A Cultura antes do Ciberespaço

    "O cyberespaço é a hipermente de Gaia." (1) Com essa definição Terence McKeena resume não apenas a idéia de construção de uma inteligência artificial planetária construída a partir da tecnologia das redes, mas sobretudo da existência de uma memória biológica arcaica. Para ele, o ciberespaço é uma inteligência planetária híbrida de tecnologia e natureza. Posição semelhante é assumida por Joel de Rosnay, biólogo francês e ex-professor do MIT. Para ele, o ciberespaço é um organismo híbrido (biológico e tecnológico) que se auto-organizou como uma inteligência planetária, o Cibionta (2). Este organismo planetário, atualmente em construção, seria, segundo Rosnay, híbrido: biológico, mecânico e eletrônico; incluindo em um único sistema vivo, a natureza, a cultura e a sociedade. Como no filme do homem biônico, onde o herói é salvo da morte através da tecnologia e torna-se parte homem, parte máquina, nossa sociedade também pode se tornar uma forma simbiótica de vida coletiva natural e artificial ao mesmo tempo.

  • DEFINIÇÕES DE CULTURA
Porém, nem sempre se pensou assim. Ao contrário: durante toda 'modernidade', tornou-se lugar comum afirmar que a Cultura surgiu da 'desnaturalização' do Homem, que não aceitando ser apenas uma parte da Natureza, decidiu destacar-se dela e transformá-la. Porém, é surpreendente que várias culturas não tenham uma palavra específica para a idéia de Cultura. E isto não significa que essas culturas não tivessem desenvolvido formas 'avançadas' de consciência de si enquanto sociedades organizadas. Os gregos, por exemplo, tinha a MÁTHÊMA, a idéia de 'algo abstrato' que se opõe à idéia de concretude da 'Natureza' ou PHISIS. Palavra Latina CULTÛRA - que significa 'lavoura, cultivo dos campos' e, ao mesmo tempo, 'instrução, conhecimentos adquiridos' - vai surgir nos primeiros séculos do milênio em Roma, mas não será utilizada para definir os traços distintivos dos diferentes povos do Império. A primeira vez que o termo 'cultura' aparece como um conceito de cunho antropológico é na Alemanha, em 1793, no verbete Kultur do Dicionário Adelung (3):
  
"A cultura é o aperfeiçoamento do espírito humano de um povo."


Assim, haveriam diferentes níveis de 'aperfeiçoamento espiritual' entre as etnias e subentende-se que cada povo teria um determinado grau de desenvolvimento nesta escala. Desde o início a noção de cultura foi etnocêntrica porque desqualificava as sociedades 'primitivas' e tradicionais frente a sua própria e suposta superioridade cultural (na verdade: superioridade militar, tecnológica e científica). A partir da Revolução Francesa, com o aparecimento do ideal de cidadania, o termo 'Cultura' será freqüentemente associado à idéia de um sistema de atitudes, crenças e valores de uma sociedade e oposto à noção de 'Civilização', geralmente visto como seu complemento material. Por volta de 1850, a 'Cultura' passou a ser utilizada para distinguir a espécie humana dos outros animais. Desde então, a noção de Cultura passaria por diversas transformações e metamorfoses, como veremos a seguir. Uma noção abrangente, capaz de englobar várias outras sem prová-las ou refutá-las, foi elaborada por E. Sapir:
 
  

"A cultura é o conjunto de atributos e produtos resultantes das sociedades que não são transmitidos através da hereditariedade biológica".


 Ou seja, todo registro não-biológico, toda memória não-genética, toda informação não-inscrita nas células que formam o sistema nervoso; é Cultura. Dentro dessa definição geral, cabem muitas outras, dependendo da corrente filosófica e ideológica que pensa a Cultura.

  • DEFINIÇÕES POSITIVISTAS
O positivismo define a cultura em oposição à natureza a partir de sua exploração predatória e utilitária.
  
