Evidências de Vida em Marte
Gerson Lodi-Ribeiro
Um meteorito marciano encontrado na Antártida há doze anos talvez traga em seu âmago os primeiros indícios da existência de vida fora da Terra.
Uma equipe de nove cientistas de diversas especialidades, liderada pelo geólogo David S. McKay do Centro Espacial Johnson (NASA), anunciou no início de agosto ter descoberto fortes evidências (mas não provas concretas) da existência de atividade biológica fóssil no meteorito ALH 84001, encontrado na região de Allan Hills no continente antártico em 1984. Esse meteorito proviria de Marte e teria atingido o nosso planeta há cerca de 13.000 anos, depois de vagar pelo espaço interplanetário durante um intervalo de 16 milhões de anos.
A primeira pergunta que nos vem à cabeça é a seguinte: "Como é que eles sabem que o tal meteorito veio mesmo de Marte?" Esta é fácil de responder: quando se solidificam a partir do magma primordial, as rochas formadas em planetas dotados de atmosfera "capturam", por assim dizer, pequenas amostras de ar sob a forma de bolhas microscópicas imersas em suas estruturas.
Pois bem. Uma vez analisadas essas minúsculas amostras gasosas presentes no meteorito ALH 84001 concordam pelo menos até a nona casa decimal com as amostras coletadas in loco na superfície de Marte pelas sondas Viking. Este resultado assegura que o meteorito é de fato procedente do planeta vermelho. O mais antigo dos doze exemplares pertencentes ao seleto clube das rochas marcianas encontrados na Terra. Essa classe de meteoritos, batizada Shergotty-Nakhla-Chassigny (ou, mais simplesmente, classe SNC) parece ter chegado à Terra como resultado de eventos de impacto (leia-se choque de asteróides e/ou cometas) na superfície de Marte.
Certo. O ALH 84001 é um fragmento arrancado ao quarto planeta do Sistema Solar. Mas, como é que esse pedaço de Marte veio parar na Terra? Bom, para explicar essa presença alienígena, vamos voltar no tempo uns quatro bilhões de anos, para contar a história dessa rocha desde o princípio.
O ALH 84001 é o fragmento de uma rocha ígnea que cristalizou em Marte há 4,5 bilhões de anos. Neste sentido, pode se dizer que é a rocha planetária mais antiga de que se tem notícias. Sua estrutura cristalina registra dois eventos de impacto separados por um período de arrefecimento. O primeiro evento ocorreu há cerca de 4,0 bilhões e produziu uma série de fraturas (rachaduras internas) na estrutura do meteorito. O segundo impacto, muito mais recente, arrancou o fragmento de seu planeta de origem, lançando-o ao espaço.
Ao contrário dos demais meteoritos SNC, que contêm apenas traços de compostos carbonados, o ALH 84001 possui hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (H.A.P.) sob a forma de glóbulos, cujos diâmetros variam entre 1 e 250 micra. As melhores estimativas indicam que esses glóbulos de hidrocarbonetos se teriam formado há 3,6 bilhões de anos, penetrando no corpo do ALH 84001 através das fraturas pré-existentes.
Há mais de 3 bilhões de anos, a atmosfera de Marte era consideravelmente mais densa que a atual, possibilitando a existência de água em estado líquido --- a prova da presença de cursos d'água no passado martológico pode ser observada nas dezenas de imagens dos leitos secos de antigos rios fotografados pelas câmeras das sondas Mariner e Viking. Um habitat muito mais propício ao surgimento da vida unicelular do que o ambiente marciano atual. Num habitat desse tipo seria de se esperar o desenvolvimento de formas bacterianas primitivas, capazes de gerar H.A.P. como resíduos metabólicos.
