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Wednesday, 11 November 2015


Il passo più difficile è quello dell'uscio.

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 CAPÍTULO I

ESTRUTURAS DE LINGUAGEM E FORMAS DE PENSAMENTO

"Neste Qur`an, expusemos aos homens todos os
tipos de mathal... É um Qur`an árabe..."

(Alcorão 39, 027-028).

I.1 Língua e forma de pensamento

Neste capítulo, indicaremos os pontos de nosso referencial teórico relativos às relações entre estruturas de língua e formas de pensamento. Sete características da língua/forma de pensamento árabe que nos permitirão, em capítulos seguintes, avaliar o destacado papel desempenhado pelos provérbios na tradição cultural árabe.

Esse referencial teórico procede, principalmente, de um extraordinário artigo do filósofo alemão contemporâneo Johannes Lohmann ([1]), relacionando estruturas lingüísticas e formas de pensamento.

O autor mostra a relação entre a língua árabe e a filosofia árabe ([2]) e a correspondente relação entre a língua grega clássica e suas filosofia e produções culturais ([3]).

Lohmann, mais preocupado com a filosofia strictu senso, não fala explicitamente em provérbios, mas, a partir de seus sugestivos conceitos, poderemos mostrar como os amthal são a mais acabada expressão da "forma de pensamento" árabe.

Uma primeira observação sobre as relações entre língua e forma de pensamento é a de que "o que nos interessa não são as línguas em si, mas as línguas enquanto pré-determinam uma certa concepção de mundo para o falante, ou como diz Heidegger, eine Erschlossenheit des Daseins" ([4]).

Em outras palavras, o alcance do pensamento condiciona-se pela linguagem. Não só pelo maior ou menor número e profundidade de conceitos e potencial expressivo dos vocábulos, mas também (e principalmente) pelas estruturas peculiares de cada língua ou famílias de línguas.

Assim, cabe falar num sistema língua/pensamento, que, no caso do grego, é justamente denominado por Lohmann por logos e, no caso do árabe, por ma'na.

"O conceito de ma'na, `intencionalidade' ([5]), é tão característico da forma árabe de pensamento, como o é a noção específica do termo grego logos, em sua concepção original, para a forma de pensamento do grego clássico. E, além do mais, justamente por essas duas noções, ou, por assim dizer, sob os auspícios dessas duas noções, é que estas duas formas de pensamento, encarnadas, cada uma em uma língua determinada - o grego clássico e o árabe clássico - exprimiram-se como tais em uma filosofia" ([6]).

I.2 O verbo ser e a frase nominal

Assim, um primeiro fato gramatical/mental que fundamenta o conceito lohmanniano de língua/pensamento, dá-se em torno dos peculiares usos do verbo ser. Ao contrário do árabe, no centro semântico do sistema grego, "encontra-se o verbo esti (ser), que, segundo Aristóteles, está implicitamente contido em qualquer outro verbo" ([7]).

O ocidental, hoje, desde o início da aprendizagem formal da língua, está acostumado a pensar que toda frase é composta de nome e verbo. Quando, porém, entra em contato com a gramática árabe, surpreende-se com a presença constante da frase nominal, isto é, com o que, do ponto de vista ocidental, se considera frase nominal.

Para o árabe - onde simplesmente não existe o verbo ser como verbo de ligação - é muito mais freqüente e natural a frase nominal do que para o ocidental que, nesses casos, pressupõe implícito o verbo ser.

Essa função copulativa do verbo ser é uma particularidade das línguas indo-européias, a que estamos tão habituados que nem reparamos que ela é dispensável e, até mesmo, inexiste em outras famílias lingüísticas.

Nós mesmos prescindimos do verbo ser em certos contextos ([8]) e, particularmente, em alguns enunciados proverbiais, como:

Tal pai, tal filho.

Casa de ferreiro, espeto de pau.

Cada macaco em seu galho

Chamemos a atenção, desde já, para este fato de extrema importância: não por acaso, é precisamente no campo dos provérbios que o ocidental aproxima-se da estrutura lingüística (e da forma de pensamento...!) árabe.

Como dissemos, a tradição ocidental herdou a consideração de que o verbo ser - que o português e o espanhol desdobram em ser e estar ([9]) - está presente (ou pelo menos implícito) em toda sentença e subjaz a toda ação verbal ("Chove" = "É (/está) chovendo").

Assim, os ocidentais são inconscientemente induzidos a pensar na presença do verbo ser (/estar) e, nos exemplos acima, facilmente poderiam torná-lo explícito: "Tal como é o pai, tal é o filho"; "Em casa de ferreiro, o espeto é de pau", "Que cada macaco esteja em seu galho" ([10]).

Se o emprego da frase nominal para o ocidental pretende expressar algum tipo de ênfase peculiar ([11]), já o árabe, ao empregar a frase nominal, está se exprimindo de forma espontânea, condizente com sua postura diante da vida, com seu espírito essencialmente poético. Daí, como dizíamos, a particular afinidade da língua árabe com a estrutura dos provérbios, como se pode ver nos seguintes provérbios libaneses:

(#7) Cão do grande, grande e cão do príncipe, príncipe [FGHL, 1739].

(No orig.: Kalb al-kabyr kabyr wa kalb al-amyr amyr. O sentido é claro: "O cão que pertence ao homem grande deve - em atenção a este - ser tratado com a mesma deferência devida a seu dono e, do mesmo modo, o cão do príncipe é, por extensão, príncipe também").

(#8) A cadeia (é; ou foi feita) para os homens; o chorar (é; ou compete a), para as mulheres [FRHA, 1345].

(#9) Opressão do gato e não justiça do rato [FRHA, 1298].

(Prefiro, é mais suportável (ou "se não houvesse outra possibilidade de escolha...") a opressão exercida pelo gato no poder do que a justiça do rato. O sentido é claro: o mais decisivo é a retidão moral do poderoso...).

Para o sistema logos, a pretensão de correspondência entre a realidade em si mesma e o pensamento, é possível precisamente pelo papel exercido pelo verbo ser: presente, tanto na realidade, como (ao menos, implicitamente) em qualquer juízo. E assim, o pensamento pretende homo-logar o real.

Encontramos uma projeção desse sistema, não só na filosofia grega, em que um Parmênides chega a afirmar: Tò gàr auto noein estin te kaì einai ("Na verdade, pensar e ser é, ao mesmo tempo, a mesma coisa"), mas, também na Geometria, ciência grega por excelência. A geometria grega ([12]) é o modelo acabado do sistema grego, que Lohmann considera uma "língua de visão", em correspondência, tanto quanto possível, bijetora com o real.

