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A SÉRIE 'I LOVE LUCY' É  EDUCATIVA?

Por Jan Hunt, Psicóloga Diretora do "The Natural Child Project"

Uma recente reportagem no jornal 'USA Today On Line' comentava uma nova lei que deverá entrar em vigor nos Estados Unidos no próximo ano, exigindo que as emissoras de televisão apresentem pelo menos três horas diárias de programas "educativos e informativos", adequados a telespectadores menores de 16 anos. A reportagem citava as opiniões dos leitores sobre o que se pode chamar de "educativo e informativo". Um programa que causou polêmica entre os leitores foi 'I love Lucy', um de meus preferidos.

A opinião de muitos dos adultos está representada no depoimento de um leitor de Detroit: "Embora algumas das lições de vida mais úteis possam estar em programas recreativos, isso não os qualifica como educativos. A educação pode ser divertida, mas deve ser uma atividade disciplinada. 'I love Lucy' não preenche esse requisito."

O ponto de vista das crianças que escreveram para ao jornal era diferente, ressaltando que 'I love Lucy' ensina lições úteis sobre as conseqüências de nossos atos. Elas consideraram Lucy Ricardo, cujas escorregadelas muitas vezes acabam mal, como uma espécie de anti-modelo, e o programa como uma estória moralizante. Esse ponto de vista é intrigante, pois as peças de Shakespeare foram baseadas em personagens de estórias moralizantes e suas produções teatrais, dirigidas a audiências de todas as origens sociais, foram a "diversão popular" da época. Como o historiador Frank Wadsworth observa na definição de Shakespeare em seu livro, "a maior parte dos espectadores do 'Globe' consistia de cidadãos de classe média, como mercadores e artesãos, e suas esposas. Eles iam ao teatro pelo mesmo motivo que hoje as pessoas vão ao cinema - para se descontrair e fugir um pouco de suas preocupações".

É evidente que as peças de Shakespeare foram escritas com a intenção de entreter o grande público, assim como muitas das comédias e dramas escritos atualmente para a TV. Na época em que foram escritas, suas peças não eram definitivamente consideradas "educativas e informativas", nem teriam "entrado na lista" de "atividades disciplinadas". Só mais tarde as peças de Shakespeare foram reconhecidas como "educativas". Em sua época havia mesmo algumas críticas sobre Shakespeare como um autor voltado para as grandes atuações, com pouca formação na produção teatral tradicional. Se a televisão tivesse sido inventada no período Elizabetano, não é difícil imaginar que 'Hamlet' tivesse sido um dos primeiros programas, criticado por ser violento e passional. Hoje, é claro, as peças de Shakespeare são consideradas indispensáveis para uma "educação disciplinada", com o infeliz resultado de tirar todo o prazer dos alunos em conhecer seu trabalho.

É evidente que a definição do que seja "educativo" muda com o tempo. No fim de contas, qualquer programa pode fornecer material "educativo e informativo" e alimentar a reflexão sobre o pensamento, a moda, os personagens e modos de vida de uma época. Na verdade programas como 'I love Lucy' são atualmente estudados em cursos universitários sobre a história cultural da América.

Será que 'I love Lucy' é educativo no sentido que a maioria das pessoas define esse termo? Como escritora de artigos sobre criação de filhos, fico impressionada com o modo como a família é apresentada nesse programa. O 'pequeno Ricky' é tratado com amor, delicadeza e paciência mais consistentes do que na maioria das "famílias" de outros programas de televisão. Do meu ponto de vista, nada é mais "educativo" do que o exemplo e o incentivo à empatia no tratamento dos filhos, principalmente porque essa matéria importantíssima não existe no currículo da maioria das escolas.

Meu filho, hoje com dezesseis anos, acha que aprendeu muito com 'I love Lucy' sobre alguns assuntos de seu interesse. O programa levantou alguns assuntos para nossas conversas, por exemplo: um bom programa exige escritores competentes; atores talentosos podem improvisar alguns dos melhores momentos de um programa; a maioria dos programas mais recentes são mais violentos, de qualidade irregular e menos bem escritos do que os antigos; a persistência ( Lucille Ball insistiu para que Desi contracenasse com ela) traz o sucesso; os papéis de marido e mulher mudaram nas últimas décadas; a vida pessoal de um ator ou atriz pode ser muito diferente do papel que ele ou ela representa; se você observar a história poderá perceber o momento em que ocorreram algumas mudanças sociais (como os três episódios em que se permite que o pequeno Ricky durma com seus pais quando precisa de apoio emocional); que mesmo casais que se amam podem não conseguir manter um casamento... e daí por diante.

Não se questiona que as crianças nascem com uma curiosidade insaciável. Desde que a gente confie nesse processo e evite destruir sua curiosidade com dúvidas, ameaças e definições antiquadas e arbitrárias sobre o que seja ou não "educativo", a criança vai continuar aprendendo com todas as suas experiências. Qualquer classificação arbitrária das experiências da criança em "recreativas" e "educativas" é imprecisa, falsa, enganosa e, em última análise, nociva.

Sabemos ao nascer, mas logo somos reprogramados por adultos bem intencionados, mas mal informados, que tudo e qualquer coisa nesse mundo é educativo. É um desserviço ensinar a uma criança que algumas coisas são "educativas", implicando em que são "chatas", "difíceis", "sérias", "para seu próprio bem" e que essas coisas eles nunca se interessariam em aprender por conta própria. Isso não dá certo, porque as crianças percebem a mensagem não intencional mas inequívoca de que a matéria "educativa" deve ser chata e difícil, de outro modo porquê estaria sendo imposta? Talvez a atitude menos educativa de todas seja a de convencer a criança de que "educação" tem a ver com "enfado". As crianças sabem intuitivamente que a educação pode ser divertida. Por essa definição, 'I love Lucy' certamente "preenche os requisitos" em nossa casa.

Talvez mais gente apreciasse as peças de Shakespeare quando elas eram consideradas "recreativas" e não apresentadas como "educativas". Espero que isso nunca aconteça com Lucy.

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