"A cultura é o controle científico da natureza"
 (W. Von Humbolt)
"A ciência controla a natureza. A cultura é o controle que o homem exerce sobre si mesmo."
(F. Barth)
  •  DEFINIÇÕES FUNCIONALISTAS
A idéia de Cultura associada à de progresso, ou como um estágio de desenvolvimento social, segundo a qual um povo tem 'mais cultura' que outro ainda 'primitivo' tem uma tradição polêmica no campo etnológico. Já no início do século Burnett Tylor, questionava a utilização histórica da palavra Cultura e defendia seu uso apenas como um 'estado' ou uma 'condição'. Assim, durante muito tempo, os antropólogos conservadores tinham uma idéia evolucionista da cultura; enquanto os progressistas tinham uma visão relativista e sincrônica do termo Cultura.
  
"A cultura é um processo de criação orgânica e viva e não uma adaptação mecânica do homem à natureza." (F. Boas)
"A cultura é um conjunto funcional formado pelas diferentes instituições de uma sociedade." (B. Malinowski)


As definições funcionalistas de Cultura no campo da sociologia geralmente não se baseiam na comparação entre diferentes sociedades, ao contrário: são auto-centradas, isto é, tomam a si mesma como objeto de estudo e sujeitas de si. Assim, elas enfatizam bastante a distinção entre 'objetividade física' e a cultura, entendida como o conjunto das formas de subjetividade social.
  

"A civilização é formada pelos 'meios' de uma sociedade; a cultura, por seus 'fins'." (Mc Iver)
"Civilização é a coleção de meios tecnológicos para o controle da natureza. Cultura inclui ainda ideais, princípios normativos e valores éticos." (R. K. Merton)
  • DEFINIÇÕES MARXISTA E WEBERIANA
O pensamento marxista sobre a Cultura guarda grande semelhança com o positivismo, no que se refere a equivalência entre infra e superestrutura com as noções de Cultura e Civilização. Ambos são explicitamente 'modernos' pois fundamentam suas concepções de Cultura na distinção radical entre Natureza e Sociedade. As duas grandes diferenças são: as idéias de luta de classes e de relação dialética entre determinismo e ação social.
  
"A cultura dominante é a cultura das classes dominantes." (K. Marx)


 O italiano Antônio Gramisc interpretou essa frase aparentemente óbvia de uma forma bastante interessante. Seguindo a tradição maquiavélica que dita que o poder age ora através da violência, ora através da disssimulação, ele vê na Cultura uma forma de alienar os trabalhadores de sua consciência coletiva. A Cultura, nessa perspectiva, seria sempre uma ilusão de identidade social, que as classes dominantes utilizam para se perpetuar no poder: a hegemonia consensual de bloco histórico de grupos sociais sobre outro - na linguagem marxista-gramisciana. Outro aspecto do marxismo muito debatido em relação a noção de Cultura é a predominância do mono-determinismo econômico na totalidade social e a idéia de pluricausalidade defendida por Max Weber. Enquanto o marxismo, por acreditar que a necessidade é que, em última análise, determina as ações humanas; o pensamento weberiano crê em uma diversidade de fatores determinantes. A Cultura aqui mais que expressão pura e simples da ideologia da classe dominante era vista também como forma de consciência global, instrumento e produto da ação inconsciente dos homens. Entretanto, apesar de todas as críticas e do desenvolvimento de outros pontos de vista, o marxismo se desenvolveu chegando a colocações mais avançadas, que até hoje influenciam o pensamento contemporâneo.
  

"A cultura é o conjunto da reprodução das condições de um determinado modo de produção." (L. Althusser)
  • DEFINIÇÃO FREUDIANA
Além de sua significativa contribuição para psicologia, Freud também foi um importante autor da questão cultural, principalmente sobre sua relação com a violência humana. No caso da violência e dos impulsos destrutivos da pulsão de morte, Freud acreditava na existência de um assassinato primordial do chefe da horda. Em Totem e Tabu (1912-13), o tema é a origem da sociedade. Nele, Freud postula pela primeira vez o complexo de Édipo como o advento fundador do social através um parricídio arcaico estruturante: por não terem acesso às fêmeas da Horda, os jovens teriam se associado e morto o macho mais velho do grupo. A destruição do pai teria gerado um profundo sentimento de culpa nos assassinos, se transformado em símbolo de adoração e produzido uma intensa necessidade permanente de reparação. Deste quadro teria se originado o sistema totêmico, onde se institui a adoração de um totem e a aceitação das interdições evitando o incesto.