Esse "tanto quanto possível" impõe seus limites: por exemplo, na geometria grega, não encontraremos o zero (o número zero não tem correspondente-logos com o real) e é conhecido o escândalo histórico produzido pela descoberta da incomensurabilidade de grandezas (o número irracional, para eles a-logos!, entra em contradição com o próprio sistema de pensamento grego). E, de um modo positivo, Euclides afirma: o um é a realidade!

Já o árabe é diferente. Seu sistema língua/pensamento não é logos, mas ma'na: prevalece não a pretensão de a linguagem acompanhar pari passu o ente, mas o sentido mental (intentio, ma'na), independentemente da correspondência-logos com o real. Daí que a ciência árabe, por excelência, seja a álgebra (com zero e números negativos). E o irracional, na incomensurabilidade geométrica é aceito com total naturalidade pelo árabe ([13]).

I.3 Associação imediata

Se o sistema língua/pensamento logos, centrado no verbo ser, promove a busca de correspondência exata entre pensamento e realidade ([14]), o sistema árabe, ma'na, tende a um pensamento (e a uma comunicação...) por associação imediata, em que as conexões lógicas não precisam ser explicitadas ([15]). Isto evidencia-se, por exemplo, numa peça clássica da literatura árabe pré-islâmica: a Khutbah ("Discurso") de Qus Ibn Sa'ida ([16]), que apresentamos em tradução de Helmi M. I. Nasr ([17]).

O DISCURSO de Qus Ibn-Sa'ida

Ó gente! Ouvi e meditai!

É certo que quem vive, morre

E quem morre, finda

E o que tiver que ser, será.

(Contemplai...) A noite escura

O dia sereno

O céu, com suas constelações!

E estrelas, que brilham

E mares, que se agitam

Montanhas assentadas

A terra, que se estende

Rios que correm

Não vedes que no céu há notícias

E na terra, sinais?

Por que será que os que se foram ([18]) não voltam?

Será que estão satisfeitos e, por isso, lá ficaram?

Ou então, porque ninguém cuidou de despertá-los, permanecem adormecidos?

Ó tribo Iyad: onde estão nossos pais, onde os avós?

Onde o poder dos faraós? ([19])

Acaso sois mais ricos do que eles?

Ou vossa vida, mais longa do que a deles?

(E, no entanto) Foram esmagados pelo peso dos anos

Rasgados ao meio pelo fluir do tempo.

Neste ir-se das antigas gerações, há para nós luz interior

Quando vi ondas de morte chegando, sem que saibamos de onde procedem

E vi meu povo ser por elas tragado, tanto os pequenos como os grandes!

E vi que não volta o passado, nem retorna quem se foi

Então me convenci de que também eu irei para onde meu povo está...

Khutbah

Aiuha al nas! Isma'u ua 'u!

Innahu man 'asha mat

Ua man mata fat

Ua kullu ma hua atin at

Lailun daj

Ua naharun saj

Ua sama`un dhatu abraj

Ua nujumun tazhar

Ua biharun tazkhar

Ua jibalun mursah

Ua ardun mudhah

Ua anharun mujrah

Inna fi al sama`i lakhabara

Ua inna fi al ârdi la'íbara

Ma balu al nassi yadhabuna ua la yarji'un?

Aradu fa aqamu? Am turiku fa anamu?

Ia ma'shara Iyad! aina al aba`u ua al ajdad?

Ua aina al fara'inatu al shidad?

A lam yakunu akthara minkum mala?

Ua atuala ajala?

Tahanahum al dahr bikalkalih!

Ua mazzaqahum bitataulih

Fi Al dhahibina alaualina min al quruni lana basa`ir

Lamma ra`aitu mau aridan lilmauti laissa laha masadir

Ua ra`aitu qaumi nahuaha yassa'a alasagiru ua alakabir

La iarj'u al madi ilaiya ua la min al baqina gabir

Aiqântu anni la mahalata haythu sara  al qaumu sa`ir.

Antecipando análises que serão feitas posteriormente, chamamos, desde já, a atenção do leitor para a forma proverbial das sentenças de Qus Ibn Sa'ida: "Quem vive, morre", "Quem morre, finda" etc.

Naturalmente, os diversos fatos lingüísticos (lingüístico-mentais) que, neste capítulo, estamos enumerando um tanto compartimentadamente são, na realidade, interligados. Assim, a associação imediata é o complemento natural da ausência do verbo ser como verbo de ligação. Isto torna-se claro, - entre tantas outras instâncias - precisamente em diversos enunciados de provérbios, como, por exemplo ([20]):

(#10)  Al-jar qabla ad-dar

(É mais importante o vizinho do que a moradia - literalmente: "O vizinho antes da moradia").

(#11) Ar-rafyq qabla at-taryq

(É mais importante o companheiro do que a viagem - literalmente: "O companheiro antes da viagem").

Curiosamente o melhor exemplo ocidental desse aspecto da forma de pensamento árabe, marcada pela ausência do verbo ser, é encontrado na poesia que mais insistentemente dele faz uso: Águas de Março, de Tom Jobim ([21]).

Grande e grandiosa, inquietante, "Águas de Março" soa aos nossos ouvidos, sempre de novo, como diz sua letra, como "um mistério profundo".

Parte desse mistério reside, talvez, no fato de a poesia de Águas de Março nos arrancar de nossos padrões usuais de pensamento ocidental e nos conduzir às formas de pensamento do Oriente, "lugar" do mistério, por excelência.

Heidegger - ao final de seu Qu'est-ce que la philosophie? ([22]) - diz que não só a linguagem está a serviço do pensamento, mas também ocorre o contrário. É bem o caso de Águas de Março, em que, tal como a linguagem-pensamento árabe, em vez dos longos e complicados discursos lógico-gramaticalmente articulados ocidentais ([23]), encontramos um rápido e cortante suceder de flashes em frases nominais provenientes de uma imaginação fulgurante com a irresistível força da imagem concreta.

Assim, uma cena, digamos, como a de abater um pássaro, seria, no limite típico, descrita por um ocidental nestes termos: "Estava um pássaro a voar no céu, quando eu o vi. Ora, ao vê-lo, interessei-me por ele e, portanto, dado que dispunha de uma atiradeira, muni-me de uma pedra, mirei-o, disparei a atiradeira a fim de atingi-lo; de fato atingi-o e, portanto, ele caiu, o que me possibilitou apanhá-lo com a mão".

Já o árabe tende a apresentar essa mesma cena do modo como o faz Tom Jobim em "Águas de Março": "Passarinho na mão, pedra de atiradeira". Os enlaces lógicos ficam subentendidos por detrás da sucessão de imagens.

