Antropologia filosófica
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Dezembro/2011


Antropologia filosófica

A linguagem esconde-revela o brasileiro

Obras como as de Sérgio Buarque de Holanda mostram as estratégias que definem o país por meio de sua sintaxe

Jean Lauand

A turma de Rio: sem dimensão da linguagem, imagem brasileira é apenas folclore

A linguagem revela a realidade antropológica. No clássico Raízes do Brasil , ao analisar o brasileiro como "homem cordial" e suas virtudes (e, claro, também as disfunções...), que "são antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo rico e transbordante" (e não "boas maneiras" ou civilidade...), Sérgio Buarque de Holanda faz a importante sugestão: "Um estudo atento das nossas formas sintáxicas traria, sem dúvida, revelações preciosas a esse respeito". (Evidentemente, "o brasileiro" é uma tipificação e devemos ter em conta as limitações desse procedimento metodológico.)

É uma faceta da caracterização nacional que tantas vezes escapa a quem é de fora - e não é à toa que mesmo obras simpáticas ao país, como a animação Rio , transpiram algo de postiço, pois perdem a dimensão da linguagem: os animais cariocas do desenho da produtora norte-americana Fox driblam as dificuldades com jeitinho, alguns até levam a vida no pandeiro, mas a configuração deles é, ainda assim, parte acessória de um folclore que nos persegue desde Zé Carioca, em Você já foi à Bahia? (The Three Caballeros, 1944), da Disney. Macacos e adereços minúsculos não desfilam, afinal, pelas ruas do Rio, mas há um déficit de linguagem tão ostensivo quanto, que escapa à caracterização.

Verbo "ter"
O próprio Sérgio Buarque ilustra o caráter revelador da linguagem com "nosso pendor acentuado para o emprego dos diminutivos. A terminação 'inho', aposta às palavras, serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo. É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e também de aproximá-los ao coração".

Já Gilberto Freyre exemplifica o lado doce do brasileiro com a colocação pronominal: "Temos no Brasil dois modos de colocar pronomes, enquanto o português só admite um - o 'modo duro e imperativo': diga-me, faça-me, espera-me . Sem desprezarmos o modo português, criamos um novo, inteiramente nosso, caracteristicamente brasileiro: me diga, me faça, me espere . Modo bom, doce, de pedido."

Na linha de buscar a suavidade do brasileiro em formas de linguagem, uma das mais notáveis realizações foi a de criar um segundo modo para o frio e duro verbo "ter". A forma portuguesa (e a espanhola) do "ter" - ao contrário do inglês, alemão, francês ou italiano, que têm formas light correspondentes ao latino habere - deriva da antipática e agressiva do latim tenere: "segurar", "agarrar", "pegar"... (Houaiss), no mesmo sentido em que "garfo" em espanhol é tenedor : aquele que tem (e, infelizmente, não podemos contar com o particípio "tenente", porque se especializou em linguagem militar), segura e não larga. 

Zé Carioca: modelo de idealização que não absorveu linguagem brasileira

Fraternidade
Provavelmente por influência africana (que coincide com a forma quimbundo kukala ni ), o português do Brasil criou uma suave e deliciosa alternativa a "ter". Na vida comunitária africana, é muito menos acentuada a demarcação de posse. Como também, pelo amor, numa família, recai-se na sentença da parábola de Cristo: "Tudo que é meu, é teu". Certamente, na prática, há brigas entre os irmãos porque um pegou o que era do outro, etc. Se tudo corre bem, numa família não são necessários tantos cadeados e chaves. Há, pelo menos, uma ampla gama de objetos que são indiscutivelmente de todos: a tesoura, o guia da cidade, o grampeador, a pasta de dentes... Para esses objetos, não teria sentido dizer "ter", mas kukala ni - "estar com": "Você está com a tesoura?" "Quem está com o guia da cidade?".

A linguagem brasileira estendeu essa fraternidade, substituindo em muitos outros casos o verbo "ter" pela locução "estar com" (o que não ocorre, nessa mesma extensão, nem em Portugal nem na Espanha): "Você está com tempo?; está com febre?; está com pressa?; está com dinheiro?; está com carro?..." (o espanhol diria tienes tiempo, fiebre ...). O brasileiríssimo "estar com" é forma muito mais simpática, mais solta, pois se aplica propriamente a "posses" casuais, as posses provisórias de algo que, no fundo, é tão meu quanto teu, ou melhor, é de todos nós. Ao menos, no âmbito da linguagem...

