navegador de pesquisas v.1.0

 resenha publicada no periódico
"Sexualidade Gênero e Sociedade", IMS/Uerj, vols. 4-8, [7-8], 1998.
"Masculinidades: o caso peruano"
 Eduardo Botelho Ribeiro
Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política - UFF e assistente de pesquisa do Programa de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade e Saúde do IMS/ UERJ
e-mail

Please note that the copyright of this paper remains with the author.
If you do quote from it, please follow the usual academic conventions for references.

 

Os homens são um tema ainda pouco abordado nos estudos de gênero. "Identidades Masculinas", de Norma Fuller, vem criativamente contribuir para este campo, através de uma análise sobre as representações de masculinidade presentes na cultura de classe média peruana. Trata-se de uma pesquisa qualitativa com 40 homens da cidade de Lima, Peru, onde foram entrevistados indivíduos de 2 classes etárias, 23-35 e 40-55 anos. O interesse no trabalho é estabelecer cruzamentos entre masculinidade, geração, classe e nacionalidade, apoiando-se em diversas fontes: programas de TV, dados históricos e entrevistas com sujeitos sociais.

Certas perguntas orientam a curiosidade da autora: de que forma os homens peruanos redefinem, reafirmam ou produzem sua identidade masculina. O contexto cultural deste processo é o da perda da legitimidade masculina em algumas áreas chave, em razão da democratização dos valores, da mudança de status das mulheres e da emergência de novos discursos sobre a masculinidade e relações de gênero, onde a mídia parece ter um papel de destaque. Este quadro rebate, contudo, sobre a persistência no monopólio masculino da vida política e da autoridade familiar.

Visando a desconstrução dos fundamentos da dominação masculina, e dos "(...) artifícios que conduzem às mulheres a assumir as constrições de gênero (...)" (pág.13), a autora propõe abordar a masculinidade como um meio - e não como um fim em si mesma. Este ponto permite antever algumas premissas que permeiam vários trabalhos sobre gênero, isto é, a idéia de que gênero pode ser tomado como entidade dotada de uma intencionalidade coercitiva, opressora. Com isso a autora está deixando de lado, fundada numa noção conceitual ampla de poder, toda uma gama de relações sociais em potencial, que também constróem o gênero.

Nos dois capítulos que tratam de maneira mais etnográfica do quesito geração opta-se por mapear as identidades masculinas por meio de tipologias ilustrativas. Pensando em termos de figuras ou meios de socialização para a masculinidade destaca-se, no primeiro, o papel da família, a figura paterna e materna, a participação em determinadas práticas paradigmáticas, como o futebol. Esta atividade assume tal caráter pela sua penetração em todas as categorias etárias e sua capacidade de estabelecer distinções entre os homens em vários níveis, desde o local até o global. Os jogos infantis são tomados como o ambiente privilegiado de construção da masculinidade adulta, marcada pela competitividade, a força, e a exclusão do "outro" feminino, retratado pela emotividade e passividade. Num segundo momento, busca-se explicar como ocorre o aprendizado de novos roteiros, o início de novas relações significativas e a acomodação das representações primárias às novas imagens. Há um processo de releitura da infância frente as novas entidades socializadoras: o grupo de pares, os lugares de estudo, o lugar de trabalho e a política. Fuller compreende este processo como uma passagem do âmbito familiar para aqueles que seriam "masculinos por excelência", a rua e o espaço público, que não se misturam, mas, em geral, se opõem ao doméstico. Esta separação entre rua e espaço público parece justificar-se com base no argumento da maior complexidade social. Diferentes instituições elaboram modelos distintos de masculinidade; cada situação propõe um modelo particular de indivíduo e de sociedade, sendo muitas vezes sistemas éticos opostos. A rua é o espaço diretamente contrastante ao doméstico enquanto a esfera pública implica, além desta dimensão, a introdução de problemáticas coletivas (a exemplo o futebol e sua importância para a construção de uma imagem nacional).