E o mesmo ocorre, por exemplo, com este outro verso da mesma canção: "carro enguiçado, lama, lama" (em ocidental: "O carro enguiçou, devido à avaria provocada por excesso de lama", esse excesso é expresso semiticamente pela repetição: "lama, lama") etc.

Naturalmente, a presença constante do verbo ser na letra de "Águas de Março" não invalida a semelhança com o caráter oriental do pensamento (onde se empregam frases nominais e não o "é"), pois trata-se da forma fraca, descartável, desse verbo.

Aliás, a orientalização ([24]) chega ao extremo quando no final da canção, interpretada por Tom e Elis (Elis com riso mal contido), o verbo ser é suprimido e se diz simplesmente:

Pau, pedra,       fim caminho

Resto, toco,    pouco sozinho

Caco, vidro,        vida, sol

Noite, morte,     laço, anzol

I.4 Flexão de temas / flexão de raízes

Um outro importante aspecto do sistema língua/pensamento ([25]) é assim expresso por Lohmann:

"O árabe, como o semítico em geral, de um lado, e o grego, de outro, estabelecem relações com o mundo: um, principalmente pelo ouvido e o outro, pelo olho. Tal fato levou o falante semítico a uma preponderância da religião, enquanto o grego tornou-se o inventor da teoria. Daí decorre (ou procede...?) uma diferença análoga das respectivas línguas, quanto a seu tipo de expressão. Cada um desses dois tipos caracteriza-se por um procedimento gramatical específico: flexão de raízes no semítico e flexão de temas no indo-europeu antigo" ([26]).

Este fato é de extraordinário relevo para a compreensão da visão de mundo oriental com sua "indeterminação" e flexibilidade semântica, que se manifestam primeiramente em fenômenos de sintaxe. Lohmann chama a atenção para a significativa dimensão semântica do fato de a flexão (de desinência) grega/latina deixar inalterada a raiz da palavra (correspondente à ousía, à substantia). No exemplo tradicional das gramáticas elementares de latim, o radical ros de rosa permanece fixo, pois uma rosa é uma rosa; qualquer outro fator (seu relacionamento com o mundo exterior, com o pensamento humano ou com qualidades que são nela): da cor da rosa (genitivo) ao mosquito nela pousado (ablativo), é refletido pelas desinências rosam, rosarum, rosae etc.

O árabe, por sua vez, não tem radicais fixos: o radical trilítere, digamos S-L-M, é intra-flexionado: SaLaM; iSLaM; SaLyM; muSLiM etc. ([27]).

I.5 Pensamento confundente

Para compreendermos a complexidade do potencial semântico dessas raízes semíticas e para poder estabelecer relações com os amthal, recolhemos aqui algumas considerações ([28]) sobre o conceito - tomado aos filósofos espanhóis Julián Marías e Ortega y Gasset - de "pensamento confundente".

Naturalmente, esse conceito não traz, em si, nenhuma carga pejorativa; antes trata-se de uma legítima e fecunda forma de pensamento, como explica Julían Marías:

"Uma das mais interessantes descobertas de Ortega y Gasset é a do pensamento confundente (grifo nosso): confundir é uma função tão necessária quanto distinguir, porque permite descobrir as conexões entre realidades que, por outro lado, é necessário distinguir (...)

Muitas vezes me tenho referido à vaguíssima e estupenda palavra de nossa língua `bicho' - palavra exasperante para um zoólogo, creio que estão classificadas umas oitenta mil espécies de coleópteros -, que permite designar inúmeras espécies animais, prescindindo de suas diferenças. Se estou lendo ou escrevendo e entra um inseto pela janela - como no poema de Dámaso Alonso -, não poderia tomar facilmente uma decisão de conduta, se tivesse que comportar-me com ele de acordo com sua espécie.

Mas, o que quero é unicamente tirá-lo daqui, e tenho que tratá-lo como `bicho' sem estabelecer outros questionamentos" ([29]).

Precisamente essa atenção ao confundente no sistema língua-pensamento-realidade é uma rica dimensão da forma de pensamento das línguas semíticas. Como se sabe, nas línguas semíticas (como o árabe ou o hebraico), a mesma palavra ou, mais amplamente, o mesmo radical tri-consonantal ([30]), confunde (de um ponto de vista ocidental) em si, diversos significados, oferecendo-nos a oportunidade de apreensão de relações de significado até então insuspeitadas.

Pense-se (é um primeiro exemplo) no fato de que o árabe - pela "confusão" de sentidos no radical S-D-Q - é convidado (ou mesmo compelido) a pensar como indissociáveis, conceitos tão distintos - para o ocidental - como: amizade e confiança.

É o caso também do radical S-L-M da palavra salam (ou, em hebraico, Sh-L-M de shalom), que o ocidental costuma traduzir por "paz".

Em torno desta raiz, S-L-M, confundem-se na linguagem - e no pensamento... ([31]) -, entre muitos outros, os significados de: integridade ([32]) no sentido físico ([33]) e moral (SaLyM é o íntegro); saúde (e fórmula universal de saudação), normalidade (o plural SáLiM na gramática é o plural regular); salvação ("sair-se são e salvo", mas também salvação no sentido religioso); submissão, aceitação (de boa ou má vontade), daí iSLaM e muSLiM (muçulmano); acolhimento; conclusão de um assunto; paz etc.

Exemplifiquemos também com um contexto familiar, o da Bíblia. Nela encontramos o radical S-L-M "confundindo" diversos conceitos, para o pensamento ocidental totalmente distintos. Assim, de Salomão (SaLuMun, SuLaiMan), Deus diz a seu pai Davi (este, sim, um homem de guerras): "Este teu filho será um homem de paz, pois Salomão é o seu nome" (I Crn 22,9). E Deus, apesar da infidelidade do rei, mantém a integridade, a união do reino de SaLuMun e diz: "Todavia, não tirarei da mão dele, parte alguma do reino..." (I Reis 11, 34). S-L-M, concluir, acabar. No livro de Esdras, encontramos Sesabassar encarregado da construção do templo "que ainda não está concluído" (Esd 5, 16). S-L-M, entregar completamente, colocar ao inteiro dispor: "Deposita diante de Deus, em Jerusalém, os utensílios que te foram entregues, para o serviço do templo do teu Deus" (Esd 7, 19). Etc. etc.

Mas são os provérbios (que trazem em sua breve formulação uma unidade completa de sentido que não requer nenhum outro contexto textual), que melhor permitem percorrer - rapidamente e com plenitude de sentido - a gama semântica de uma raiz árabe. Adquirem, assim, extraordinária importância para a aprendizagem da língua e compreensão da mentalidade. Para o caso do exemplo que estamos analisando, os diversos significados confundidos na raiz S-L-M (em itálico, nos provérbios), destacamos os seguintes amthal:

(#12) A vasilha não pode ir sempre ao fundo do poço e sair sempre inteira [FGHL, 1184].

