Mário César Lugarinho
Universidade Federal Fluminense
Resumo:
Apresentação do poeta português contemporâneo Manuel Alegre a partir das relações que sua obra poética trava com a História de Portugal.
Résumé:
Présentation du poète portugais contemporain Manuel Alegre à partir des rapports entre son oeuvre poétique et l'Histoire du Portugal.
O estudo acerca de Baudelaire permitiu a Walter Benjamim uma rediscussão a respeito do lugar do lirismo na modernidade a partir do conceito do que poderia ser denominado de experiência da modernidade, em que qualquer acontecimento com o caráter de vivência (Erlebnis ) seria incorporado não à memória, que possibilitaria a sua retransmissão à coletividade, mas apenas ao inventário da lembrança consciente, que o tornaria individual. Por isso, para Benjamin, os traços mnemônicos necessitam de encontrar eco na experiência (Erfahrung ) do outro para que se fortaleça o repertório das experiências coletivas. A poesia lírica estaria restrita a este espaço individual, refletindo a solidão do choque do novo sem a possibilidade de compartilhar a impressão sui generis do desconhecido.. O mundo novo que se inaugurava com a poesia de Baudelaire reivindicava, portanto, arquivos de memória específicos para que a leitura do mundo fosse reavaliada. Se um novo conceito de civilização se instaurava no Ocidente todas as formas anteriores de leitura tornavam-se ineficazes para compreender o novo lirismo baudelairiano. A História passaria a participar ativamente deste processo na medida em que o poema lírico seria a composição de um quadro capaz de apresentar as relações possíveis do sujeito com o seu tempo. Além do drama barroco, o lirismo seria o lugar, na modernidade, onde a alegoria viria a ser concebida. A alegoria, então, na perspectiva de Benjamin, é o instrumento capaz de ativar novas propostas de leitura da História, correndo-a e instaurando novos sentidos ao seu discurso. A História, tomada como discurso e gênero que pretende um efeito de realidade sobre o seu leitor, faz da Memória a única força capaz de impulsionar a leitura numa perspectiva crítica eficaz, pois seus mecanismo de atualização estão inseridos nas próprias práticas pessoais do leitor. A presença da alegoria, que ativa os mecanismo de atualização mnemônicos, faz o leitor interagir com o universo referencial de um texto, fazendo da História o produto da interação entre obra e leitor.
A produção da leitura deve ser compreendida como um processo que se instaura pela Memória, graças ao concurso da Experiência e da Vivência - sem estes elementos não se pode pensar como o leitor poderá proceder a uma leitura do mundo a partir de uma obra lida, visto que tanto a obra, quanto o leitor e, também, o autor, estão inseridos num contexto em que a presença da Memória é condição sine qua non para a eficácia do processo de comunicação. Ora, a grande massa leitora consome uma literatura que a envia ao conforto do já conhecido, a memória pessoal do leitor não interage com a memória social e coletiva na medida em que são expandidas as capacidades inesgotáveis da tecnologia para o arquivamento da memória coletiva - para que essa massa leitora possa deslocar o seu desejo de leitura para outras possibilidades além do confortável cotidiano é necessário que se rompa com o tédio usual das narrativas convencionais e se possa estabelecer o contato da vivência com a experiência, da individualidade com a coletividade, do novo com a tradição. Ao invés de, como Adorno, propor a sobrevalorização da obra de arte de vanguarda, Walter Benjamin já a relativizava através de sua reprodutibilidade percebendo-a partir de sua condição alegórica, capaz de instituir uma imediata relativização da História. O que, entretanto, seria dificultado pela tradição que viria a incorporá-la em seu discurso. Tal como Octavio Paz, mais tarde, Benjamim criticava o conformismo da tradição, tendo em mente o conformismo da tradição da vanguarda.
A dinâmica da troca de experiências é a garantia de que a História não morreu e de que nem todas as estórias foram contadas. Em cada época, é preciso arrancar a tradição do conformismo que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como o Salvador, ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. (Teses sobre o conceito de História", tese VI).
