Trabalhos: Trabalho de Aprendiz

in "José Anastácio da Cunha, i.e., João Pedro Ferro - Em Torno de Maçonaria", Lisboa, 1995

João Pedro Lagoa Baptista Ferro foi iniciado maçon em 1986 na Loja Rebeldia e, em 1989, foi co-fundador da Loja Fénix, de que foi Venerável em 1992-93 e 1993-94. Passou ao Oriente Eterno em 1994, vítima de doença cancerosa.
Apesar de não ter sido apresentado na Loja Fénix, mas sim na Loja Rebeldia, decidiu-se integrar o seu Trabalho de Aprendiz, pela sua qualidade, nesta secção de Trabalhos.

V.·. Mestre e vós todos, meus IIr.·., em vossos ggr.·. e qualidades:

I - INICIAÇÂO
Falar do que foi para nós, Aprendizes, a cerimónia de iniciação, não é tarefa fácil. As provas a que fomos submetidos têm, para cada um de nós, uma interpretação pessoal, que deve manifestar-se sob a forma de ensinamentos e que, sendo simbólica, é sempre passível das mais diversas interpretações.

A iniciação, para além do aspecto secundário de servir para os maçons de cada oficina analisarem as futuras qualidades maçónicas e, por isso mesmo humanas, do candidato tem, como objectivo principal, simbolizar a dicotomia que naquela cerimónia gradualmente se processa, entre as pesadas trevas do mundo profano e a leveza da Verdade ou seja da Luz. Tendo sido iniciado e, portanto, nascido para uma nova vida, o Aprendiz tem agora a possibilidade de percorrer a longa estrada da Vida, não sozinho, debatendo-se e tropeçando a todo o momento - como até então fizera - mas amparado pelos seus irmãos mais velhos, que o ensinam e conduzem através dos obstáculos, numa atmosfera verdadeiramente fraternal. Compreendendo a iniciação, o Aprendiz tomou conhecimento com o verdadeiro segredo da Maçonaria. Este segredo, incompreensível para a maioria dos profanos, e que muitas vezes se torna o principal motivo do combate antimaçónico, não é mais que o próprio segredo da Vida.

Dentro da Maçonaria, o Aprendiz passa a trabalhar efectivamente para o seu progresso e o dos seus irmãos e, muito em particular, encontra-se apto para congregar esforços com todos aqueles que, à sua semelhança, buscam a gnose - e, por isso, a perfeição - e juntos contribuírem para a construção de um Tempo onde, acima de tudo, impere a divisa da Liberdade, Igualdade e Fraternidade e onde os homens se guiem pelo código da Justiça, Verdade, Honra e Progresso.

Quanto à cerimónia em si e, em particular, no meu caso, saliente-se que na semana anterior à iniciação tinha ido ver a versão cinematográfica d'A Flauta Mágica de Mozart, feita pelo sueco Ingmar Bergman. Evidentemente que depois de ter visto as provas de iniciação da personagem principal, Tamino, estava à espera de que as minhas se processassem em moldes semelhantes. Confesso que estava um pouco assustado com a dificuldade das provas a que ia ser submetido e das ciladas que me seriam feitas para testar as minhas eventuais virtudes. Acima de tudo não queria proceder como um "Papageno". Nesse aspecto, as provas não foram tão exigentes quanto eu esperava. Mas também não se pense que foram fáceis: de tudo, o mais difícil de superar foram os questionários: a importância das perguntas feitas pelos irmãos arguentes é tal que estas não podem nem alguma vez poderão ser respondidas efeicazmente no simples intervalo entre duas viagens e, sobretudo, debaixo do nervosismo do candidato. Porém, o questionário é, talvez, dos pontos mais importantes das provas de iniciação.

Para terminar, queria salientar a beleza do ritual em si, que representa, na perfeição, o despertar para uma nova vida que todos nós desejamos seja mais pura, e que permitiu sentir o calor humano dos irmãos reunidos nesta R.·. L.·..

II - CONSIDERAÇÕES ACERCA DE UM SÍMBOLO: O COMPASSO
O compasso, na emblemática maçónica, representa, como tão bem escreveu o nosso Resp.·. Ir.·. e Sap.·. Gr.·. Mest.·. Adj.·., Alexandre Herculano, as "possibilidades do pensamento nas diversas formas de raciocínio e, também, da merida, do relativo (círculo) dependente do ponto inicial (absoluto). [...] Quanto mais aberto for o ângulo (até ao limite de 180º), tanto maior será o círculo, o que simbolicamente indica a extensão possível do pensamento a partir de um espírito cada vez mais forte".

