"Criacionismo Científico": Contradição de Termos

Quando um aluno pergunta o que é a ciência, o professor costuma explicar em tom pomposo que "ciência é o constructo do intelecto humano elaborado para nos auxiliar na conquista de uma maior compreensão do mundo natural".

Sim, mas e daí?

Bom, ciência parece ser uma daquelas entidades com miríades de definições. Uma das minhas definições prediletas é aquela que compara a ciência a uma estrada. Uma estrada para nos conduzir a um entendimento melhor do mundo em que vivemos. Uma estrada dentre várias outras que julgamos poder levar a este mesmo destino. É, contudo, uma estrada com suas particularidades, como qualquer outra.

Em ciência, as explicações só são aceitas como válidas quando baseadas em observações e experimentos que podem ser repetidos por outros cientistas. Explicações que não se baseiam em evidência empírica não constituem parte integrante da ciência.

Para conquistar essa decantada compreensão do universo, os cientistas empreendem a coleta de grandes quantidades de dados observacionais. Esses conjuntos de dados são interpretados e esse processo de interpretação conduz eventualmente à elaboração de um modelo consistente para explicar um ou mais aspectos do mundo natural.

Os cientistas transmitem suas descobertas e conclusões a seus pares. Essa transmissão de idéias é feita através de publicações, apresentações em congressos científicos, conversas informais e vários outros meios. Ao tomar conhecimento das teses e idéias de seus pares, o cientista as submeterá a testes para verificar a validade das mesmas e, a partir desses testes, construirá suas próprias hipóteses científicas. Deste modo, a acurácia e a sofisticação dos modelos científicos tendem a aumentar ao longo do tempo, à medida que gerações sucessivas de cientistas corrigem e estendem a validade dos trabalhos e idéias de seus antecessores.

O progresso científico decorre do advento de explicações cada vez melhores para as causas dos fenômenos naturais. Os cientistas jamais afirmam que uma dada explicação é completa e definitiva. Algumas hipóteses acabam se revelando incorretas quando confrontadas com novas observações ou submetidas a novos experimentos. Ainda assim, há muitas explicações científicas que foram submetidas tantas vezes a testes, e para as quais foram efetuadas tantas novas observações e experimentos, que passaram a ser defendidas com confiança unânime pela comunidade científica.

A teoria da evolução é uma dessas explicações científicas bem estabelecidas. A grande quantidade de investigações científicas levadas avante desde meados do século XIX transformou as idéias originais de Darwin sobre a evolução pela seleção natural numa teoria sólida e consistente. Hoje em dia, a teoria evolucionária é um campo de pesquisa extremamente ativo, com grande abundância de novas descobertas corroborantes que aprimoram cada vez mais nossa compreensão dos mecanismos pelos quais a evolução se processa.

O conceito de evolução biológica é uma das idéias mais importantes já gerada pela aplicação do método científico à compreensão do mundo natural. A evolução de todos os organismos ora existentes a partir de ancestrais que viveram no passado é o cerne de disciplinas biológicas tão distintas quanto genética; bioquímica; neurologia; fisiologia e ecologia. Somente por meio da teoria evolucionária podemos explicar o surgimento de novas moléstias infecciosas; o aparecimento de bactérias resistentes a antibióticos; as relações existentes entre plantas e animais selvagens e domesticados; a composição química da atmosfera terrestre; o desenvolvimento dos mecanismos moleculares das células; as similaridades existentes entre seres humanos e outros primatas; bem como inúmeras outras características do mundo físico e biológico.

TESES DO "CRIACIONISMO CIENTÍFICO"

Não obstante os inúmeros êxitos científicos, algumas seitas protestantes ainda hoje questionam o ensino da evolução. Este questionamento não ocorre apenas nas escolas norte-americanas, mas alguns colégios religiosos brasileiros.

Há quem critique o ensino da evolução pelo fato da teoria contestar as explicações para a origem da humanidade contidas nos dois primeiros capítulos do Gênese. Há também os que advogam o "criacionismo científico" — tese que propõe a existência de evidências científicas capazes de provar que o universo físico e as criaturas biológicas teriam sido criadas exatamente com suas formas presentes — seja ensinado junto com a evolução, como se fossem duas teorias científicas antagônicas.

Os cientistas analisaram exaustivamente as hipóteses propostas pelo "criacionismo científico" e as rejeitaram por falta de evidência. Além disso, uma vez que as alegações não se referem a causas naturais e tampouco podem ser refutadas por experimentos ou observações, pode se afirmar que tais alegações não se qualificam como hipóteses científicas. De fato, em 1987, a Suprema Corte norte-americana declarou que o criacionismo é religião e não uma hipótese científica e que, portanto, seu ensino não pode ser ministrado em aulas de ciência. Convém mencionar ainda que a maioria das religiões não vê nenhuma contradição entre seus sistemas de crenças e os conceitos propostos pela evolução.