Neste quadro pode ser inserida a obra poética do escritor português contemporâneo Manuel Alegre. Nesta obra, Alegre, estabelece uma dinâmica que leva o poema a tomar contato com todo a tradição literária camoniana e, portanto, com todos os arquivos que possibilitam a reavaliação da Memória nacional portuguesa. A obra da maturidade de Alegre começou a ser publicada no ano de 1965, época das mais difíceis para a História de Portugal quando se dava o recrudescimento da Guerra da África e a Ditadura entrava em seu longo declínio até a Revolução de Abril de 1974. Alegre estabelece um diálogo, porque não dizer confronto, com todo um discurso oficial que se apoderara da memória portuguesa a fim de justificar a excepcionalidade do fascismo. A Ditadura Nacional tomara para si a tradição e instituíra um poderoso discurso através dos recursos que a Memória e a História de Portugal ofereciam. Salazar reinventara o Império, reinventara uma mística conquistadora e desbravadora que só o século XVI conhecera - é com esta perspectiva que a obra de Manuel Alegre se desenvolve buscando interceder diante da Nação de modo a recuperar para o domínio popular a tradição refém do salazarismo. Manuel Alegre irá demolir o discurso oficial, que instalava a origem no lugar fora da História, ao introduzir as suas contradições. Deixando emergir as diversas instâncias apagadas pela História nacional, conjuga a sua condição de poeta disperso com a do seu povo disperso e dispersado. Lança bases, assim, de uma poesia que põe sob suspeita a interpretação da História que o Estado Novo realiza e a tradição historiográfica da História de Portugal. Com isso, pode efetuar um pacto com o seu leitor - reconhecendo que não há um ponto determinado para a instauração do lugar original, pode, assim, cantando a dispersão, implodir o discurso oficial e instaurar uma outra perspectiva sobre Portugal e a origem dos portugueses. Como dirá em "Canto Peninsular":
Mil sonhos eu sonhei. E foram mil enganos.
Tive o mundo em minhas mãos. E sempre passei fome.
Eis-me tal qual como sou há novecentos anos
eu que não sei escrever sequer o próprio nome.
Falam de mim e dizem: é um herói.
(Não sei se por estar morto ou porque ainda não morri)
Mas nunca ninguém disse a razão porque me dói
estar aqui
("Praça da Canção". In: 30 anos de poesia, p.47)
Deve-se levar em conta que tratar da origem não é apenas tratar das forças da criação de um povo. Na origem deve estar contida a gênese, o desenvolvimento em potencial. A negação do heroísmo nos mares, ou melhor, a sua contraposição às derrotas, não só guerreiras ou marítimas (segundo o poema plantado na terra voltada para o mar, o que retornará mais tarde na contraposição ao discurso épico fundador), deverá ser tratada através da voz dilacerada que só o poema lírico é capaz de introduzir. O poema lírico pode traduzir, sem o sentido fundador da poesia épica, as contradições que o indivíduo, convertido em sujeito, verifica ao lidar com a modernidade. O sentido lírico permitirá a problematização das formas cristalizadas da História do discurso épico (recorde-se o tema do desconcerto do mundo, na lírica camoniana, e a alegoria da máquina do mundo, na épica). Isto se dá pelo fato de que, não tendo necessariamente um mundo dado, e de o discurso lírico ser centrado num tempo de presente contínuo, a História, exposta no discurso épico, é convertida em mito e o lírico, que desconhece a temporalidade, pode se colocar sem distanciamento temporal, entretanto. Percebe-se, portanto, que, quando Walter Benjamin discute o romance moderno, há em germe um conteúdo lírico capaz de expor as contradições do mundo de forma eficaz.
