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Setembro/2012


Filosofia

É grande pra caramba

A vocação brasileira para o exagero seria responsável por expressões que tornam visível o uso intensificador apoiado pela preposição

Jean Lauand

O gosto brasileiro por intensivos e hiperbolizantes acaba gerando uma enorme gama de formas para expressar essa exagerada demanda de sinônimos. E no falar do povão, a preferência é para formas agressivamente expressivas, para o chulo em lugar das comportadas: grande, muito, intenso, enorme, extremamente etc.


A gíria vai se encarregando de criar expressões, embora mantenha as "clássicas". Ligadas a palavrões (disfarçadas ou não), duas são de longe as mais usadas: "puta" (ou na versão família: "baita") como adjetivo e "prá car*%$#" (na versão ate-nuada: "pra caramba"). Para avaliar a popularidade de cada uma, iremos registrando o número de incidências no Google (em 10-7-12), abreviando por Gg, seguido do número de sites em cada caso.


Elogio com palavrão
De "puta", diz o Aurélio


3. Bras. Chulo. Excepcional, excelente: "Eles fizeram um puta show"; "Ela era uma puta médica".


4. Muito forte: "Recebeu dois puta(s) socos"; "Estava fazendo um puta frio."


5. Extremamente grande: "Compramos uma puta casa."


Estamos tão acostumados a essa expressão que já não questionamos o fato surpreendente de que um amigo em grau máximo deva ser um "puta amigo"; um show impecável, "um puta show", etc. ("um puta": Gg 890 mil; "uma puta": 3,92 milhões - mas este caso inclui o "puta" substantivo...).


Aurélio registra o uso ("paradoxal") de "filho da puta" como elogio de excelência: "O filho da puta é inteligente: estudou pouco e mesmo assim passou em primeiro lugar" (Aurélio). O uso é antigo e não exclusivamente nosso: já no Quixote, Sancho bebe da bota e exclama:


- ¡Oh hideputa bellaco, y cómo es católico!


E seu interlocutor:


- ¿Veis ahí - dijo el del Bosque, en oyendo el hideputa de Sancho -, cómo habéis alabado este vino llamándole hideputa?


E Sancho sentencia:


- Digo - respondió Sancho -, que confieso que conozco que no es deshonra llamar hijo de puta a nadie, cuando cae debajo del entendimiento de alabarle.


Caramba
A outra campeã nacional de uso - no gradiente de atenuação: "caceta" e "caramba" - é "pra car*%$#" (Gg 2,54 milhões + 80,5 mil de "para car*%$#"; "pra cacete", 650 mil; "para cacete", 19 mil; "pra caramba", 2,81 milhões; "para caramba", 141 mil). Um puta amigo é um "amigo do c*" ou "amigo pra c*".


Certamente, já o recurso ao palavrão contribui para o impacto intensivo, precisamente pelo inusitado: imagine-se que usássemos a sinonímia sugerida por Houaiss e disséssemos que Fulano é um insigne ou ínclito amigo, exímio jogador, etc. Ou que a Embratel apresentasse Bruno Mazzeo ou Maria Clara Gueiros exortando-nos: "Faz um 21 que está deveras barato".


Se se trata de tornar visível o muito, o intenso de que se fala, compreende-se o recurso ao c* (que ajunta ao pênis o descomunal) e à puta, que, até por razões de marketing e ofício, precisa abundar, ostentar, exuberar.


Assim, em ambos os casos, estamos diante de um grau máximo de uma escala concreta, visível e não abstrata como muito, grande, etc. E são mais expressivos do que os congêneres (alguns já em desuso):


 À beça (Gg 217 mil)
 Pra burro, pra cachorro, pra chuchu (104 mil)
 A rodo (276 mil)
 Milhões, às pampas (44,2 mil)
 Toda a vida, a boche, a mancheias, uma pá de (1,5 milhão)
 (chique) no úrtimo (75 mil)
 Pra danar (40,4 mil)
 A/pra dar com pau (109 mil e 138 mil)
 (Para) dar e vender (770 mil)
 De baciada (12,3 mil)
 De montão (754 mil)
 Do tamanho de um bonde (102)
 Pra dedéu (1,26 mil), etc.