IDADE DO UNIVERSO E ORIGEM DA VIDA

No que diz respeito à idade do universo e das primeiras formas biológicas terrestres, os advogados do "criacionismo científico" defendem uma variedade de pontos de vista.

Alguns declaram que a Terra e o universo são relativamente novos, tendo sido criados há cerca de 6.000 a 10.000 anos. Não raro, defendem também que o estado físico atual de nosso planeta pode ser explicado por processos catastróficos, que incluiriam o dilúvio universal, e que todos os criaturas vivas (inclusive os seres humanos) teriam sido criados miraculosamente nas mesmas formas hoje existentes na Terra. Referimo-nos a essa tese como "criação recente".

Outros advogados do "criacionismo científico" aceitam plenamente que o universo e a Terra existam há bilhões de anos. O que questionam é o advento da vida que, segundo eles, só seria possível com o concurso de uma intervenção sobrenatural. Chamamos as versões mais antigas desta tese de "criação especial" e as mais recentes de "propósito inteligente".

Não existem cálculos ou dados científicos válidos para corroborar a crença de que a Terra teria sido criada há uns poucos milhares de anos. Ao longo do último século, disciplinas como a astronomia, a astrofísica, a física nuclear, a geologia, a geoquímica e a geofísica acumularam vasta quantidade de evidência em favor de um universo, uma galáxia, um Sistema Solar e uma Terra cujas idades são mensuradas em bilhões de anos.

Métodos científicos independentes fornecem uma idade de cerca de 5 bilhões de anos tanto para a Terra quanto para o Sistema Solar, e uma idade duas a três vezes maior para a galáxia e o universo. Essas conclusões não só fazem da origem do universo um conceito consistente como um todo, como emprestam coerência a muitas disciplinas científicas diferentes; disciplinas que hoje constituem os fundamentos de um corpo de conhecimento sobre as origens e o comportamento do mundo físico.

Também não existe qualquer evidência de que o conjunto de todos os registros geológicos seja resultado de um único processo catastrófico, como um dilúvio universal, ocorrido há poucos milênios, que tenha coberto as montanhas mais altas da Terra sob alguns metros de profundidade durante vários meses. Os depósitos de sedimentos terrestres e marinhos demonstram que não há um só registro geológico que indique que em qualquer época do passado o planeta tenha estado inteiramente submerso. Além disso, um dilúvio universal da magnitude necessária para explicar a formação dos depósitos de rochas sedimentares hoje existentes, alguns com vários quilômetros de espessura, exigiriam um volume de água muito superior ao presente na Terra nos últimos 4 bilhões de anos, desde a solidificação da crosta terrestre.

A crença de que sedimentos terrestres, com todos os seus fósseis, possam ter sido depositados ao longo de apenas um ano na seqüência ordenada que hoje conhecemos desafia todas as observações geológicas e princípios físicos relativos a taxas de sedimentação.

FALÁCIA DOS REGISTROS FÓSSEIS INCOMPLETOS

Alguns criacionistas citam o que afirmam constituir um registro fóssil incompleto como evidência de uma suposta falha da teoria evolucionária.

O que há de verdadeiro nessa alegação?

Bem, a disciplina científica que estuda os registros fósseis é a paleontologia. De fato, na época de Darwin a paleontologia ainda engatinhava como ciência. Uma grande parcela da sucessão geológica de estratos rochosos não era conhecida ou, quanto muito, havia sido ainda bem pouco estudada. O próprio Darwin preocupou-se bastante com a raridade de formas intermediárias entre os principais grupos de organismos vivos.

Hoje em dia, a situação é bem outra. Muitas das lacunas outrora existentes no registro paleontológico foram preenchidas pelo esforço diligente de várias gerações de paleontólogos. Centenas de milhares de organismos fósseis foram encontrados em seqüências de rochas com datações estabelecidas, representando sucessões de formas biológicas através do tempo e demonstrando muitas das transições evolucionárias que podiam ser apenas imaginadas na época de Darwin. Sabe-se atualmente que as formas microbianas mais simples já existiam há 3,5 bilhões de anos. A incidência mais antiga de organismos unicelulares complexos (eucariotas, possuidores de núcleos celulares individualizados) foi descoberta em rochas de 2 bilhões de anos. Organismos multicelulares como as plantas, os animais e os cogumelos só aparecem em estratos geológicos muito mais recentes, com datações a partir de 650 milhões de anos.