Mas, voltando à odisséia do ALH 84001, as cadeias carbônicas de alguns dos glóbulos de hidrocarbonetos parecem ter sido quebradas por um segundo evento de impacto. Um choque ocorrido ainda no planeta Marte, ou no espaço interplanetário, excluindo portanto a hipótese desse material orgânico se ter originado na Terra. Corroborando a tese da origem extraterrena, descobriu-se que a composição isotópica do carbono e do oxigênio presente nos glóbulos de hidrocarbonetos indica que eles foram produzidos no interior do meteorito, não tendo se formado no período em que o ALH 84001 permaneceu enterrado sob o gelo antártico.
Esse segundo evento de impacto foi tão violento ejetou fragmentos da superfície de Marte. Um dos fragmentos deu origem ao meteorito ALH 84001. Depois de vagar durante cerca de 16 milhões de anos pelo espaço interplanetário, o fragmento em questão ingressou na atmosfera terrestre e impactou o nosso planeta no continente antártico. O período de permanência do fragmento no espaço pode ser estimado com precisão razoável graças aos cálculos da exposição de raios cósmicos a que esteve sujeito enquanto vagava sem rumo pelo espaço.
Finalizando suas aventuras interplanetárias, o ALH 84001 chegou a Terra há cerca de 13.000 anos, dois ou três milênios antes do término da última glaciação.
Mas, e o que dizer desses resíduos orgânicos? Os tais hidrocarbonetos aromáticos policíclicos não poderiam ser fruto de uma contaminação por microorganismos terrestres? Afinal, ao contrário de Marte, a Terra é um planeta literalmente repleto de vida.
A hipótese de contaminação foi levada a sério pela equipe de pesquisadores liderada por McKay. Diversos testes de controle rigorosos, elaborados para detetar possíveis contaminações, tiveram resultados negativos.
Em primeiro lugar, os defensores da tese da contaminação alegaram que os H.A.P. são resíduos comuns da poluição industrial (mais especificamente, da queima de combustíveis fósseis). Pois bem: o estudo do acúmulo de H.A.P. nas calotas polares da Groenlândia para os últimos 400 anos indicaram concentrações de 1 parte por trilhão, para a época pré-industrial, até 1 parte por bilhão, para a neve depositada no período mais recente. Como o hemisfério sul é menos industrializado do que o norte, poderíamos esperar que a concentração de H.A.P. do gelo antártico residisse num ponto qualquer entre esses dois limites. Contudo, a concentração de H.A.P. do meteorito ALH 84001 é mais de 100 vezes maior do que o limite superior acima citado. Além disso, os hidrocarbonetos presentes no meteorito não são os comumente associados aos resíduos da queima de derivados do petróleo.
Contudo, o indício mais conclusivo da verdadeira origem dos H.A.P. veio do gradiente de concentração desses compostos orgânicos no interior do meteorito. Se a hipótese da contaminação terrestre fosse válida deveríamos esperar maiores concentrações de H.A.P. nas regiões mais externas do fragmento. No entanto, verificou-se que para o ALH 84001 a concentração de H.A.P. é proporcional à profundidade (medida a partir da crosta fundida do meteorito), aumentando de um valor nulo, na superfície, até se estabilizar num valor máximo a 1,2 mm de profundidade. Esse perfil de concentração é consistente com a hipótese de volatilização e pirólise dos H.A.P. marcianos, e a conseqüente formação da crosta fundida, nas camadas mais externas, durante o ingresso do meteorito na atmosfera terrestre, mas inconsistente com a hipótese da introdução de material orgânico através das fraturas do meteorito durante o período em que este permaneceu enterrado sob o gelo antártico.
Estudos exaustivos praticamente descartaram a hipótese de contaminação do fragmento durante as diversas fases do estudo a que foi submetido no ambiente controlado de laboratório.
Admitindo-se a origem marciana dos H.A.P. presentes no meteorito ALH 84001, existe a possibilidade desses compostos carbonados se terem originado através de processos inorgânicos, sem qualquer relação com as atividades metabólicas de microorganismos?