O livro expõe o quão central é a categoria de identidade para os estudos contemporâneos de gênero. E para compreendê-la é preciso "(...) explorar as diferentes posições que os sujeitos têm ocupado através de sua vida, estabelecer quem têm sido os outros nestas interações e quais foram as definições e normas relativas ao contexto que circularam entre os atores" (pág. 17). Assim, encontra 3 configurações de masculinidade: Natural, Doméstica e Exterior, como um índice classificatório. A primeira relacionada à norma da virilidade e força associadas à masculinidade, e as duas últimas apoiadas numa bibliografia, que privilegia a oposição casa e rua. Um grande problema talvez esteja localizado exatamente no uso dessa classificação. Cada domínio destes é expressão de códigos morais diferentes. O cerne da problematização quanto à identidade masculina, em Fuller, está na verdadeira guerra interna de valores conflitantes vividos pelos homens.

As categorias de público e privado exprimem a demarcação de ‘espaços morais’ dados por suas posições relativas. Porém, a autora se apropria desta discussão de uma maneira peculiar. Quando Roberto DaMatta, que é uma de suas referências no livro, se refere às potencialidades heurísticas dessa tipificação, está consciente da necessidade de dotá-las de uma positividade como eixos estruturadores da sociedade brasileira, tomando-a como fundadora de uma identidade culturalmente específica. Isto significa não tomá-la como um "vir a ser". Fuller, parece compreendê-las em uma relação explosiva, visto serem, em última análise, criadoras de uma tensão ou (o)pressão cultural, que é vivida nas subjetividades de maneira problemática. Tende a deslocar, assim, a argumentação sociológica para o plano psicológico. Ao propor este tipo de relação entre público e privado cria uma espécie de demanda residual por certa coerência, ou pureza, dos sistemas culturais que não se pode sustentar facilmente.

Vale ressaltar a presença no livro de dois eixos de argumentação: a) uma certa idealização dos valores relativos à modernidade e a forma como a autora vê o processo de modernização da sociedade peruana; b) a tensão entre as possíveis identidades masculinas, ao estilo das "teorias da tensão", como mapeadas por Geertz, onde o equilíbrio do sistema é uma necessidade. As identidades de gênero são ao mesmo tempo constitutivas e processo momentâneo em função do momento histórico de globalização da cultura peruana. Sua ideologia "moderna" - se tomada no sentido fiel ao de Geertz, que refere-se a uma matriz de criação da consciência coletiva - surge como um esforço para corrigir o desequilíbrio sócio-psicológico presente na montagem das masculinidades.

O tema da modernização perpassa o argumento geral do livro, observado mais atentamente no capítulo reservado à análise histórica. A classe média é o principal produto e personagem do processo de modernização, ao mesmo tempo que representa o palco de todas as contradições e instabilidades que são constitutivas das masculinidades.

Assim, a cosmovisão das classes médias se funda nesta ambivalência, de valores hierárquicos e, em termos formais, jurídicos e ideológicos da república de cidadãos, da igualdade e liberdade. No bojo deste processo modernizador está a crescente conexão peruana ao mundo, a um sistema mundial globalizado. Segundo Fuller, é especialmente esta fração da sociedade peruana que faz o papel de principal mediadora nesta nova dimensão da realidade mundial. Com isso sofrendo como nenhuma outra os efeitos deste contato com um discurso mundializante, veiculador de novas mensagens alternativas de gênero e relações sociais.

Ao privilegiar o "advento da modernidade" na sociedade peruana, Fuller opera com um expediente do tipo: "encontrar um motor da história" para a explicação das identidades de gênero. Encontra aí o fator impulsionador, capaz de atuar como um centro gravitacional de seu discurso crítico da masculinidade. Para um maior sucesso na busca destas identidades, seria preciso problematizar numa escala mais fenomênica de análise, os significados sobrepostos desta "modernidade", como vividos pelos homens, flexibilizando a aplicação da tipologia de moralidades tradicionais e modernas.

Pela análise que proporciona, comprometida com a busca da diversidade e pluralidade, "Identidades Masculinas" compõe o quadro dos novos e promissores trabalhos sobre masculinidade, tema que começa a ser explorado em toda a América Latina.
 


| LIXOS | EVENTOS ACADÊMICOS | BIBLIOGRAFIA GERAL | LINKS IMPORTANTES |
| BRAINSTORM | ESPAÇO CRITICO | NAVEGADOR 1.0 |