Em O futuro de uma Ilusão (1927), Freud voltará à questão da Cultura e do Complexo de Édipo, enfrentando o tema da sublimação não apenas em sua relação estrutural com a religião, mas sobretudo, o do destino de nossa civilização. Em um texto normativo, que se utiliza de um interlocutor fictício em sua argumentação, Freud discorre sobre a cultura como um conjunto de regras formadas a partir da renúncia dos instintos animais. Neste contexto, a religião seria uma 'neurose coletiva', uma ilusão capaz de absorver a carga pulsional reprimida em uma sociedade. Aqui a sublimação tem ainda um papel positivo fundamental: ela deveria eliminar toda carga pulsional reprimida imaginando uma cultura moderna dessacralizada para a Sociedade Ocidental.

No Mal-estar na Civilização (1929), no entanto, esta última ilusão também cairá por terra. Neste livro, Freud tentará responder à pergunta: considerando que a sociedade impõe cada vez mais uma drástica redução da satisfação individual, a felicidade humana é possível? Freud considerou a paz incompatível com a ordem social e profetizou um destino trágico para o homem: sucumbir vítima da própria tentativa de se desanimalizar. O que eqüivaleria a dizer que Natureza e Sociedade são pólos irreconciliáveis.

Durante a primeira metade do século, houveram várias tentativas diferentes de elaborar uma definição de cultura que combinasse as idéias de Marx e Freud em uma única metodologia: W. Reich, Eric Fromm, a Escola de Frankfurt, o existencialismo sartreano, a fenomenologia humanista em suas diferentes facetas.
 

  • DEFINIÇÕES ESTRUTURALISTAS
 
"Cultura é o conjunto das relações sociais que servem de modelo estruturante de um determinado modo de vida". (Radcliffe- Brown)


Mas foi na antropologia e no estudo comparativo das culturas que o desenvolvimento teórico rendeu seus melhores frutos. Dando seqüência a tradição anti-evolucionista e anti-etnocêntrica da antropologia progressista, o estruturalismo voltou a definir a Cultura em oposição dialógica à idéia de Natureza. Haveriam diversas culturas e uma única natureza e a antropologia deveria descrever o quadro geral destas relações. Apesar de ser um formalismo duplamente sem sujeito (sem agentes sociais nem auto-referência de observação), o estruturalismo foi uma dupla reviravolta contra o etnocentrismo científico e o relativismo cultural, formando um inventário metódico do drama universal do ser humano dentro de diversas culturas.
 
 

Natureza = 
o universal, espontâneo e inconsciente
Cultura = 
conjunto de regras relativas e particulares

Aperfeiçoando a noção de estrutura, como um modelo polideterminante das relações sociais, Claude Levi Strauss deu uma passo adiante na discussão cultural estabelecendo três níveis dessas relações (economia, lingüistica e parentesco) e trocando noção freudiana de complexo Édipo pela de Incesto, a regra universal de constituição das sociedades humanas.
  

"As regras de parentesco, de economia e da comunicação que regulam as trocas entre as mulheres, os bens e os signos de uma determinada sociedade formam o que chamamos de cultura".


 Levi Strauss critica seus antecessores por desconsiderarem o papel 'participante do observador nas pesquisas', e por verem nos discursos uma mera execução da estrutura e não seu núcleo cognitivo. Para ele, a possibilidade de uma ação individual se exercer se encontra estruturalmente determinada sem que disto decorra uma obediência cega e inconsciente às regras sociais; nem, ao contrário, que se caia em uma atitude deliberadamente intencional. O importante era a luta entre ação e estrutura formando três códigos de troca interdependentes: bens, signos e mulheres. Na verdade, Levi Strauss transpôs para antropologia os conceitos e noções oriundos da lingüística estrutural.