(#13) Ó Senhor, concede-nos sempre o convívio dos poderosos, mas mantém-nos incólumes... [FGHL, 1758].

(#14) Se a vinha estivesse protegida de seus próprios guardas, produziria toneladas [FGHL, 2124].

(#15) Sem defeito, garantido pelo ferreiro!  [FGHL, 1776].

(Esta frase feita faz referência ao costume oriental de consultar o ferreiro antes de comprar um cavalo).

(#16) O que começa por definição de condições, acaba em paz  [FGHL, 2500].

(Em um negócio, num acordo, num jogo, não fixar claramente as cláusulas é expor-se a rixas e desavenças).

(#17) Aquele que se glorifica a si mesmo te enviou saudações [FGHL, 326].

(Frase feita para referir-se a uma pessoa vaidosa).

(#18) Mil batidas na porta antes do salam (antes de atender e cumprimentar) [FGHL, 1531].

(Diz-se do avaro que tem medo do dever de oferecer hospitalidade).

(#19) Desde o bater à porta até à despedida [FGHL, 1572].

(Frase feita significando: "absolutamente tudo", "de fio a pavio").

(#20) Nem sequer um Ôi! [FRHA, 1913].

(Reclamando da falta de educação de alguém que sequer cumprimentou: Salam, sem mais, é o cumprimento mínimo!).

(#21) A segurança de um homem está em conter sua língua [FRHA, 1914].

(#22) Quem te confia seu dinheiro, confia-te sua própria pessoa [FGHL, 2519].

(#23) O vento, ele deixa por conta da tempestade e dorme tranqüilo [FGHL, 2363].

(Diz-se de alguém que não sabe guardar segredo e espalha-o).

(#24) Aperte-lhe a mão, mas confira os dedos depois  [FGHL, 19].

(Prevenindo contra uma pessoa desonesta).

(#25) Tendo saúde , está tudo bem! [FRHA, 1915].

(#26) Escapou do urso para cair no fosso [FRHA, 1920].

("Saiu da panela para cair na frigideira").

E pode-se dar o caso de provérbios, que combinem diversos sentidos confundidos na mesma raiz:

(#27) Abandona-te em Deus e encontrarás a salvação [FRHA, 1917].

Como dizíamos na Introdução, as características de uma forma de pensamento (oriental/ocidental) indicam não exclusivismos, mas ênfases, afinidades e tendências mais tipicamente acentuadas em cada caso.

Assim, encontramos em um dos principais representantes contemporâneos da tradição filosófica ocidental, Josef Pieper, exemplos de uma rica possibilidade de diálogo entre Ocidente e Oriente.

No filosofar de Pieper, dão-se importantes passagens, marcadas pela forma de pensamento árabe ([34]).

Pieper mostra, por exemplo, que não há, radicalmente, duas felicidades, mas uma só: a Felicidade definitiva, a bem-aventurança final, que é já prefigurada e dada em participação nas felicidades desta vida presente. Pieper cita a sentença de Tomás: "Assim como o bem criado é certa semelhança e participação do Bem Incriado, assim também a consecução de qualquer bem criado é também certa semelhança e participação da felicidade definitiva" ([35]). Tal tese verifica-se na linguagem e Pieper, agudamente, aponta em seu tratado sobre a felicidade que, quando as diversas línguas eliminam a distinção entre uma felicidade sublime e as felicidades banais, estão, no fundo, fazendo uma acertada confusão que espelha a realidade! ([36]).

Um outro exemplo, ainda mais sugestivo para o nosso caso: quem quer que se pergunte, filosoficamente, "O que, em si e afinal, é o amor?" deve atentar não só para as infinitas distinções de que as línguas grega, latina e neo-latinas dispõem, mas, sobretudo, para as riquíssimas possibilidades confundentes da língua alemã que, não dispõe senão de um único e confundente substantivo: Liebe.

"Assim usamos Liebe para expressar a preferência por uma determinada qualidade de vinho, como também para designar o solícito amor por uma pessoa que está passando por dificuldades; ou ainda para a atração mútua entre homem e mulher; ou a dedicação do coração a Deus. Para tudo isto, dispomos de um único substantivo: Liebe. (...) Esta manifesta, ou simplesmente aparente, pobreza do vocabulário alemão oferece-nos uma oportunidade especial: a de enfrentar o desafio, imposto pela própria linguagem, de não perder de vista aquilo que há de comum, de coincidente entre todas as formas de amor" ([37]). Por esse caminho, pode Pieper chegar à caracterização do amor como aprovação e a sua genial formulação: Amar é dizer "Que bom que você exista!".

I.6 Metáteses

O ocidental já fica surpreso com a "imprecisão" e extrema amplitude do campo semântico em torno dos radicais tri-consonantais árabes, que, evidentemente, para o falante árabe, são normais ([38]).

Em geral, o radical árabe é definido pelas três consoantes, alma da palavra árabe, e as vogais só fazem a articulação periférica do sentido. Um exemplo, calcado em português ([39]), ajudar-nos-á a compreender a clave árabe: é como se, para nós, fosse imediatamente evidente não haver hiato semântico entre palavras nossas como: carta, certo, curto e corta (pois a atenção estaria principalmente voltada para o "radical", C-R-T); ou, absoluto, obsoleto e basalto...

A questão complica-se ao infinito, para o ocidental, quando ele descobre que ainda há mais: não só o radical trilítere é difuso, mas não é incomum que, por metátese, se lhe associem (ainda mais difusamente) outros campos semânticos.

Freqüentemente, a metátese, isto é, a mudança de ordem das três consoantes, faz surgir uma nova raiz de significado relacionado com a original, como, em português, seria o caso de terno/tenro.

Entre nós, a metátese é rara ou casual; no Oriente, é freqüente ([40]) e, muitas vezes, dotada de real (e encantadora) conexão de sentido. É o que se pode ver nos seguintes exemplos árabes:

S F R (viajar)                           F R S (cavalo) ([41])

K B R (fazer crescer)            B R K (abençoar) ([42]) B K R (primogênito)

Q M R (lua)                             R Q M (numerar, regrar)

X R B (beber, brindar)                        B X R (alegrar-se, anunciar boa nova)

B H R (mar)                             R H B (amplo, espaçoso, ser bem-vindo)

T F L (criança pequena)             L T F (delicado, gracioso)

A lista pode ser alongada mais e mais e é, dizíamos, infinitamente sugestiva para a descoberta de relações reais, como também em outros exemplos, como:

' M L (fazer)                            ' L M (saber)

H S N (bondade, doçura)                        S H N (tratar bem, com bondade)

X K R (agradecer)                  K R X (entranhas)

F R Q (separar)                                  Q F R (deserto) FaQyR  (pobre!)

