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DISCURSO DE:
Manuel dos Santos Lima
O COMPROMISSO DOS INTELECTUAIS COM A CIDADANIA

Olhando globalmente para a carta da África política deste início de século e depois de mais de quarenta anos de independência, deparamo-nos com uma multiplicidade de países sinistrados, de sociedades pauperizadas, desreponsabilizadas e dilaceradas política, social e racialmente.

Esta feliz iniciativa da Open Society permite-nos, enquanto pessoas de cultura e membros da sociedade civil, reflectir neste Fórum da consciência e boa vontade, sobre alguns aspectos dos diversos contenciosos com fundo de confronto armado que dividem o país.

Tendo a palavra por salvo conduto, anima-nos a esperança de transpor as alfândegas do pensamento, em nome da angolanidade e da angolanitude, neste desejo de agir sobre a realidade, num contínuo e renovado corpo a corpo entre o país sonhado e o país real.

Falar do compromisso dos intelectuais para com a cidadania, no nosso contexto histórico, implica uma reflexão global sobre o Estado como poder político, o cidadão e o intelectual que sendo igualmente cidadão, pertence à elite. Ora, pelo valor da exemplaridade, pelo pensamento ou pela acção, as elites tornam-se símbolos, exercendo forte atracção sobre pessoas, grupos ou colectividade, pelo fenómeno da identificação.

O político e o cultural são duas faces da consciência nacional. Já na Grécia antiga se reconhecia o líder político como homem de cultura e ontem como hoje, o intelectual continua a ser mensageiro do futuro pois que, como diria Aimé Cesaire, o intelectual é um remuniciador de almas e cito-o: "Sim, em definitivo, é aos poetas, aos artistas, aos escritores, aos homens de cultura, que remexendo na quotidianidade do sofrimento e da negação da justiça, nas recordações como nas esperanças que incumbe constituir essas grandes reservas de fé, esses grandes silos de força donde os povos, nos momentos críticos retiram a coragem para se assumirem e forçar o futuro.

Alguém disse que o escritor é um engenheiro de almas.

"Nós, na conjuntura actual, somos propagadores de almas, multiplicadores de almas, em suma, inventores de almas" (Aimé Cesaire - L'Homme de Culture et ses Responsabilités). Paris, Pr. Af. "L' Unité des Cultures négro-africaines", Tome I. Esquartejada, domesticada e até coisificada pela Europa, a África tornou-se um continente - objecto, só voltando a recuperar a sua historicidade, cerca de 65 anos depois da Conferência de Berlim, quando o escravo e o colonizado, produtos do encontro violento da África com a Europa decidem resgatar-se pela rebeldia. A luta de libertação foi o esconjuramento do passado, na esperança do futuro, em nome do cidadão vindouro.

Os homens, pelas suas acções, fazem a história das sociedades, mudam o destino das colectividades.O intelectual, actor social, pode ser um instrumento de mudança,enquanto pois qualquer projecto de sociedade alternativa mergulha as suas raízes numa matriz colectiva de revolta e de esperança e, como outrora, o messianismo é o projecto da imaginação, a ruptura do silêncio, a recusa das conveniências e o repúdio popular face a uma situação histórica insustentável.

Os intelectuais africanos saiem das fileiras dos assimilados, dos que foram reconhecidos pelas instituições de ensino do colonizador como arautos do povo oprimido. Um dos primeiros do pós-guerra, chama-se Jomo Kenyata e liderava o movimento Mau-Mau. Estava-se em 1952 e a independência foi o mito director que moldou o grande projecto contra a presença inglesa no Kenya.

Agostinho Neto tinha 30 anos, era estudante de medicina em Lisboa, gravitando nos círculos da Oposição portuguesa e do P.C.P.; Mário de Andrade contava 24 anos, estudava letras e ia imaginando estratagemas para iludir a PIDE e sair para Paris; Lúcio Lara, 23 anos, estudante do Instituto Superior Técnico e eu próprio, com 17 anos, terminava o ensino liceal. E todos seguíamos atentamente o percurso de Kenyata e o despertar da África nas vésperas de retomar a sua história e nela participarmos.

O intelectual e o político olham na mesma direcção e fundem-se na comunhão de aspirações; um e outro cultivando a poesia e o manifesto em comunhão com Mao Tse Tung, Giap, Ho Chi Minh e alguns outros.

"Matar o opressor, proclamará Amílcar Cabral, na senda de Franz Fannon, é um acto de libertação, de recuperação da dignidade. A libertação nacional é um acto de cultura e o movimento de libertação é a expressão política organizada da cultura de um povo "(A revolução africana", Relatório apresentado na Conferência das Organizações nacionalistas da Guiné e Cabo Verde, em Dakar, de 12 a 14 de Julho de 1961).

E houve Bandung em 1955, Kwame N'Krumah e a independência do Ghana em 1956, e o 1º Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros, reunido na Sorbonne e mais a rebelião argelina. Depois aconteceu 1961, a insurreição que iria introduzir em Angola, as Guerras do Sem Fim.