Se, acompanhando Benjamin, a poesia lírica moderna era capaz de apresentar a vivência do choc, então, a obra de Marcel Proust, moderna por excelência (segundo Benjamin), só foi possível porque houve, anteriormente, a obra de Baudelaire. Se o romance moderno, como procedimento, é a narrativa de um sujeito em esfacelamento, o lírico é a exposição deste esfacelamento. A origem, portanto, é posta de lado - o sujeito não a reconhece como categoria fundadora, por isso lança mão da proveniência - a percepção dos discursos fundadores capazes de outorgar algum(ns) sentido(s) à História. A História nacional apenas elege o que melhor lhe interessar diante das urgências momentâneas - destacar este processo, dilacerá-lo e expor as suas contradições será, enfim, a perspectiva de Alegre.
Quase trinta anos depois, o poeta irá redefinir sua Pátria e sua História, na medida em que a História de Portugal modificara-se drasticamente, seja pela democracia e pela descolonização, seja pela adesão à União Européia. Camões, o Poeta nacional, ressurge como a tradição em vias de apagamento, como o catalisador da identidade em vias de diluição no novo concerto europeu:
Há uma ilha a florir em cada letra
teu canto e tu são nossa rima e nosso ritmo
decassílabos à volta do planeta
homofonia dissonância aliteração
tetrâmetro teorema logarítimo
conjunção de sílaba e fonema
Lusíada - diziam. E era a nação.
Esta nação nasceu como poema.
Esta relação da Pátria com o seu Poeta não nasce pelo crivo do revanchismo que marcara a Literatura dos anos do fim do salazarismo, mas reintroduz na poesia portuguesa a possibilidade da revisão histórica. O que Alegre apresenta é a relação de solidadriedade do passado com o futuro, estabelecendo uma ponte poética que revisita os novos pressupostos de uma nacionalidade que não se limita mais às fronteiras geográficas, mas ganha a dimensão da Língua e de toda a Cultura.
Eis que saltam no poema os substantivos
peixes voadores além da linha do Equador.
E nos adjetivos há praias flores
aliterações provocadas pelas vírgulas mareantes
cristais de gelo vindos do antártico
perturbações sintáticas ao largo do Adamastor.
Agora sabe-se que para chegar a Índia
era preciso inventar
a língua.
O problema lingüístico surge como a indicação flagrante de que a Poesia se escreve dentro de uma conjunção entre Pátria e Poeta que tem urgência de revisão. Se a presença de Camões para a identidade nacional é primordial, o presente urge seu resgate em outra dimensão que lhe dê novo tamanho para além da imagem teofiliana cristalizada no século XIX. Não mais os louros cantados pelo nacionalismo ufanista das comemorações do Dia da Pátria, mas, agora a busca do verdadeiro tamanho, da verdadeira grandeza - é impossível não recorrer à Pessoa, como matriz desta ótica sobre o Monumento absoluto da nacionalidade, lê-lo para reescrevê-lo é a única saída para a nova direção que a História precisa tomar - e é diante desta nova História de Portugal, inserido num contexto europeu, enfim, que se dá esta nova leitura de Alegre. Os vinte poemas para Camões irão cantar o novo pequeno tamanho de Portugal sem a melancolia sebastianista ou o luto pessoano:
Quebrar a regra nenhum verso é livre
outra é a norma e a frase nunca dita
lá onde de dizer-se é que se vive
Cortando vão as naus a curta vida
transforma-se o que se escreve em sua escrita
Lusíada é a palavra prometida.
Sem rei ou lei, ou paz ou guerra, Portugal/Camões comparece para além da instância da Nação, comparece como Língua, linguagem, cultura que transcende as fronteiras do nacionalismo salazarista - o Império transmuda-se em palavras para ser compartilhado numa língua que se faz herança do falante, não do português - a língua que nasce com Camões é a única identidade segura para o Portugal na nova dimensão européia. A palavra que fica prometida - Lusíada - resta como obra lida, herança para as gerações futuras que reconhecem a sua solidariedade com o passado - a língua, último elo de ligação - estabelecerá a continuidade de um saber de experiências só feito que se perpetuará em todas as páginas de reescritura da História.
Por dentro do azimute há outro Atlântico
Discurso como evento: outra Índia outro azimute
o momento semântico e o não semântico
em cada estrófe um cheiro a Calicute
Procurar o sentido e a referência. O quê.
O acerca de quê. Embarcar no poema e navegar.
Sobe-se a um verso te e Vê-
se o mar.
Assim, retomando o fio inicial em que se trançava o fio da reescritura com o fio da releitura da História , há de se reconhecer pois que há um laço que só a Literatura poderá dar. É através dela que se pode iniciar, segundo Walter Benjamim, a remissão da Humanidade fazendo-a recuperar o seu passado, que se silenciou e ficou desconhecido, para citá-lo sem a culpa dos tiranos que dele se apossam.
É daí que o poeta estabelece a relação direta com o discurso histórico em suas escrituras - e, nesta via, o seu leitor torna-se capacitado a também reescrever esta história, para que, como queria Benjamim, o passado possa ser redimido pelo presente. A interação entre Autor-Obra-Leitor é a única saída para que se possa entender a extensão desta remissão.
Habermas (HABERMAS, Jürgen (1990) p.22-2) demarca em Benjamim a percepção de uma história da recepção, isto é, a partir da consciência de um passado que é transmitido ao presente se pode perceber uma coincidência de expectativas insatisfeitas; da mesma forma na orientação do presente para o futuro em que se atribui a tarefa de experimentar a rememoração de um passado correspondente que possa satisfazer as expectativas do futuro com uma força messiânica.
Com isso, torna-se possível combinar duas idéias: a convicção de que a continuidade da relação da transmissão cultural pode ser instituída tanto pela barbárie como pela civilização, e a idéia de que cada geração atual é responsável não só pelo destino das gerações futuras como também pelo destino sofrido pelas gerações passadas. O que se tem em mente é a noção de que o universalismo ético tem também de levar em conta toda a injustiça já cometida que, como é evidente, é irreversível - é, enfim, a noção de que deve haver uma solidariedade profunda entre os vivos do presente e os mortos do passado, entre ancestrais e descendentes.
A força libertadora da memória não deve servir aqui, como se verificou desde Hegel até Freud, para resgatar o poder do passado exercido sobre o presente, mas sim para resgatar uma dívida do presente para com o passado; "Porque é irrecuperável toda a imagem do passado que ameaça desaparecer com qualquer presente que nela não se reconhece refletido (tese V).
Tendo Benjamim tornado extensiva às épocas passadas a responsabilidade orientada para o futuro, percebe-se que a relação carregada de tensões com as alternativas do futuro, basicamente abertas, afeta diretamente agora a relação com um passado que é por seu lado mobilizado por expectativas. A pressão de problemas vindos do futuro é multiplicada pela pressão emanada do futuro que passou (e que não foi cumprido). A relação de solidariedade entre as instâncias temporais da História estabelece, portanto, uma nova visão dos movimentos que dinamizam a evolução literária - Manuel Alegre, pois, convoca a esta revisão; ao insistir na interação com o leitor pensa-o como sujeito histórico e, por isso, capaz de dialogar e intervir em seu futuro e, sobretudo, em seu passado.
Vai-se a Índia em vogais e consoantes
o resto é um morrer de pequenez
Camões porque poema nunca dantes
Maldivas Madagásacr Moçambique
não mais canção um ritmo português
E se alguém perguntar diz porque.
BIBLIOGRAFIA
ALEGRE, Manuel. Com que pena: vinte poemas para Camões. Lisboa: Dom Quixote, 1992.
------. 30 anos de poesia. Lisboa: Dom Quixote, 1995.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I: Magia e Técnica/Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófica da Modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990.
LUGARINHO, Mário César. Ortografia da História: mito , memória e utopia na obra poética de Manuel Alegre (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro, Departamento de Letras/PUC, 1997. Orientador: Eliana Yunes.
Mário César Lugarinho é Professor Adjunto de Literatura Portuguesa e de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal Fluminense, vem pesquisando as relações entre o discurso poético e a História da Cultura no quadro das Literaturas de Língua Portuguesa desde seu Mestrado, em 1993 na Puc-Rio.