A equipe de McKay não considera provável a hipótese de uma origem abiótica. Uma análise microscópica da estrutura interna dos glóbulos indica que eles são constituídos por várias camadas concêntricas de hidrocarbonetos associados com elementos metálicos como o cálcio, o ferro, o magnésio e o manganês. Cada uma das camadas apresenta forte predominância de um desses elementos metálicos em detrimento dos demais. Estruturas elaboradas desse tipo são extremamente semelhantes às encontradas nos resíduos orgânicos associados aos microfósseis atribuídos às bactérias terrestres primitivas.
Outro indício importante da origem biológica dos H.A.P. do meteorito é a coexistência de camadas ricas em sulfito de ferro com outras, que possuem grande abundância de partículas de magnetita. A presença simultânea desses dois compostos de ferro numa mesma amostra só pode ser explicada admitindo-se um hipótese biogênica de formação dos H.A.P. Sabe-se que as formas microbianas terrestres produzem tanto magnetita quanto sulfito de ferro através de reações químicas de oxidação e redução. As partículas de magnetita presentes no ALH 84001 são química, estrutural e morfologicamente similares às partículas de magnetita terrestres conhecidas como magnetofósseis, que sabemos serem resíduos fósseis das atividades metabólicas de determinadas classes de bactérias.
Ainda no interior do meteorito, foram detetados indícios da existência de determinadas estruturas de caracterização complexa, descritas no artigo da equipe de McKay como ovóides, que guardariam uma certa semelhança com os microfósseis terrestres denominados nanobactérias. Ainda é muito cedo, contudo, para se afirmar se o ALH 84001 abriga apenas os resíduos metabólicos da flora bacteriana de Marte, ou também as próprias bactérias em si. A hipótese não está, é lógico, comprovada, não passando no momento de uma interpretação. Uma posterior confirmação (ou desmentido) ainda deve depender de novas séries de testes e análises. Portanto, aguardem novos informes!
Já parece claro, no entanto, que nenhuma das observações acima descritas, examinada de forma isolada, é conclusiva em prol da existência de atividades biológicas fósseis em Marte. Embora se possam imaginar explicações diversas da hipótese biogênica para cada um dos fenômenos abordados quando encarados individualmente, uma vez que os consideremos no seu conjunto, sobretudo à vista da sua associação espacial no interior exíguo de uma única amostra meteorítica com pouco menos de dois quilogramas de massa, somos persuadidos a admitir a existência de fortes evidências em favor da vida unicelular no passado de Marte.
A se confirmar a hipótese das bactérias marcianas fósseis, a ciência terá conseguido comprovar que o fenômeno da origem da vida nada tem de único, místico ou especial. Se até um planeta árido e inóspito como Marte pôde um dia abrigar formas biológicas autóctones, o surgimento de vida pelo universo afora deve ser um evento bem mais prosaico do que se supunha anteriormente. Talvez devamos considerar o aparecimento de formas unicelulares como conseqüência natural da evolução geológica das superfícies planetárias, e admitir que a vida acabará surgindo, sempre que as condições ambientais se mantenham favoráveis por um período de tempo suficientemente longo.
Mas, quaisquer que sejam os resultados finais dos estudos do meteorito ALH 84001, uma coisa é certa: a exobiologia deixou de ser apenas um conjunto de especulações intelectualmente instigantes para assumir o status de disciplina científica séria. Pois, quando não dispomos de fatos, contra a ignorância só nos resta a especulação filosófica. Contudo, quando criaturas racionais, humanas ou alienígenas, examinam amostras, analisam dados quantitativos, tecem hipóteses e estabelecem conclusões e teorias, isto é ciência.
Gerson Lodi-Ribeiro,
Setembro de 1996.
Leitura Adicional:
McKay, David S.; Gibson Jr., E.K.; Thomas-Keprta, K.L.; Vali, H.; Romanek, C.S.; Clemett, S.J.; Chillier, X.D.F.; Maechiling, C.R. & Zare, R.N.: "Search for Past Life on Mars: Possible Relic Biogenic Activity in Martian Meteorite ALH84001", Science, vol. 273, No. 5277, Issue of 16 August 1996 (pp. 924-930).
Ochert, Ayala: "Life on Mars?", Nature Science Update, 22 August 1996.
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NOTAS: