sade. Os dois escravos, recém-adquiridos, fugiram da propriedade
de Antônio Augusto, que saiu na captura dos mesmos. João foi capturado na ponte próximo ao rancho da tapera (
“subúrbios” de Juiz de Fora) e, sob
olhares de diversas testemunhas admiradas, amarrado, surrado, pisoteado e ameaçado
de ser jogado ponte abaixo, o que não se efetivou devido à intervenção dos presentes[103].Dias
depois, Adão retornou à propriedade de Antônio Vieira, apadrinhado pelo Capitão
Antônio Dias, pela senhora de Augusto Vieira e pelo feitor da fazenda.
Desrespeitando os padrinhos, Vieira enviou o escravo para a roça e, juntamente
com mais quatro escravos seus, surrou-o exageradamente. Apesar de muito
castigado, Adão trabalhou o resto daquele dia, na manhã seguinte enfermou-se e
faleceu cinco dias depois. Abriu-se processo para apurar os fatos, sendo
denunciado Vieira e os co-réus escravos Thomé, Theodoro, Severino e Vicente.
Testemunhas de prestígio confirmaram os fatos e alegaram ser voz pública que
Vieira tratava mal a seus escravos. Os réus foram denunciados por homicídio,
menos Vieira, que faleceu antes da data da denúncia.Francisca Augusta Ferreira
Campos, esposa de Vieira, contratou advogado para defender seus escravos. O
advogado solicitou para os mesmos as escusas do artigo 10 parágrafo 3o
do Código Criminal.
Não há negar que, na
hipótese dos autos, viram-se os indiciados na alternativa ou de desobedecerem
ao seu senhor incorrendo assim nas mesmas sanhas e rigores de que eram
testemunhas ou se faltasse à prática das barbaridades cometidas. A perspectiva
que se alternaria à desobediência dos indiciados era desumano martírio de que
era vítima o seu parceiro _ o infeliz Adão _ . Nestas condições o medo
irresistível de que fala o artigo 10 parágrafo 3o, medo
irresistível que leva de vencida
uma coragem ordinária, influindo muito naturalmente no ânimo dos denunciados,
não lhes permitia proceder de outra sorte[104].
(Grifos no original).
O promotor não aceitou o recurso, mas os escravos
foram absolvidos pelo júri em 10 de julho de 1880.
Os 109
crimes registrados, em que escravos aparecem como vítimas, foram crimes contra
a pessoa, coerente com a situação jurídica do escravo. Escravos eram
mercadorias, não proprietários. Portanto, raramente iriam sofrer crimes contra
a propriedade, e em Juiz de Fora não se registrou nenhum delito desta natureza.
Os principais algozes dos escravos foram os homens livres, seguidos de seus
próprios parceiros.
Condição
do réu |
Quantidade |
Porcentagem |
Homens
livres |
59 |
54% |
Escravos |
37 |
35% |
Não
identificados |
13 |
11% |
Total |
109 |
100% |
Fonte: Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora. Processos
Criminais do
Período Imperial.
Afirmamos que a base do escravismo foi a coação.
Entretanto, a força por si só não teria mantido a escravidão por tantos anos.
Houve, ao lado da ameaça e da coação, uma política senhorial de dominação,
baseada num “sistema diferencial de incentivos - no intuito de tornar os
cativos dependentes e reféns de suas próprias solidariedades e projetos
domésticos.”[105]
Incluem-se nesta rede de incentivos, a constituição de famílias — que tornam os
escravos especialmente vulneráveis, dificultando as fugas individuais por
exemplo — a possibilidade da formação de um pecúlio, a economia própria do
escravos, laços de compadrio etc[106].
Os
processo utilizados neste capítulo são ricos em exemplos da convivência da
coação com a concessão. Antônio Augusto Cassiano de Paula ofereceu um jantar
com pagode a seus escravos para comemorar a capina de sua lavoura, uma visível
manifestação de incentivo. Mas não hesitou em mandar castigar José para além da
moderação, manifestação da sua prepotência e arbitrariedade.
Theóphilo era um escravo privilegiado, o “fiel da
casa”, digno da confiança de seus senhores, responsável pela
escravaria na ausência dos mesmos ... mas quando teve a oportunidade, fugiu, e
pagou com a vida a ousadia.
Maria era casada com um homem forro. Não sabemos se
ao se casar, o marido de Maria (Adão )
já era livre ou se sua liberdade foi adquirida depois, concessão dos senhores
ou resultado de compra por ele próprio. De qualquer forma, há em todas estas
hipótese manifestação de favores. Se Adão adquiriu a liberdade com pecúlio
próprio, os senhores deram-lhe condições de formar seu pecúlio. Se ele a
conquistou por “benevolência” de seus
senhores, estes concederam-lhe um favor. Se Adão nunca pertenceu a
Antônio Joaquim Gonçalves, ainda assim eles concederam um favor a Maria,
autorizando seu casamento com um homem liberto. Mas Maria era cativa ... não
podia acompanhar o marido livre, além disso era maltratada com regularidade, a
crer em suas alegações e nas testemunhas.
O mesmo Estado que propunha Leis moderadoras no
tratamento dado ao cativo pelos senhores, reconhecia a estes senhores o direito
e a necessidade de castigarem seus cativos, para garantir a manutenção da
submissão e da dominação. E quando os castigos resultaram em morte, ainda
assim, a justiça absolveu o responsável. Mas afinal, qual grupo social
elaborava e garantia a aplicação das leis na sociedade escravista? A quem servem as Leis? À conveniência de uma parcela da elite
escravista imperial...Longos anos de predomínio de relações escravistas de
produção e dominação. Seria ingenuidade pensar que a escravidão foi imutável ao
longo de seus quase quatrocentos anos de existências. O escravismo adaptou-se
às transformações impostas pelo tempo. Ao longo do século XIX o senhor
escravista teve que ceder, que adaptar-se aos novos ventos, às pressões
anti-escravistas, à afirmação do Estado Nacional que procurava ampliar sua área
de atuação, intervindo com mais freqüência nas relações entre senhores e seus
cativos. A sociedade escravista, que conferiu a uma parcela significativa de
homens o status de coisa, de mercadoria, — portanto, sujeito às leis de mercado
— não pôde entretanto, anular a subjetividade do ser escravo. Não foi diferente
em nossa região. De formas variadas os escravos buscaram conquistar espaços de
resistência à exploração sofrida. Adaptaram-se ao escravismo, é verdade, mas não foram passivos a ele. Impuseram
limites de tolerância, fugiram, furtaram, suicidaram-se, mataram... sofreram
com os maus-tratos... morreram vitimados pela violência inerente ao sistema.
Marcaram seus espaços de atuação na história.
A expansão cafeeira ocorrida na região de Juiz de Fora, na
segunda metade do século XIX,
proporcionou uma capitalização que foi parcialmente reinvestida num
complexo cafeeiro, tendo a cidade de Juiz de Fora assumido a posição de pólo
cultural e comercial da região. O crescimento urbano atraiu para a cidade um
contingente significativo de homens livres, que somados aos cativos absorvidos
pela lavoura cafeeira, conferiram ao município, tanto na sua área urbana quanto
rural, um grande conglomerado humano. Ao lado do progresso material vimos
crescer vertiginosamente a ocorrência da criminalidade, praticada por homens
livres e por cativos, com predominância dos crimes contra a pessoa (homicídio,
tentativa de homicídio, ofensas físicas).
A análise da criminalidade praticada e sofrida pelos
cativos nos permite algumas inferências. Ao longo do século XIX, até as
vésperas da abolição, a criminalidade escrava cresceu em Juiz de Fora e região.
Por um lado temos que considerar que os senhores de escravos, pressionados
pelas leis anti-escravistas e movimento abolicionista, passaram a entregar, com
maior freqüência, seus escravos criminosos para o julgamento da justiça. Por
outro, se consideramos que ao longo deste período cresceram o número de denúncias
enquadradas na Lei especial de 1835 (julgamento sumário para escravos que
ferissem ou matassem seus senhores, administradores, feitores e familiares dos
mesmo) — tipo de crime que sempre foi considerado grave, e portanto entregue
para julgamento — podemos inferir que de fato houve um crescimento da
criminalidade cativa.
O trato com a documentação judicial, nos mostrou que
nas poucas vezes em que escravos conseguiram queixar-se de seus senhores por
maus tratos, pedindo exame de corpo de delito, as conclusões dos delegados ou
subdelegados eram de que não havia indícios para prosseguir as investigações,
que os castigos haviam sido leves, apenas correcionais. Outros tantos
prosseguiram para além dos exames de corpo de delito, chegando a haver um
inquérito para apuração da queixa, mas o promotor não dava denúncia alegando
não haver provas suficientes. Raras foram as denúncias que chegaram a
constituir processos e ir a julgamento. Provavelmente a influência do senhor do
escravo junto às autoridades locais determinava, na maioria das vezes, o
andamento do caso. Mesmo as denúncias dadas por pessoas livres, de menor
prestígio social que o acusado, não eram levadas a termo.
-
* Este artigo é uma versão, ligeiramente modificada, de nossa Monografia de Especialização em História do Brasil, intitulada Cotidiano, criminalidade e conflito nas relações entre senhores e escravos na Comarca do Paraibuna (1830/90). Juiz de Fora: UFJF, 1998.
1Até 1850, quando o arraial de Santo Antônio do Paraibuna foi elevado à categoria de Vila, a região de Juiz de Fora pertencia à Comarca do Rio das Morte. A partir de 1850 foi criada a Comarca do Paraibuna. Ver, ESTEVES, Albino. Álbum do município de Juiz de Fora. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas, 1915, p. 54 e COSTA, Joaquim Ribeiro. Toponímia de Minas Gerais (Com estudo histórico da Divisão Territorial e Administrativa). Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado, 1970, p. 272.
[3] BUENO, José Antônio Pimenta. Apontamento para o Processo Criminal Brasileiro. Rio de Janeiro: Emprenza Nacional do Diário. 1857, e Código Criminal do Império do Brasil.
[4] FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 17-20.
[5]CORRÊA, Marisa. Morte em Família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro, Graal, 1983, p. 37, apud, AREND, Silvia Maria Favero. Considerações a cerca do uso de processos penais como fonte documental pelos Historiadores. In: ARQUIVO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL. Maria Degolada: mito ou realidade? Porto Alegre: EST, 1994, p. 66.
[6]As informações relativas ao Inquérito, Denúncia e Interrogatório foram coletadas no texto de: AREND, Sílvia Maria Fávero, op. cit. p.66-71.
[7] FAUSTO, Boris, op. cit. p. 9.
[8] A este respeito ver: ANDRADE, Rômulo Garcia de op. cit. e PIRES, Anderson, op. cit.
[9] A este respeito ver. GOODWIN JÚNIOR, James Willian. A “Princeza de Minas”: a construção de uma identidade pelas elites juizforanas. 1850-1888. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 1996.
[10] PIRES, Anderson. Capital Agrário, investimento e crise da cafeicultura de Juiz de Fora (1870-1930). UFF: Tese de Mestrado, p. 36-61.
[11] ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão à comunidade escrava e seus vínculos de parentesco: Zona da Mata de Minas Gerais, século XIX.. São Paulo: Universidade de São Paulo, Tese de doutoramento, 1995, p. 80-95.
[12] Idem, p. 155.
[13] Mapa aproximado da população do município da Vila de Santo Antônio do Paraibuna”, 23 de outubro 1855. Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora. AHCJF. Fundo Arquivo da Câmara no Império, série 139.
[14] COSTA, Joaquim Ribeiro. Toponímia de Minas Gerais; Com estudo histórico da Divisão Territorial Administrativa. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado, 1970, p. 350.
[15] Maiores esclarecimentos sobre esta questão ver: LACERDA, Antonio Henrique Duarte. A Evolução da População Escrava e os Padrões de Manumissões em Juiz de Fora (1844/88). Monografia de Especialização em História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF.1998
[16] Lei 2040 de 28 de setembro de 1871, apud MARTINS, Antonio de Assis (org.). Almanak administrativo, civil e industrial da Província de Minas Gerais; do ano de 1874 para servir no de 1875. Ouro Preto: Typographia de Juiz de Fora de Paula Castro, 1874, p. 639-63.
[17] AHUFJF. Fundo Benjamin Colucci. Listas de matrículas de escravos se encontram em vários inventários posteriores a 1872 e SLENES, Robert. O que Rui Barbosa não Queimou: Novas Fontes para o Estudo da Escravidão no século XIX, In: Estudos Econômicos. São Paulo: USP, 13 (1):117-149, Jan/abr. 1983.
[18] AHUFJF, Fundo Benjamin Colucci. Inventário da Baronesa de Sant’Anna, n. 475, caixa 54B.
[19] AHCJF, Fundo Cartório Maninho Faria. Escritura de Compra e Venda. Primeiro Ofício de Notas de Juiz de Fora, caixa 03, livro 22, folhas 38v-42.
[20] GAMMA, Affonso Dionysio. Código Penal Brasileiro (Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890). 2 ed. rev. ampl. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva, 1929, p. 475.
[21] BALISE, Marcelo Otávio Neri de Campos. Criminalidade e cidadania na corte imperial: o clamor dos missivistas na imprensa periódica (1840-1850). In: Discursos sediosos: crime, direito e sociedade, p. 197.
[22] Idem.
[23] Código do Processo Criminal do Período Imperial, op. cit., p. 75.
[24] Idem, p. 57.
[25] Idem, p. 189.
[26] FAUSTO, Boris. op. cit p. 20.
[27] GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978, p. 63.
[28] Idem, p.66.
[29] CASTRO, Hebe Maria Mattos. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil séc. XIX. Rio De Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 138.
[30]MACHADO, Maria Helena P. T., p. 27-33.
[31] CARDOSO, Maria Thereza. P. Padrões de criminalidade em São João Del-Rei, século XIX: primeiras anotações sobre processos criminais. LPH, Revista de História. Ouro Preto, n. 7, p. 140-141, 1997.
[32] A este respeito ver: SAES, Décio, A Formação do Estado Burguês no Brasil (1888-1891). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985 e CASTRO, Hebe Maria Mattos de, op. cit.
[33] SAES, Décio, op. cit. p. 103.
[34] Idem, p. 103 a 113.
[35] AZEVEDO, Célia Maria de. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites - Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.118.
[36] SAES, Décio, op. cit., p. 104.
[37] MACHADO, Maria Helena P. T., op. cit., p. 27-33.
[38] A este respeito ver, CARDOSO, Maria Thereza P., op. cit.; CASTRO, Hebe Maria Mattos de, op. cit.; MACHADO, Maria Helena P. T., op. cit..
[39] SAES, Décio. Op. cit. p. 104, nota 73.
[40] Idem, op. cit. p. 134
[41] Idem.
[42] Estas idéias são colocadas por Silvia Lara em seu estudo sobre o cotidiano escravista em Campos dos Goitacases (1750-1808), mas acreditamos que são válidas, também, para o período imperial. LARA, Silvia. Coisas e pessoas, in: Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 341-355, passim.
[43] SLENES, Robert, Senhores e subalternos no oeste paulista. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v. 2, p. 237.
[44] GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada, op. cit., p. 25.
[45] GENOVES, Patrícia Falco & SOUZA, Sonia de. Peças de ébano: a legislação escravista em Juiz de Fora. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v.1, n. 1, p. 35. <http://www.ufjf.br/~clionet/rehb>
[46] Idem, p. 35-46 e passim.
[47] Idem p. 39.
[48] A este respeito ver, GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada, op. cit. MACHADO, Maria Helena P. T., op. cit., e SAES, Décio, op. cit.
[49] AHCJF. Fundo Câmara Municipal no Império, série 163/2, 28 de junho de 1862.
[50] AHCJF. Fundo Câmara Municipal no Império, série 92, Relatórios apresentados à Câmara por Fiscais, 1854/1888, 191 itens.
[51] AHCJF. Fundo Câmara Municipal no Império, série 90, Documentos do Fiscal da Câmara Municipal de Juiz de Fora referentes a Posturas Municipais, 09 de janeiro de 1860.
[52] GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada, op. cit., p. 27.
[53] Serviços obrigatórios prestados pelos escravos criminosos.
[54] GUIMARÃES, Elione Silva e GUIMARÃES, Valéria Alves. Aspectos Cotidianos da escravidão em Juiz de Fora. Juiz de Fora: Prefeitura de Juiz de Fora, 1996, p. 16-29. (Digitado)
[55] GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada, op. cit., p. 79.
[56] GOMES, Núbia Pereira de Magalhães & PEREIRA, Edmilson de Almeida. Negras Raízes Mineiras: Os Arturos, Juiz de Fora: EDUFJF e Ministério da Cultura, 1988, p. 55.
[57] GORENDER, Jacob A escravidão reabilitada, op. cit., p. 34-36 e 121-122.
[58]Idem, p. 122.
[59] GOMES, N. P. de Magalhães & PEREIRA, E. de Almeida, op. cit., p. 68-69.
[60] CASTRO, Hebe Maria Mattos de,.op. cit., p.169-170.
[61] AHCJF. Fundo Processos Criminais do Forum Benjamin Colucci no periodo Imperial.
[62] AHCJF. Fundo Processos Criminais do Forum Benjamin Colucci no período Imperial, séria 26: Processos de Crime Contra a Pessoa e a Propriedade.
[63] Idem, processo de 29/10/1867.
[64] Idem, processo de 21/08/1882.
[65] Para o estudo de fugas, foram utilizados os anúncios de fuga de escravos publicados no jornal “O Pharol”, de Juiz de Fora, no período 1876-1888. Estes anúncios dizem respeito à Zona da Mata como um todo, embora a grande maioria seja referente a Juiz de Fora e seus distritos.
[66] ANDRADE, Rômulo Garcia. Um silêncio na Historiografia de Minas Gerais p. 7-10 (mimeografado); e LACERDA, Carla Delgado. Fuga de escravos no Jornal “O Pharol” (1876/1888). Monografia de Especialização em História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, 1998.
[67] GOMES, N. P. de Magalhães & PEREIRA, E. de Almeida, op. cit., p. 73.
[68] Idem, p. 46.
[69] AMOGLIA, Ana Maria Faria. Um suspiro de liberdade: suicídio de escravos no município de Juiz de Fora (1830-1888). Trabalho de Apresentação como Bolsista do CNPq. Juiz de Fora: UFJF, 1998., sob a orientação de Rômulo Garcia de Andrade.
[70] MACHADO, Maria Helena P. T., p. cit., p. 29.
[71] CARDOSO, Maria Thereza P., op. cit. ,p.140-141.
[72] MACHADO, Maria Helena P. T., op. cit., p. 28.
[73] Idem, p. 33.
[74] AHCJF. Fundo Processos Criminais do Forum Benjamin Colucci no periodo Imperial.
[75] ANDRADE, Rômulo Garcia de. Escravidão e cafeicultura em Minas Gerais: ocaso da Zona da Mata. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 11, n. 22, mar.-ago., 1991, p. 96.
[76] SAES, Décio,. op. cit., p.113.
[77] MACHADO, Maria Helena P. T., op. cit., p. 34-37
[78] Idem, p. 35.
[79] AHCJF. Fundo Benjamin Colucci, Processos Criminais do Período Imperial relativos a Crimes Contra a Propriedade.
[80] AHCJF. Fundo Câmara Municipal no Império. Série 163/1,Código de Posturas Municipais de 1857.
[81] SAES. Décio, op. cit., p.112-113.