As lutas de libertação extinguiram-se com as independências de hino e bandeira e sob regimes monopartidários que, negando aos antigos colonizados a estatura social prometida, desmentiram as esperanças democráticas nelas depositadas. Numa luta de libertação há os que a iniciam, os que a fazem efectivamente e os que dela beneficiam ou se aproveitam. E é aqui que intervém o trágico político: os companheiros de ontem, tornam-se inimigos porque os ideais que os unem numa primeira fase, acabam por se separar na segunda fase, a da tomada do poder. Aí começam as perseguições e os intelectuais, infalivelmente, são das primeiras vítimas porque a maioria dos governantes africanos assimilou o mesmo medo da imaginação que levava as autoridades coloniais a censurar ou prender os que dela se serviam.

Com a independência a imagem internacional dos políticos deteriorou-se rapidamente porque sempre associada à ditadura, corrupção, incompetência e irresponsabilidade quanto ao futuro dos seus povos. Não se trata, como todos sabem, de difamação. Nos países africanos, prepotentes, corruptores e corruptos têm rosto. E nos seus contínuos desmandos fizeram dos seus povos seres libertados mas não homens livres. Pode-se acrescentar que os políticos africanos perderam toda a autoridade moral para fustigarem os antigos colonizadores: ratificaram as decisões da Conferência de Berlim contra as quais a geração independentista se bateu e em matéria de repressão e crimes contra os seus povos, os políticos africanos ultrapassam largamente os colonizadores.

Paralelamente assistiu-se à demissão das elites e à indignidade das hierarquias, condutas explicáveis por toda a espécie de razões e em muitos países continuam a prevalecer privilégios e preterições com fundamento nas diferenças visíveis, à boa maneira colonial e que alimentam arrogâncias, ódios e consciência de grupo socio-racial.

A comissão dos Direitos do Homem e os relatórios da Amnistia Internacional elegem, anualmente, a África como vedeta das violações dos direitos e liberdades fundamentais do homem. A África é o continente dos mais vastos campos de refugiados das guerras, das fomes, do encarniçamento do Africano contra os seus irmãos, sem que ele próprio se sinta responsabilizado por isso. A res publica está acima dele, é coisa perigosa, obra de políticos; a ele distribuíram-lhe, tão somente, o papel de Ali-Bábá, isto é, o de espectador pasmado perante um bando de malfeitores.

Tudo isso tem a ver com a natureza do Estado africano; sendo entidade jurídico-política de inspiração ocidental porque resultante da descolonização e da adopção de um modelo de organização social estrangeiro, não tem conseguido ser o lugar de encontro ou de realização dos cidadãos. Entidade virtual marcada pela ambiguidade por falta de substrato nacional, é uma ficção sociológica.

Historicamente é, no entanto, uma realidade, um fenómeno irreversível na medida em que resulta da vontade e do esforço dos Africanos em se constituírem formalmente, em Estados independentes à maneira ocidental.

Mas o Estado africano, solitário e em crise permanente, é um viveiro de oligarquias e de conflitos, mal amado por aqueles que o deveriam servir e pela maior parte daqueles a quem deveria servir. Se a colonização era humana e socialmente imoral, o Estado africano é actualmente o principal factor de conflito e instabilidade dos povos africanos. A África continua a regredir e hoje dos seus 53 países, 27 pertencem ao grupo dos 35 países mais pobres do mundo, 20 estão ameaçados de extinção por inabilidade e a maioria esmagadora está em vias, não de desenvolvimento, mas de sub-desenvolvimento, no pelotão do Quarto Mundo.

Os progressos mais evidentes têm-se registado no ramos das tecnologias da morte e na cultura da destruição. Em cerca de metade dos Estados membros da OUA o poder foi conquistado ou disputado pelas armas: Biafra, Eritreia, Etiópia, Somália, Serra Leoa, Congos, Angola. De todas essas frentes ouvimos rapsódias de estilhaços e recebemos os postais dos mercadores de sangue, arquitectos de ruínas e verdugos de sonhos. Por toda a parte há pátrias leiloadas no mercado internacional das traições onde se compra o pão dos canhões e a paz dos cemitérios. Contudo, os governantes continuam a achar-se grandes democratas pois que até os mortos votam... nas suas urnas.

O Africano parece pois mal acomodado na sua sociedade e mal adaptado ao Estado que lhe coube com a independência. Praticamente todo o continente vive entre a tirania e a anarquia, entre a ficção sociológica e a realidade histórica violenta, o que faz com que o Estado e o Cidadão sejam duas solidões que se cotejam em circuitos paralelos e que coabitam, ignorando-se.