Fórmula
Naturalmente surge a pergunta: por que o "para" em "pra car*%$#", "prá burro" (Gg 208 mil), "pra cachorro" (990 mil), etc.? É claro e normalíssimo o uso de "para" em metáforas como: "dose para/pra elefante" (Gg 18,9 mil / 25,6 mil), "dose para/pra leão" (Gg 31,8 mil / 33,8 mil):


"Traduzir 30 páginas num dia é dose para leão", "não aguento aquele chato: é dose para elefante". Em vez do abstrato "muito árduo ou tedioso" é bem mais expressivo evocar uma seringa de injeção de elefante. Ou a dor da ação contundente do pé sobre as partes mais sensíveis: "aquela aula foi um pé no saco".


Caberia também "pé para o saco"; não esqueçamos que há um "para" de proporcionalidade, consagrado na linguagem matemática "três está para seis como quatro para oito". Se preferirmos, a fórmula de equação:

Esse "para" de proporção, adequação, aparece também quando dizemos, por exemplo:


"Meu Deus, 40 graus, está insuportável. Isso não é calor para São Paulo; isso é calor para Saara".


E entendemos o porquê de "pra burro" quando consideramos que o burro é usado como cargueiro, "burro de carga", que assumiu o sentido figurado de "pessoa que recebe tarefa excessiva..." (Aurélio). Essa quantidade imensa é para burro.


Do mesmo modo, o chuchu, cuja dadivosa colheita pode chegar a espantosas 145 toneladas por hectare (!), deu origem ao "pra chuchu".


Proporção
Antes de considerar a expressão "pra car*%$#" (/ caramba, / cacete) notemos que, nesses casos, "para" equivale a "de" e "pra c..." a "do c...". Dizer: "isto é calor para Saara" é dizer "isto é calor de Saara". Cavalo de batalha é cavalo para batalha. Um céu tranquilo é "céu de brigadeiro", ou seja, céu para brigadeiro (que, como chefão hierárquico, não vai se expor a riscos ou turbulências).


Do mesmo modo, king size é o tamanho do rei, para o rei, adequado ao rei, proporcional à grandeza do rei... E a mulher muito bela é "de parar o trânsito", bela para parar o trânsito ou mesmo para levar à morte, "linda de morrer" (expressão que, por superstições e tabus de gente influente na mídia, foi suplantada pela inexpressiva "lindo de viver"). E, como disse a ministra Gleise Hofmann, Dilma não é mulher para (/de) ceder a chantagens.  


O car*%$# aparece como concretização do grande do descomunal. Um célebre apócrifo - desses que circulam na internet, "O direito ao palavrão" (atribuído a Millôr, Veríssimo etc.) - traz uma sutil e pertinente sugestão:


"Qual expressão traduz melhor a ideia de muita quantidade do que 'pra caralho'? 'Pra caralho' tende ao infinito, é quase uma expressão matemática. A Via Láctea tem estrelas pra caralho, o Sol é quente pra caralho."


Mais de metro
Diante da inigualável excelência (o c* é a melhor representação do infinito), o "para" indica mera aproximação: "O Neymar está mais para Messi ou mais para Pelé?". E a um referencial que tende ao infinito, só há avizinhação assintótica, daí o "para" brasileiro, que, na expressão em foco, melhora, refina o uso de Portugal, que prefere o "como": "Isto é bom como caralho" (cf. http://pt.wiktionary.org/wiki/caralho; ou http://www.docspt.com/index.php?topic=4704.0)


Também lida com medidas enormes a expressão "pra mais de metro" (Gg 417 mil): "esse pênalti vai dar discussão para mais de metro". Jogando com vários duplos sentidos, a Playboy fez uma célebre capa com Cláudia Colucci, a Cacau do BBB 10, mulher para macho nenhum botar defeito.


Para além de comprimentos, tomam-se também referenciais no âmbito administrativo: não se trata da rua, bairro, município ou estado: "a garotada fez uma bagunça federal" (Aurélio), "passou-lhe uma descompostura federal", ou também, evocando as cores da União: "se f* de verde e amarelo".


Profusão de formas intensivas e hiperbolizantes, mas, de longe, a mais usada é pra car*%$#, também ela uma expressão 'muito foda' (Gg 2,68 milhão), 'da porra' (1,68 milhão)... do car*%$#.



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