Q B L (encarar, acolher, beijar)            Q L B (coração)

' S B (amarrar)                         S ' B (ser difícil) ([43])

Comum às línguas semitas, a metátese aparece como um dos tantos recursos sem registro correspondente nas línguas ocidentais, o que, evidentemente, empobrece a tradução: perdem-se saborosos jogos de linguagem, próprios do Oriente. Assim, por exemplo, como faz notar Strus ([44]), encontram-se metáteses nos relatos bíblicos vetero-testamentários, tal como quando a primogenitura (BKR) é, na Bíblia, associada à bênção (BRK) e ao engrandecimento (KBR), ou quando a forma sonora de SaRaY, mulher de Abraão, remete, por metátese, a herança, herdeiro (YRSh).

Por vezes, os provérbios jogam com metáteses, como é o caso de:

(#28) 'alim bila 'amil mithl al-gaym bila matar [FGHL, 2695].

("Sábio que não age (que não `produz', que não ensina) é como nuvem sem chuva").

A mesma metátese aparece no Alcorão (11,46): Allah adverte contra o ato - 'ml - incorreto: não se deve pedir algo de que não se tem conhecimento - 'lm.

I.7 A imagem concreta

Paul Auvray, em seu sugestivo estudo sobre as línguas semíticas, analisa mais uma característica importante para nosso trabalho ([45]): um acentuado voltar-se para o concreto.

Naturalmente, trata-se de uma questão de ênfase, pois - insistamos - este voltar-se para o concreto não é apanágio árabe ou semita: é - como indicaremos nos parágrafos seguintes - fenômeno humano, em alguma medida presente em todas as línguas.

Auvray liga a conhecida observação de que "os antigos semitas não eram muito dados a pensamento abstrato" a peculiaridades da língua ([46]). Após lembrar que "são raras em hebraico as palavras verdadeiramente abstratas", exemplifica com a língua bíblica (mas até os exemplos concretos que selecionamos são perfeitamente válidos para o árabe):

"O vocábulo derek (em árabe, taríq - nota nossa) mereceria um longo estudo. Sua primeira acepção é `via', `caminho', mas veio a significar também `atividade', `maneira de agir' ou `maneira de pensar' (cfr. Ex 18,29 e ss.; 23,17 ss.). A imagem encontra-se com freqüência nos Salmos e no Novo Testamento (onde o grego ódos adquire o mesmo significado).

Mas, em numerosas passagens dos escritos mais antigos, tem-se a impressão de que a imagem concebia-se como tal (...) Outro tanto poderia indicar-se a respeito da palavra rúah (em árabe, ruh - nota nossa), que se traduz com freqüência, e muito precisamente, por `espírito'. Não obstante sua acepção prístina é a de `sopro', `vento'. Em muitos textos o autor parece evocar os dois significados, o que complica o trabalho do tradutor: Deus insufla no homem `um sopro de vida' ou `um espírito de vida' em Gn 2,7 ?".

Um sugestivo exemplo é o mathal seguinte, em que procuramos manter o sabor original árabe de frase nominal:

(#29) Pai dele, alho; mãe, cebola. Como pode ele cheirar bem? [FRHA, 58].

(Note-se que, na indefectível e infinita imersão no concreto imaginativo do pensamento oriental, o comportamento é, antes de mais nada, associado ao aroma . O árabe, ainda hoje, diante do filho que lembra os pais diz: Min rihat umuhu - ou abuhu -, do aroma de sua mãe (ou pai) e, há dois mil anos, o apóstolo Paulo - 2Cor 2,15 - escrevia que os cristãos devem ser "bonus Christi odor". Assim, o provérbio refere-se, de modo concreto, ao papel da família em relação ao comportamento dos filhos, enquanto o ocidental fala em abstrato: "herança de berço", "má-criação", "má-educação" etc...).

Este gosto pelo concreto potenciará os provérbios árabes, pois a imagem (evocada pelo mathal), mais próxima da realidade imediata, sempre tem mais força de persuasão do que a articulação de mediatos conceitos abstratos.

Como veremos, ao analisar a antropologia de Tomás de Aquino, em maior ou menor grau (de realidade e evidência), todas as línguas trazem em seu léxico inúmeras associações metafóricas ([47]), mas, no caso do árabe, este fato é mais acentuado. Para o árabe, a extensão de significado é, por assim dizer, "levada mais a sério" do que no Ocidente....

Um exemplo ajudar-nos-á a compreender. É natural que a palavra "olho" (e seus correspondentes nas diversas línguas...), preste-se, por extensão, a múltiplas associações e composições de significados.

Mas, em árabe, olho ('ayn) significa realmente: sol ([48]). Já no  Ocidente, mesmo  numa época -  a Idade Média  - em que o pensamento europeu era profundamente alegórico ([49]),

e em que vemos um Alcuíno definir ([50]), poeticamente, a lua como olho (oculus noctis), em nenhum momento a palavra olho, na linguagem comum, passa a significar, também, lua.

É especialmente ilustrativo o caso de um provérbio que, para o ocidental é expresso em extremos de abstração, enquanto o árabe, para o mesmo conteúdo, vale-se da forma radicalmente oposta: concreta, figurativa. O ocidental diz:

Quem o feio ama, bonito lhe parece.

 

(Mais abstrato, impossível: "Quem", "o feio", "bonito"...).

Já a formulação árabe é:

(#30) Al-qurd b'ayn ummuhu gazal [FGHL, 2867].

"O macaco, aos olhos de sua mãe, (é uma) gazela".

Sempre o concreto! Para expressar, por exemplo, que algo é dificultoso e infindável ("Isso - essa conferência, essa visita importuna, esse discurso - não acaba nunca!") evoca-se o mês do jejum:

(#31) Interminável como o Ramadã [FRHA, 232].

O apego do oriental ao concreto obriga a manifestar materialmente as atitudes: a consideração deixa de ser abstrata quando se traduz de modo visível (o que constrange a minoria introvertida...): numa homenagem, deve-se elogiar/presentear ostensivamente; num velório, é necessário chorar convulsivamente; numa recepção, comer:

(#32) É no comer que se mostra a afeição (pelo anfitrião). [FRHA, 300].