"Os cidadãos privados de direitos e o povo de liberdade, as condições da vida política tornam em África difícil, quando não impossível, qualquer debate de ideias. A política é uma arte, mas em África fizeram dela pugilato, ou melhor, um combate armado, um caso de força bruta ao ponto de qualquer militar que disponha de uma arma se sentir vocacionado para ser político. Qualquer golpe de Estado prepetrado em qualquer país da África negra tem hoje assegurado o regozijo popular ou a indiferença total. Mas se, no dia seguinte, um contra-golpe eliminasse o regime estabelecido na véspera pelo primeiro golpe teria, garantido, o mesmo regozijo ou a mesma indiferença. E os que aplaudiram o primeiro golpe aplaudirão o segundo, o que prova quanto estão desamparadas as massas africanas com respeito aos costumes políticos". (Tidiane Diakité "L' Afrique malade d'elle-même" =Éditions Karthala, Paris, 1986. Mas o intelectual, fora dum pequeno círculo urbano, perde muito da capacidade de penetração no seio das massas populares porque estas, maioritariamente analfabetas e prisioneiras da oralidade, ainda não foram conquistadas pela cultura escrita, pelo livro que, como se sabe, no Ocidente foi e continua a ser a base da memória, hierarquização, codificação e difusão da cultura no espaço e no tempo.

A vida do cidadão, do nascimento à morte é regida pelo texto, pela ordem cronológica numérica ou alfabética, enquanto que o africano se fica pelo impreciso, pelo mais ou menos, tanto para cumprir deveres como para reivindicar direitos. Daí que seja tão fácil para dirigentes ou para cidadãos esclarecidos, contornar, transgredir ou ignorar as leis, sem que as massas populares tenham verdadeira consciência da extensão dos danos causados à sociedade, nomeadamente no não respeito pelas liberdades fundamentais e direitos do homem.

A mensagem do intelectual tem assim alcance e eficácia muito reduzidos. Urge por isso para todos nós, fundar o espaço da Palavra que leva ao encontro do outro, do próximo, do homem, para promover o diálogo entre o Estado e os cidadãos, porque ser impedido de dizer é ser impedido de agir. Talvez que a primeira condição seja levar os governantes a mudar de atitude face ao Poder: ele deve ser para "servir" e não para "se servir"; face à governação: a ditadura jamais será escola de democracia; a paz não se conquistará nos campos de batalha. São sítios demasiado sujos para isso; o endereço certo, Senhores da Guerra, é: - Coração de Angola, rua da Fraternidade, Bairro dos Homens Livres (esquina da Boa Vontade), aqui neste país, em que o povo inventou a escala maior do riso, aqui neste país, em que se dança a dor com ritmos de soluço. Mas atenção, é preciso não fazer batota, porque se a Esperança é a mãe de todas as vitórias, ela é também a madrinha de todas as derrotas.

O modelo governativo, tendo-se esgotado, o intelectual voltará certamente a ocupar na sociedade angolana um lugar específico, pela enunciação de um discurso ainda que utópico mas independente em relação ao poder político, contra a situação de impasse em que se vive e para reconquistar valores ético-sociais contra as perversões e vícios acumulados em vinte e cinco anos de candongas e traficâncias a todos os escalões da pirâmide social que, como todos sabem, não aconteceu por acaso. É que sob os escombros, as raízes resistem para que na Páscoa dos desfavorecidos o Angolano deixe de ser órfão político, anão social e mendigo internacional. Se para uns continuamos a ser um país promessa, cheio de boas intenções adiadas, para os mais pessimistas somos o país do "cada vez pior", onde os cidadãos se esmeram na arte da sobrevivência. Mas ficamo-nos pela metade das coisas.

O cidadão vislumbrado durante a luta de libertação e anunciado pelas propagandas do pós-independência, perdeu-se no caminho da sua históricidade e ainda não chegou. Há mesmo quem não esteja interessado em que ele chegue alguma vez, por isso boicotam-no de todas as maneiras e condenam-no sempre que possível: é ignorante, atrasado, incapaz e é tão escuro!...

"Entretanto o intelectual reserva moral do país, juntamente com as Igrejas e forças vivas, continua a perscrutar o horizonte à espera de um sinal revelador e com a pena, traça na cara larga da folha de papel, um sorriso confiante de espião infiltrado na cidadela da Esperança, olhando para as portas do Futuro por onde o Cidadão comum há-de passar! Dixit.

Luanda, 15 de Março de 2001.

Dados Biográficos:
- Natural do Bié
- Ex-membro da Direcção da Casa dos Estudantes do Império (Lisboa)
- Fundador do Exército Popular de Libertação de Angola (EPLA)
- Doutorado em Letras pela Universidade de Lausanne (Suíça)
- Professor universitário e conferencista nos Estados Unidos, Canadá, França, Portugal, Senegal, Guiné-Bissau, etc.
- Poeta, romancista e dramaturgo
- Organizador do "1º Congresso sobre Democracia nos PALOP"
- Fundador do Movimento de Unidade Democrática Angolana para a Reconstrução (MUDAR)

paz, ecologia e irmandade universal

Que tudo o que é sagrado nos abençoe! Que tudo seja auspicioso para paz!