Tantas foram as formas intermediárias descobertas entre peixes e anfíbios, anfíbios e répteis, répteis e mamíferos, e ao longo da linha de descendência dos primatas, que torna-se por vezes difícil identificar de modo categórico quando a transição entre uma espécie ancestral e outra descendente realmente se deu. Pode-se dizer que quase todos os fósseis representam formas intermediárias num certo sentido, pois constituem formas de vida que existiram entre as formas que as precederam e aquelas que a elas se seguiram.

O registro fóssil fornece portanto uma evidência consistente da mudança sistemática dos seres vivos ao longo do tempo. De fato, a evidência fóssil mais persuasiva em favor da evolução é a própria consistência da seqüência de fósseis, dos mais antigos até os mais recentes. Em nenhum lugar da Terra encontramos, por exemplo, mamíferos no Devoniano (Idade dos Peixes), ou fósseis hominídeos coexistindo com os de dinossauros. Estratos geológicos não perturbados que contêm organismos unicelulares primitivos sempre antecedem aqueles com organismos multicelulares. Do mesmo modo, invertebrados sempre precedem os vertebrados. Em nenhum ponto essas seqüências aparecem invertidas. Além disso, fósseis de estratos adjacentes guardam semelhanças maiores do que a de fósseis de estratos temporalmente distantes entre si.

Portanto, a conclusão científica mais plausível que se pode extrair dos registros fósseis é que a descendência com modificações realmente ocorre conforme afirma a teoria evolucionária.

"PRESENCIANDO" A EVOLUÇÃO

Adeptos da "criação especial" argumentam que "ninguém presenciou a ocorrência da evolução". Este tipo de argumento trai uma ignorância profunda quanto à maneira como a ciência testa suas hipóteses. Não presenciamos a Terra descrevendo sua órbita em torno do Sol. Tampouco vemos os átomos que constituem os corpos materiais. Nós "presenciamos" seus efeitos, suas conseqüências. Os cientistas inferiram a existência dos átomos e a órbita da Terra ao redor do Sol depois de testar exaustivamente as previsões derivadas dos modelos que propuseram esses fatos através de experimentos e observações.

Além disso, podemos realmente "experienciar" a ocorrência cotidiana de evolução em pequena escala. O surgimento de novas cepas de vírus da gripe todos os anos e o advento de bactérias resistentes aos antibióticos são dois exemplos notáveis das forças evolucionárias em ação. De fato, a rapidez com que organismos de vida efêmera, como vírus e bactérias, evoluem sob a pressão de um meio ambiente hostil é um fato científico de grande relevância médica. Experimentos de laboratório demonstraram que por causa de mutações aleatórias e da seleção natural tais organismos são capazes de se tornar significativamente diferentes de seus ancestrais ao longo de uma única geração.

Numa escala consideravelmente maior, a evolução dos mosquitos resistentes a inseticidas é outro exemplo da tenacidade e adaptabilidade dos organismos sob pressão do meio. De modo similar, os protozoários causadores da malária tornaram-se resistentes às drogas que eram empregadas para combater a doença até há alguns anos. Em conseqüência, a malária voltou a se expandir por muitos países do mundo subdesenvolvido, com mais de 300 milhões de casos clínicos registrados a cada ano.

TESE DO "PROPÓSITO INTELIGENTE"

Dados oriundos da biologia molecular têm sido usados em defesa de uma proposição criacionista pretensamente nova, a teoria do "propósito inteligente". Os defensores desta tese afirmam que a complexidade estrutural dos organismos vivos é prova da intervenção direta de Deus para criar esses organismos prontos e completos, exatamente da maneira como eles são hoje. O argumento não é tão novo quanto parece, constituindo em verdade mera cópia requentada de um outro, de autoria de William Paley, teólogo inglês do século XVIII, que advogava ser o olho dos vertebrados tão perfeito em sua funcionalidade complexa e estrutura intrincada que era impossível que não tivesse sido elaborado em sua forma presente pela mão de um Criador onipotente.

Com argumentos em essência idênticos aos de Paley, os proponentes modernos da tese do "propósito inteligente" argumentam que estruturas moleculares como o DNA, e processos moleculares tais como a seqüência precisa de passos que levam à coagulação sangüínea, seriam tão irredutivelmente complexos que só poderiam funcionar se todos os seus componentes estivessem simultaneamente prontos e em seus lugares desde o princípio. Os defensores do "propósito inteligente" afirmam que essas estruturas e processos não podem ter evoluído gradualmente, passo a passo, conforme advoga a teoria evolucionária.