  • DEFINIÇÃO SEMIÓTICA
A distinção entre fonética e fonologia, a substituição da língua pela fala como núcleo cognitivo da linguagem e a distinção do estudo acústico do aparelho fonador de qualquer significação social propostas pelo médico Roman Jackobson, por exemplo. Assim, enquanto a fonética se inclinaria a estudar a linguagem em relação à sociedade, a fonologia se dedicaria ao estudo 'natural' da fala. A distinção epistemológica entre o aspecto 'social' e o 'biofísico' da linguagem, como também o esquema de elementos da comunicação (emissor, receptor, mensagem, código, referência e contexto), propostos por Jackobson serviram de paradigma para Strauss nas suas pesquisas sobre o mito e o pensamento selvagem. Pesquisador e pesquisado tornaram-se posições reversíveis; a natureza tornou-se um referente; a Sociedade, seu contexto; e a cultura, um grande signo, a mensagem-código a ser decifrada. E até pouco tempo, toda vertente semiótica ainda transitava neste espaço dos códigos intermediários entre uma única objetividade natural e as diversas subjetividades possíveis.
 
 
Elemento 
Função da Linguagem 
Advérbios
EMISSOR 
EMOTIVA 
QUEM
RECEPTOR
CONATIVA 
PARA QUEM
MENSAGEM 
POÉTICA 
O QUE
CONTEXTO 
FÁTICA 
ONDE E QUANDO
REFERENCIA 
REFERENCIAL 
PORQUE
CÓDIGO 
METALINGUÍSTICA 
COMO

Pensava-se, então, em uma teoria sociológica do simbólico e do transcultural, enquanto, hoje, é evidente a necessidade de entender a origem simbólica comum das culturas com nossa sociedade. Aliás, a 'Sociedade', aos olhos dos autores contemporâneos, não é mais que um 'efeito de sentido' do conjunto da linguagem, visto em seu aspecto normativo. Hoje, podemos dizer que a antropologia estruturalista tomada como modelo de descrição lingüística, foi apenas mais um paradigma necessário ao desenvolvimento do pensamento que estuda as culturas; e que, atualmente, as próprias noções de ciência e de antropologia estão em xeque, sendo consideradas por alguns 'modernas' e ocidentocêntricas.

Deslocar o núcleo cognitivo da noção de estrutura social para 'os discursos da fala interlocutora' não é suficiente para dar conta do fenômeno cultural. Aliás, as tentativas partindo da sincronia para determinar as práticas subjetivas do próprio discurso, tendem a reproduzir o caráter autoritário do enunciador e da 'causalidade' da transmissão, que reduz a linguagem à representação moderna em detrimento dos aspectos lúdicos e interativos. É por isso que Latour acusa o estruturalismo de ser um 'universalismo particular' porque, mesmo admitindo a igualdade entre as culturas, ainda as dissocia de uma única natureza.

Marx, Freud e Levi Strauss foram os grandes iconoclastas da Cultura, desmascarando-a em sua função de ilusão da realidade, seja escondendo os interesses de classe, ocultando repetição compulsiva das pulsões do inconsciente ou ainda perpetuando involuntariamente as regras de parentesco. São os três grandes 'iconoclastas modernos', cânones do desencantamento ou da iniciativa científica de pensar um modelo universal de explicação da realidade humana, sem levar em conta a subjetividade do observador.


O HERMENEUTA
INDEX
PRÓXIMO CAPÍTULO

NOTAS

(1) Página do Terence McKenna

(2) ROSNAY, J. O Homem Simbiótico - perspectivas para o terceiro milênio. Petrópolis: Vozes, 1997.

(3) Todas as definições utilizadas foram adaptadas a partir do verbete 'Cultura' da Enciclopédia Mirador.