Sérgio Buarque fala também da abordagem pessoal do brasileiro:

"O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade. E é tão característica, entre nós, essa maneira de ser, que não desaparece sequer nos tipos de atividade que devem alimentar-se normalmente da concorrência. Um negociante da Filadélfia manifestou certa vez a André Siegfried seu espanto ao verificar que, no Brasil como na Argentina, para conquistar um freguês tinha necessidade de fazer dele um amigo."

Visão pessoal
Nessa linha vai a aguda constatação de Gilberto Freyre em O Brasileiro entre os Outros Hispanos :

"O hispano pode vir a ser o mestre de uma sabedoria tida, durante séculos, no Ocidente, por hediondo vício: o vício da soberania do homem sobre o tempo, no gozo da vida e na apreciação dos seus valores, com as suas inevitáveis decorrências de impontualidade e de lentidão".

Tal afirmação é vista pelo filósofo Julián Marías como a introdução do ponto de vista pessoal (a pessoa) em tudo, até na língua, e exemplifica Freyre com a apropriação pessoal do tempo. Para além do tempo "objetivo", do relógio, o brasileiro inventa o tempo pessoal: "amanheci triste" (não "a manhã" objetiva, do relógio, do tempo impessoal), mas minha manhã; o meu tempo, a hora de cada um, de Jesus Cristo (que fala de "sua hora") ou de Augusto Matraga.

O português conseguiu conjugar de modo pessoal o neutro infinitivo: não exercemos o impessoal "sair"; é o nosso sair: "É bom sairmos porque é hora de irmos". Para não falar em extremos - como nota Sylvio Horta, professor de filosofia da FFLCH, da USP - como o da expressão: "Minha Nossa Senhora!".

Intimidade
O brasileiro faz o impessoal virar pessoal: se o francês diz on (" En Espagne on dine rarement avant 22 heures "), aqui prevalece o "você", para que o interlocutor sinta de modo pessoal a situação de que fala: "Na Espanha você não janta antes das dez". A aproximação pessoal dá-se no vocativo paulista "Ô meu". E nos usos da palavra "gente".

Na Espanha, la gente indica a pluralidade genérica; no português esse uso (como no Hino da Independência: "Brava gente brasileira..." ou em Camões: "A grita se alevanta ao céu, da gente") dá lugar a outro, carregado de sentido pessoal, como no vocativo, que evoca incredulidade, ante a falta de virtude humana: "Gente! Que crueldade fizeram com a criança!", no qual cabe o recurso ao transcendente (Deus ou Nossa Senhora) para corroborar o espanto: "Gente do céu!".

A pluralidade anônima de la gente é pessoalizada em "minha gente"; na ocupação do lugar dos pronomes de 1ª pessoa: "eu" (como na queixa do motorista da madame: "Pôxa, a gente se esforça para agradar e a patroa ainda reclama da gente"); "nós outros" ("Por que não vem jantar com a gente?") e "nós todos" ("Bem que a gente podia se reunir mais"). A sensibilidade e a compreensão estão contidas nas construções "ser muito gente" ou "gente como a gente". O pronome oblíquo projeta pessoalização: "Não me bata nesse cachorro" (maltratar o cão é maltratar a mim). Ainda no âmbito do destaque da pessoa, enfatizamos a nossa forma de personalização com o artigo ("fala com a Fabiana ou com o Fernando").

O sociólogo Gilberto Freyre: distinção brasileira pela palavra define identidade nacional

Puxadinho
O quadro se amplia quando unimos a perspectiva pessoal da linguagem a outro aspecto cultivado pelo brasileiro: o lúdico. A piada, o trocadilho, a tirada são imensamente apreciados e têm livre trânsito em nosso convívio. Piada que quebra as barreiras da impessoalidade no trato e - para o bem e para o mal - a seriedade das instituições. Lembro-me, por exemplo, que, na infância, todo colégio estadual ganhava um epíteto da garotada: "Colégio Estadual Brasílio Machado", entra burro e sai tapado! "Colégio Estadual Vila Clementino" entra burro e sai cretino! Etc. E se mal aprendíamos os hinos, sabíamos de cor e salteado as paródias: "Japonês tem cinco fiiilhos..."; "Porém, se a pátria amada precisar da macacada, p* m*, que c*!". Etc.