I.8 A ligação psicológico-gramatical com o passado

Para finalizar o quadro de componentes que estamos considerando neste capítulo, destacamos, neste tópico, um particular uso do passado na gramática árabe, assim expresso por Aida Hanania ([51]): "Outra característica, presente tanto no falar comum como nos provérbios, decorre da peculiar noção árabe de tempo. Como dizia Jamil Almansur Haddad: `O árabe vê o passado como um bloco homogêneo. E vê o futuro como um bloco homogêneo. (...) (O Ocidente faz) o contrário: faz essa atomização, essa dissecção, essa separação temporal, que inventou toda uma máquina de dividir o tempo (clépsidra, relógios e assim por diante, até chegar aos mecanismos atuais que medem centésimos de segundo). O contrário daquele complexo de infinito de árabes, de orientais, de todo o Oriente' ([52]). É como se nessa visão monolítica do tempo, o presente e o futuro não tivessem autonomia em face do passado, este, sim, determinante e determinador. Essa preponderância do passado repercute na gramática".

A repercussão na gramática a que a autora se refere é um fato surpreendente, que, assim expressamos alhures: "A gramática árabe vale-se do passado até mesmo para expressar o futuro, que aparece, assim, como mera resultante do passado. Como diz o Eclesiastes (1,9): `O que foi é o que será; o que se fez é o que se tornará a fazer: nada há de novo sob o sol!'. Se é fenômeno normal, em tantas línguas, o emprego do presente para expressar o futuro (`Vou jogar bola amanhã'), ou mesmo para o passado (`Em todo Natal, viajo'), o uso do passado para falar do futuro é aparentemente descabido. E, no entanto, é assim que a gramática árabe procede. O futuro é, para o árabe, até em termos gramaticais, determinado pelo passado e por ele expresso em sentenças proverbiais.

Tal fato torna-se compreensível quando nos lembramos de alguns poucos exemplos de uso semelhante em nossa língua, especialmente em linguagem publicitária: como a do jornal que, anunciando as vantagens de seus anúncios classificados, dizia: `anunciou, vendeu' (`quem anunciar, venderá)' ([53])".

Assim, provérbios árabes que traduzimos valendo-nos do presente são, na verdade, expressos em passado. Retomando, por exemplo, as sentenças de Qus Ibn Sa'ida que se traduzem por: "Quem vive, morre", "Quem morre, finda" etc., observe-se que dizem, na verdade, literalmente:

(#33) "Quem viveu, morreu",

(#34) "Quem morreu, findou".

("Man 'asha mat ua man mata fat") etc.

Essas sete características do sistema língua/pensamento árabe, que indicamos neste capítulo, ajudar-nos-ão a compreender o alcance e o significado dos amthal para a educação oriental. Recordemos ([54]) que, para a milenar sabedoria oriental, os amthal são a perfeita tradução em termos pedagógicos e de comunicação do sistema língua/pensamento semita, ajustando-se perfeitamente a suas características: o voltar-se para a imagem concreta e o recurso à experiência, ao passado etc. Para o ocidental - sempre tipicamente falando -, uma discussão se encerra, quando se chega a um argumento lógico abstrato; para o oriental, pelo contrário, prevalece a imagem.

Se um Aristóteles fosse indagado sobre "o próximo", ele responderia: "A diz-se próximo de B, se, e somente se, ocorrerem as seguintes condições...". Quando, porém, indagam a Cristo ([55]) pelo próximo, Ele responde com um mathal, a parábola do bom samaritano: "Um homem descia de Jerusalém a Jericó...".

I.9 Nota sobre a influência árabe nos antigos provérbios portugueses ([56])

A influência árabe (com sua multi-secular presença na Península) nos provérbios portugueses, desde a Idade Média, é visível em muitos planos. Em primeiro lugar, no do próprio conteúdo, como é o caso - entre tantos outros - dos seguintes:

Quem compra o que nam pode, vende o que nam deve [DELIC, 49].

Pelejam os ladroens, descobrense os furtos [DELIC, 382].

Casa o filho quando quiseres e a filha quando puderes [DELIC, cap. "Cazamento"].

Esses provérbios, como mostra Helmi Nasr em sua antologia, reproduzem antigos amthal literários árabes, respectivamente:

(#35) Quem compra o que não precisa, acaba vendendo o que precisa... [NASR, 12].

(#36) Quando dois ladrões divergem, aparece a coisa roubada [NASR, 10].

(#37) Case seu filho quando quiser; case sua filha quando puder... [NASR, 11].

Mas, para além da mera tradução de diversos enunciados procedentes do patrimônio sapiencial oriental, há também o aspecto formal (não percamos de vista o fato central de que o sistema língua/pensamento árabe encontra sua adequada tradução, precisamente no provérbio).

Assim, o provérbio português imita, por vezes, a associação imediata de imagens do árabe, tal como em:

Amizade de genro, sol de inverno ([57]) [DELIC, 22].

Casa de pay, vinha de avô [DELIC, 428].

Essa expressão, tão típica dos provérbios, por frase nominal - uma opção para o Ocidente - é uma imposição nas línguas semíticas.

Vimos, há pouco, a ligação mental/gramatical do árabe com o passado. É natural que essa ligação manifeste-se primordialmente nos provérbios (que, por natureza, remetem à experiência, ao passado). O próprio futuro é, para o árabe, determinado pelo passado. E, assim, pode ser expresso em sentenças proverbiais. Não é por acaso, portanto, que encontramos em Delicado:

Queres ver o por vir, olha o passado [DELIC, 023].

Pello fio tirarás o novello e pello passado o que está por vir [DELIC, 024].

E o português acaba imitando formulações árabes em que o futuro (incluído no supra-temporal, fixado pela experiência) é expresso em tempo passado:

Quem sofreo, vençeo [DELIC, 25].

(Sentença que o ocidental expressaria, normalmente, em presente ou futuro: "Quem sofre, vence" ou "Quem sofrer, vencerá").

Também na Espanha medieval, encontramos influências - de conteúdo e forma - árabes, como mostram os seguintes exemplos ([58]):

El rey rey, reina; el rey non rey, non reina, mas es reinado.

(A formulação desta máxima está calcada em procedimento sintático muito usual na língua árabe. Assim, por exemplo, um pensamento árabe, depois de afirmar que pobre não é aquele que mendiga pelas ruas, contrapõe afirmando que pobre de verdade, realmente pobre (literalmente: "Pobre pobre - Al-faqyr, al-faqyr...) é aquele que não dispõe de amigos etc. ([59])).

Lo caro es rehez([60]), lo rehez es caro.

(Al-galy rakhis wa al-rakhis galy).