[82] Escravos foram considerados vítimas em mais 63 documentos criminais. Destes, 48 referem-se a suicídio ou tentativa de auto-extermínio (conforme tabela de suicídio apresentada anteriormente), outros foram considerados como morte natural ou acidental.
[83] GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial, o. cit., p. 69.
[84] AHCJF. Fundo Benjamim Collucci, série 15, Processo Criminais de Ofensas Físicas.
[85] Na Tabela 06 constam 30 escravos vítimas de homens livres. Mas, como as tentativas de morte foram computadas junto com homicídios, ocorre a diferença numérica que o leitor está constatando.
[86] AHCJF. Fundo Processos Criminais do Forum Benjamin Colucci no periodo Imperial, Série 15, Processo Criminal de Ofensas Físicas, processo de 20/06/1873.
[87] Idem, folha 7 .
[88] O artigo 60 do Código Criminal do Império estabelecia que “Se o réo fôr escravo, e incorrer em prna, que não seja a capital, ou de galés, será condenado na de cóutes, e, depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo temppo e maneira que o Juiz designar”. Código Criminal do Império, p. 150.
[89] Idem, série 15, processo de 30/01/1888, folha 32.
[90] Idem, folha 42.
[91] Idem, série 11, 28/03/1884.
[92] Idem, sentença final, folhas sem número.
[93] Idem, Série 15, Processo Criminal de Ofensas Físicas, processo de 23/04/1873.
[94] Idem, folha 3, verso.
[95] Idem, folha 5 verso.
[96] Era comum que escravos que evasores, criminosos ou que cometessem qualquer outro ato que pudesse redundar em punição, buscassem a proteção de pessoa influente junto a seu proprietário a fim de intervir por ele, visando minorar os castigos que lhes seriam aplicados.
[97] AHCJF. Fundo Processos Criminais do Forum Benjamin Colucci no periodo Imperial, série 11, Processo Criminal de Homicídio, processo de 16/03/1872.
[98] Idem.
[99] LARA, Silvia, op. cit., p. 166 a 169.
[100]AHCJF. Fundo Processos Criminais do Forum Benjamin Colucci no periodo Imperial, série 11, Processo Criminal de Homicídio, processo de 27/07/1865.
[101] AHUFJF. Fundo Benjamin Collucci. Inventário do Conselheiro Luiz Antônio Barbosa, referência 233, caixa 20B. No inventário do Conselheiro Luiz Antônio Barbosa, marido de dona Antônia Luiza Horta Barbosa e pai de Luiz Eugênio Horta Barbosa, aberto em 06/11/1861, na parte de relação de bens, aparece um único escravo de nome Frederico, idade declarada de 25 anos, avaliado em 1:300$000 (um conto e trezentos mil réis) e, também um único escravo Joaquim, idade declarada de 40 anos, avaliado em 1:000$000 (um conto de réis), provavelmente os mesmos envolvidos no processos de 1865. Apesar de Frederico dizer por várias vezes, quando interrogado, ignorar a sua idade e, mais tarde declarar ter 25 anos, isto no processo de 1865, acreditamos ser a mesma pessoa uma vez que os cálculos das idades eram feitos por aproximação e declarado de acordo com as conveniências do momento. Também não consta do inventário que Frederico fosse portador de alguma doença ou defeito físico. O preço médio de um escravo da faixa etária de Frederico, em 1863, era de 1:550$000 (um conto e quinhentos e cinqüenta mil réis). Ver: ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão à comunidade escrava..., op. cit., p. 59.
[102] AHCJF. Fundo Processos Criminais do Forum Benjamin Colucci no periodo Imperial, série 11, Processo Criminal de Homicídio. Petição de Graça do escravo Frederico, de 27/07/1865.
[103] Idem, Processo Crime de homicídio, 03/12/1879.
[104] Idem.
[105] SLENES, Robert, op. cit., p. 237.
[106] Para os casos de Juiz de Fora e Muriaé ver: ANDRADE, Rômulo Garcia de. Limites impostos pela escravidão ...