Estamos tão acostumados à suavização de formas do lúdico brasileiro que nem notamos seus exageros, impensáveis em outras latitudes: em que outro país seria possível imaginar que a Receita Federal se apresentasse oficialmente como leão?! Ou, como recentemente se noticiou a propósito de problemas no aeroporto de Goiânia e sua "solução": uma gambiarra pomposamente intitulada Módulo Operacional Provisório, que até sigla ganhou: MOP. Mas o povo e o próprio superintendente da Infraero referem-se a ele como "o puxadinho":

"(O nome é) Módulo Operacional Provisório, mas ganhou o apelido de puxadinho entre passageiros e na própria Infraero, que administra o aeroporto de Goiânia. 'Nós esperamos que no prazo máximo de 150 a 160 dias o puxadinho esteja pronto. Isso vai ampliar em quatro vezes a área de embarque, que hoje tem 400 metros quadrados. Vamos para 1,6 mil metros quadrados', garante André Luiz Marques de Barros, superintendente regional do centro-oeste da Infraero". ( Bom dia, Brasil, TV Globo, 18-4-2011).

O (ab)uso brasileiro dos diminutivos e aumentativos (e apelidos, etc.) une a perspectiva lúdica com a apropriação pessoal não só de amigos e colegas, mas de figuras públicas, edificações, instituições, etc. Estamos naquela dupla clave a que se referia Gilberto Freyre: a protocolar, formal, dura; e a familiar, pessoal do brasileiro. No futebol, todos são (ou podem ser) chamados por apelidos, diminutivos, aumentativos, primeiras sílabas, gentílicos, etc.; mas o árbitro (ou a ainda mais impessoal: "a arbitragem") é designado por sobrenome e tratado de "senhor": "tempo esgotado, estamos por conta do Sr. Sálvio Spinola". E poucos conhecem o Estádio Olímpico João Havelange, mas somente o Engenhão; e menos ainda o Estádio Governador Magalhães Pinto, o Mineirão!

Graus
Os diminutivos e aumentativos são regidos por uma lógica oculta, dificilmente apreensível pelo estrangeiro, mas conatural ao brasileiro. Se um marido ou um goleiro cumprem o que deles se espera, são potenciados por "maridão" e "goleirão"; já para o juiz de futebol, "juizão" indica abuso da autoridade, não agir de modo digno: "o atacante claramente se jogou, mas o juizão deu pênalti". E, para complicar as coisas, o diminutivo pode servir também de aumentativo, como quando se diz do pão de queijo que acaba de sair do forno "está quentinho"; ou da moça apaixonada em grau superlativo por um rapaz, que "está caidinha por ele" (ou "caidaça").

Jean Lauand é professor titular da Faculdade de Educação da USP

A revisão de Sérgio Buarque

Sérgio Buarque de Holanda: "formas sintáxicas" traduzem nossas virtudes e disfunções

O legado do historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) ganhou destaque este ano com dois volumes organizados pelo professor Marcos Costa, para a editora da Unesp e a Fundação Perseu Abramo, que compõem a série Escritos Coligidos de Sérgio Buarque de Holanda . A coedição reúne 146 artigos que cobrem os períodos de 1920-1949 e de 1950-1979, além de versões originais de textos que integraram clássicos do autor e inéditos em alemão, originalmente editados no exterior e pela primeira vez traduzidos. "Se fosse preciso definir o que são estes livros, diria que são uma coletânea multifacetada de textos que deixa ver a gênese, se entrelaça e esclarece caminhos percorridos por Sérgio Buarque de Holanda em sua prodigiosa trajetória teórica", define o organizador, na apresentação da coletânea.

Costa também organizou Para uma Nova História (editora EFPA, 2004) reunião de escritos de Sérgio Buarque selecionados de jornais entre 1929 e 1980.



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