[1]. "Santo Tomás e os Árabes - Estruturas lingüísticas e formas de pensamento"  Revista de Estudos Árabes, Centro de Estudos Árabes/FFLCHUSP, São Paulo, Ano III, n. 5-6, pp. 33-51. Tit. orig.: "Saint Thomas et les Arabes (Structures linguistiques et formes de pensée)",  Revue Philosophique de Louvain, t. 74, fév. 1976, pp. 30-44. Trad.: Ana Lúcia Carvalho Fujikura e Helena Meidani; revisão técnica: Luiz Jean Lauand.
[2]. E, no mesmo sentido, alude à mesma conexão entre língua e outras produções culturais.
[3]. Como, por exemplo, a propensão grega para a theoria e, no caso da matemática, para a Geometria; enquanto o árabe estaria mais voltado para a religião e, em matemática, para a Álgebra, etc.
[4]. Art. cit. p. 38. Mesmo reconhecendo uma certa radicalização na posição de Lohmann, não resta dúvida de que há - senão uma determinação - pelo menos um forte condicionamento do pensamento pelas estruturas da língua. Talvez fosse melhor falar em interação dialética, na medida em que também o pensamento influencia a formação da língua.
[5]. No sentido técnico-filosófico de intentio, apresentado por Lohmann.
[6]. Art. cit. p. 35-36. E prossegue: "Que a filosofia árabe seja, em seu aspecto externo (isto é, quanto a seu conteúdo material), procedente da recepção de uma filosofia estrangeira - o aristotelismo grego do final da Antigüidade-, isto não altera em nada, o fato de que esta filosofia árabe seja formalmente a mais perfeita expressão do gênio da língua árabe - enquanto a filosofia grega, não é, em substância, senão uma expressão, ou antes, uma explicitação da idéia fundamental do pensamento e da língua gregas, a saber: logos".
[7]. Art. cit. p. 35. Para a discussão deste tema, recolheremos neste tópico - com as naturais alterações de formulação - idéias que expressei nos capítulos: "Oriente e Ocidente Língua e Mentalidade" e "A magia da metátese na língua árabe" in Oriente e Ocidente Língua...
[8]. Em contextos muito determinados, como: certas manchetes de jornal: "Empresa tal em concordata", "Mais dois porta-aviões americanos no Golfo", "Dobradinha brasileira em Silverstone" ou linguagem telegráfica: "Estoque hoje mil unidades", "Melhores votos novo casal" etc.
[9]. Na maioria das línguas ocidentais, o que o português indica por estar é expresso pelo próprio verbo ser. Não é fácil, por exemplo, traduzir, digamos, para o inglês ou para o francês - sem perda da força da formulação sucinta -, a famosa declaração do ex-ministro, Prof. Eduardo Portela, poucos dias antes de deixar o cargo: "Eu não sou ministro; estou ministro!".
[10]. "Empresa tal está em concordata", "Mais dois porta-aviões americanos estão no Golfo", "O resultado da corrida foi: dobradinha brasileira em Silverstone", "O estoque hoje é de mil unidades", "Meus votos para o novo casal são os melhores". Além das frases nominais na linha das apontadas, há, na língua árabe, outras que surgem pelo particular emprego - inusitado para nós - do particípio presente, como por exemplo: "Eu `sainte'" (em vez do nosso "Eu estou saindo") cfr. LAUAND e HANANIA  Oriente e Ocidente Língua..., p. 12.
[11]. Como indica Aida R. Hanania, em nosso citado capítulo "Oriente e Ocidente Língua e Mentalidade" : "São ilustrativas, a propósito, as sínteses que faz Graciliano Ramos em Vidas Secas, onde o caráter lacônico e áspero da linguagem (frases rápidas, sem verbos de ligação e, muitas vezes, de ação) espelha o cáustico Nordeste e o perfil psicológico de sua gente".
[12]. Já a geometria contemporânea, ligada à moderna concepção de sistemas axiomáticos, aproximar-se-ia de uma outra forma de pensamento (derivada do sistema logos, mas já independente)  - também discutida por Lohmann no artigo citado -, paradigmatizado pelo inglês falado nos dias de hoje.
[13]. Um documentado estudo (com textos bilíngües árabe/inglês) sobre o espírito da matemática árabe em confronto com a matemática grega (e, particularmente, sobre a recepção árabe do conceito matemático grego de logos) é a tese de PLOOIJ, E. B. Al-Djajjâni - Commentary on Ratio in Euclid's conception of Ratio as criticized by arabian commentators, Rotterdam, Uitgeuerij W.J. van Hengel, 1950. Veja-se também o capítulo "Umar Al-Khayyam" de BERGGREN, J. L.  Episodes in the Mathematics of Medieval Islam, New York, Springer, 1986.
[14]. Busca que ocorre, por excelência, no caso do grego clássico.
[15]. Atente-se, por exemplo, à tão empregada função conectiva causal do ua ("e") árabe, como no caso da Khutbah que apresentamos a seguir.
[16]. De propósito, tomamos não uma poesia, mas um discurso argumentativo (se bem que as cinco linhas finais, no original, aproximem-se - pelo ritmo e pela rima - de poesia). Para o tema da associação de imagens nesta Khutbah, veja-se também LAUAND e HANANIA "Tom Jobim e a poesia árabe" in  Oriente e Ocidente Língua...
[17]. NASR, Helmi  "A contingência na Khutbah de Qus Ibn Sa'ida" in LAUAND, L. J. (org.)  Oriente e Ocidente: Filosofia e Arte...
[18]. Morreram.
[19]. Séculos depois, os faraós ainda eram o símbolo do maior poder humano.
[20]. Devo estes exemplos ao Prof. Dr. Helmi M. I. Nasr.
[21]. Nos próximos seis parágrafos, retomo considerações feitas (em co-autoria) em "Tom Jobim e a poesia árabe" in Oriente e Ocidente: Língua..., pp. 9 e ss.
[22]. In Os Pensadores vol. XLV (Sartre-Heidegger). São Paulo, Abril, 1973.
[23]. Pense-se não só nos indicadores lógicos usuais ("se..., então", "portanto", "pois" etc. etc.), mas também, por exemplo, no complexo jogo de marcação do discurso pelas partículas gregas.
[24]. Orientalização que se realiza também pela evocação de semitismos, como nos versos "É a chuva chovendo..." "É o vento ventando...".
[25]. Sempre de novo, trata-se de um fato gramatical/mental.
[26]. Art. cit., p. 36.
[27]. Também este parágrafo procede do já citado capítulo "Oriente e Ocidente Língua e Mentalidade".