Contudo, em geral as estruturas e processos ditos "irredutivelmente" complexos não se revelam tão irredutíveis assim quando examinados de perto. É incorreto assumir que uma estrutura ou processo bioquímico complexo só possa funcionar se todos os seus componentes estiverem presentes e possuírem a forma exata de seus análogos atuais. Sistemas bioquímicos complexos podem ser construídos a partir de subsistemas mais simples através de processos de seleção natural. Deste modo, a história evolutiva de uma proteína pode ser traçada desde os organismos mais simples até os mais complexos. Peixes ágnatos como a lampreia possuem moléculas de hemoglobina mais simples do que a presente no sangue dos peixes teleósteos, mais evoluídos. Esses peixes, por sua vez, possuem hemoglobina mais simples do que a presente nos organismos dos mamíferos.

A evolução de sistemas moleculares complexos pode ocorrer de vários modos. A seleção natural pode criar numa determinada época diversos blocos moleculares capazes de realizar uma única função. Mais tarde, alguns desses blocos se recombinam entre si ou com outros sistemas para formar novos sistemas moleculares, capazes de realizar funções diferentes de quaisquer dos blocos ou sistemas originais. O encadeamento bioquímico complexo que resulta no processo de coagulação sangüínea pode ser explicado desta maneira.

De modo análogo, os mecanismos evolucionários são capazes de explicar a origem de estruturas anatômicas extremamente complexas. Os olhos, por exemplo, evoluíram independentemente diversas vezes durante a história da vida na Terra. Os passos dessa evolução foram desde o surgimento das células sensíveis à luz, como as hoje existentes nas planárias, passando pela formação de unidades fotossensíveis individualizadas, já com a presença de lentes para focalizar a luz incidente, como ocorre nos olhos compostos dos insetos, até a eventual constituição de um olho tipo câmera com lentes simples focalizando imagens sobre uma retina, como ocorre nos vertebrados e nos moluscos cefalópodes. Assim, através de um percurso constituído por passos graduais cujos exemplos ainda podem ser encontrados nas diferentes formas biológicas atuais, olhos de muitos tipos diversos evoluíram independentemente, desde simples órgãos fotossensíveis até sistemas visuais de complexidade extrema.

CONCLUSÃO

A ciência não constitui, é claro, o único meio de adquirirmos conhecimentos sobre nós próprios e sobre o mundo que nos rodeia. Podemos conquistar a compreensão de muitas outras maneiras como, por exemplo, através da literatura, das artes, da reflexão filosófica e da experiência religiosa.

Embora o conhecimento científico possa ser empregado para enriquecer nossas percepções morais e estéticas, questões dessa ordem situam-se claramente fora do escopo da ciência.

A alegação de que, por questão de eqüidade, deveríamos conceder tratamentos idênticos à teoria da evolução e às várias teses do "criacionismo científico" reflete no fundo uma compreensão errônea do que é de fato a ciência e do modo como a prática científica deve ser conduzida. Investigações científicas são processos que procuram compreender os fenômenos naturais pela observação e experimentação. As interpretações científicas dos fatos e as explicações delas advindas devem, portanto, ser testáveis por observação e experimentação.

Criacionismo, "propósito inteligente" e outras alegações que advogam a necessidade de uma intervenção sobrenatural no advento da vida ou na origem das espécies não constituem ciência porque não podem ser testadas pelos métodos científicos e não estão sujeitas à refutação, ao contrário das teorias científicas. Tais alegações subordinam os dados observados a afirmações baseadas em dogma, revelação e crença religiosa. As referências citadas em apoio a essas alegações limitam-se tipicamente a publicações especiais de seus defensores. Essas publicações não oferecem hipóteses sujeitas à refutação à luz de novas observações, novas interpretações, ou mesmo à luz da demonstração de erro crasso. Tal postura contrasta desfavoravelmente com a assumida pela ciência, em que cada hipótese ou teoria permanece sempre sujeita à possibilidade de rejeição ou modificação à luz de novos conhecimentos.

Não devemos admitir como ciência qualquer corpo de crenças cuja origem resida em material doutrinário de conteúdo dogmático irrefutável. Reafirmando o que se disse acima, ciência se constrói com observações, interpretações e experimentos. Se isto não ocorre, não estamos tratando com ciência, mas apenas com teses que pretendem passar como tal.

Gerson Lodi-Ribeiro

Novembro 1999.

Bibliografia:

Science and Creationism [National Academy of Sciences, 2nd Edition, 1999]