[28]. Do já citado capítulo "Um aspecto árabe no filosofar de Pieper - Linguagem e `pensamento confundente' na metodologia do filosofar de Josef Pieper" in LAUAND, L. J. (org.) Oriente e Ocidente: Filosofia e Arte...
[29]. MARÍAS, J.  La felicidad humana, Madrid, Alianza Editorial, 1988, pp.16-17.
[30]. Como se sabe, o radical tri-lítere é que é a alma da palavra semita. Cfr. Oriente e Ocidente: Língua... p. 19 e ss.
[31]. Confundem-se na linguagem, no pensamento e... na própria realidade.
[32]. Nesse sentido primário de Salam/Shalom, como união, integração, remoção de barreiras, entende-se melhor a sentença - um dos tantos semitismos no grego neo-testamentário - do apóstolo Paulo: "Cristo, nossa paz, que de dois fez um, derrubando o muro que os separava" (Ef 2, 14). Se para um ocidental, esta sentença é enigmática, para um semita ela é clara: nossa paz é o mesmo que "nosso integrador".
[33]. Assim se compreende que sullum seja a escada, a que faz a união.
[34]. Os próximos três parágrafos, são tomados do citado estudo "Um aspecto árabe..." in LAUAND, L. J. (org) Oriente e Ocidente: Filosofia e Arte..., pp. 8 e ss.
[35]. De Malo, 5, 1 ad 5. Todo este parágrafo refere-se à análise feita no Cap. I de Glück und Kontemplation, München, Kösel, 1957.
[36]. "Gerade hierin aber, das der eine Name `Glück' so sehr Verschiedenes bennent (...) gerade in dieser immer wieder einmal verwirrenden Gleichnamigkeit bleibt ein fundamentaler Sachverhalt unvergessen und gewahrbar. Ich wage zu behaupten, dass er die Bauform der ganzen Schöpfung spiegle". Glück und Kontemplation, p.30.
[37]. PIEPER, J. "O que é o amor?", Revista da Faculdade de Educação USP, vol. 18, No. 2, p. 253-254. No orig.:  Glauben, Hoffen, Lieben, Freiburg, IBK, 1981, p. 24.
[38]. Neste tópico, retomo considerações feitas em LAUAND, L. J. Raízes do Pensamento Medieval, Amazonian Book-Sellers, 1993, pp. 54 a 56.
[39]. Que não deixa, evidentemente, de ter suas limitações...
[40]. O que, para usar outra metátese casual brasileira, desorienta/desnorteia o ocidental
[41]. É evidente a relação entre viagem e cavalo. Esses radicais geraram duas palavras conhecidas nossas: certo tipo de excursão, SaFaRi, e certa patente antiga do exército, al- FeReS.
[42]. Já Q L L, ser pouco, é também desprezar e, no hebraico bíblico, amaldiçoar!
[43]. Estes exemplos encontram-se em MELONI, Gerardo Saggi di Filologia semitica, Roma, Casa Editrice Italiana, 1913.
[44]. STRUS, Andrzej, Nomen-omen, Roma, Biblical Institute Press, 1978.
[45]. AUVRAY, Paul et al.  Las lenguas sagradas. Trad. del orig. francés - Les langues Sacrées - por Juan A. G. Larraya. Andorra, Casal i Vall, 1959, pp. 36 e ss.
[46]. Mais do que as diversas incidências gramaticais dessa atitude (que o autor explora em seu capítulo sobre a estilística semita), interessa-nos aqui a própria atitude em si mesma.
[47]. O Prof. Alfredo Alves escreveu um sugestivo estudo sobre um caso de extensão no Ocidente, o da palavra board na língua inglesa: "A board, a long narrow piece of sawn timber less thick (under 2 1/2 inches) than a plank came to mean, among many other things, a body of men sitting in council to deliberate on important matters, the Board of Trade, the Electricity Board etc. How did this metamorphosis come about?..." ALVES "Board" in LAUAND, L. J. Filosofia e Linguagem Comum, Curitiba, PUC-PR, 1989, p. 23 e ss.
[48]. Além de "fonte", "a elite", "riquezas" etc. Devo esta nota ao Prof. Dr. Helmi M. I. Nasr.
[49]. O pensamento teológico medieval, sobretudo na Primeira Idade Média, tende à alegoria em geral e a uma leitura profundamente alegórica da Bíblia (cfr. p. ex. LAUAND, L. J.  Educação, Teatro e Matemática Medievais, S. Paulo, Editora Perspectiva - Edusp, 1986 e LAUAND, L. J.  O Xadrez na Idade Média, São Paulo, Perspectiva-Edusp, 1988). Tal fato é, em sua origem e em seu significado, oriental, helenístico: estabelecido, desde fins do século III, pela "Escola de Alexandria" (que abriga autores tão importantes como Clemente ou Orígenes), e, posteriormente, pelos escritos - que tanta influência tiveram no pensamento medieval - de Pseudo-Dionísio Areopagita, etc. (cfr. p. ex., GILSON, E. La Filosofia en la Edad Media (Caps. I.3 e I.5), 2a. ed., Madrid, Gredos, 1972; PIEPER, J.  Scholastik (Cap. III) 2. Aufl., München, DTV, 1978; LAUAND, L. J.  O Significado Místico dos Números, Curitiba-S.Paulo, Edit. PUC-PR- GRD, 1992.
[50]. Pippini regalis et nobilissimi juvenis disputatio cum Albino scholastico, PL 101, 975-980 in LAUAND, L. J. (org.) Clássicos: pequenos textos do Oriente e do Ocidente, São Paulo, EDIX - DLO-FFLCHUSP, 1995, p. 13.
[51]. "Prefácio" a LAUAND, L. J. Provérbios Árabes, S. Paulo, DLO-FFLCHUSP, 1994.
[52]. "Interpretações das Mil e uma Noites"  Revista de Estudos Árabes No. 2, jul-dez 1993, p.59.
[53]. HANANIA, A. R. - LAUAND, L. J. Oriente e Ocidente: Língua..., pp. 27-28.
[54]. Retomo aqui um parágrafo de meu Provérbios Árabes, S. Paulo, DLO-FFLCHUSP, 1994
[55]. A língua materna de Cristo, o aramaico, pertence - tal como o hebraico - à mesma família semita e é, portanto, semelhante ao árabe; certamente traduz forma de pensamento semelhante.
[56]. Retomo aqui tema que desenvolvi em LAUAND, L. J. (org.) Oriente & Ocidente: Educação Moral e Sátira dos Vícios, S. Paulo, EDIX/ DLO-FFLCHUSP, 1995.
[57]. Este provérbio é, na verdade, originariamente espanhol, como já se nota pela rima na retradução: yerno/invierno.
[58]. Extraídos do estudo de Ana Lúcia Carvalho Fujikura "Provérbios Literários e Enxiemplos da Espanha medieval" in LAUAND, L. J. (org.) Oriente e Ocidente: Idade Média..., p. 28.
[59]. AUN, Chafik Nicolau  Coletânea de Sabedorias, São Paulo, Littera, 1988, No. 763.

[60]. Rehez, vocábulo empregado na época, é o árabe rakhis (barato).


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