Assim, o ângulo do compasso define o raio de acção intelectual do homem, que é o seu centro. Quanto maior for a perfeição atingida por cada maçon tanto maior será a circunferência e o círculo por esta delimitado e, por conseguinte, tanto maior será o seu poder de construlção mental na grande obra arquitectónica que é o Universo.

Neste sentido e ainda simbolizando a predominância da acção intelectual do obreiro sobre a matéria, o compasso surge, relacionado com o esquadro, nos três primeiros graus da Maçonaria Simbólica.

  • 1º grau (Aprendiz): esquadro sobreposto ao compasso. Significa que o Aprendiz ainda não adquiriu a plena consciência de si e de todas as suas possibilidades intelectuais, não estando ainda apto para uma construção inventiva; predomínio da acção material;
  • 2º grau (Companheiro): compasso entrelaçado com o esquadro. Representa a acção intelectual a par da acção material. Aqui, o obreiro já se encontra habilitado para tentar, embora sob a vigilância do Mestre, construir por si;
  • 3º grau (Mestre): compasso sobreposto ao esquadro. Neste grau, teoricamente, o maçon atingiu a plenitude do conhecimento maçónico, havendo um predomínio da acção intelectual sobre a acção material.

III - NOME SIMBÓLICO: JOSÉ ANASTÁCIO DA CUNHA
José Anastácio da Cunha (Lisboa, 11.5.1744 - Lisboa, 1.1.1787) foi um brilhante matemático e poeta da segunda metade do século XVIII.

Nascido em Lisboa, desde logo a sua educação seguiu a linha do humanismo e da liberdade possível na época. Sendo ainda nestre século o ensino totalmente dominado pela Igreja, Anastácio da Cunha ingressou, ao que se julga, aos dezasseis anos, na Congregação do Oratório de Lisboa, onde adquiriu vastos conhecimentos. Os Oratorianos possuíam, contudo, uma particularidade deveras importante: opondo-se ao paradigma educacional da época (escolástica, preconizada pelos jesuítas), propunham e utilizavam um novo sistema de ensino, humanista, aberto, baseado num experimentalismo humano, que fez com que fossem os precursores em Portugal dum ensino moderno. Foi junto destes padres, tão liberais e abertos para a época e para religiosos do século XVIII, que José Anastácio da Cunha adquiriu os estudos necessários que lhe permititam assentar praça no Regimento de Artilharia do Porto, sediado em Valença do Minho, para o qual foi nomeado como 1º tenente da Companhia de Bombeiros por Decreto do Conselho de Guerra de 25 de Junho de 1764. O quadro de oficiais deste Regimento era essencialmente constituído por estrangeiros, contratados pelo maçon conde de Schaumburg Lippe, quando este fora encarregue pelo marquês de Pombal de organizar o exército português. Foi em Valença do Minho que José Anastácio da Cunha teve os primeiros contactos com a Maçonaria: o comandante do Regimento era o escocês James Ferrier, provavelmente maçon, assim como maçon era Miguel Kinselac, que foi condenado pela Inquisição (1778) como pedreiro-livre. Tendo sido obrigado a abandonar Portugal, James Ferrier foi o autor, sob o pseudónimo de Arthur William Costigan, duns importantes Sketches of Society and Manners in Portugal (2 vols., London, T. Vernor, 1788), onde criticou causticamente a situação portuguesa e onde advogou os princípios racionalistas e maçónicos. Ferrier exerceu grande influência sobre os seus subordinados. também no quartel de Valença do Minho os oficiais liam e recitavam escritores como Pope, voltaire e Holbach, cujas obras estavam classificadas pela Santa Sé como heréticas e subversivas.

Ao estudar no Regimento de Artilharia do Porto, e constatando o obsoleto ensino que se fazia da matemática através das obras de belidoro e da mecânica pelos trabalhos de Dulac, José Anastácio da Cunha elaborou (1769) uma Carta Physico-Mathematica sobre a Theoria da Polvora em Geral, e a Determinação do Melhor Comprimento das Peças em Particular (editada no Porto, em 1838, por José Vitorino Damásio e Diogo Kopke), em que sobre estes assuntos apresentava ideias novas. Esta sua obra terá sido a responsável directa pela sua nomeação (1773), por parte do marquês de Pombal, para reger a cadeira de Geometria na recentemente reformulada Faculdade de Matemática da Universidade de Coimbra. POrém, apenas cinco anos após ser empossado como lente naquela Faculdade, foi denunciado ao Santo Ofício como herege. A denúncia era essencialmente baseada nas "imoralidades" por ele cometidas, juntamente com os seus colegas, no Regimento em Valença, e no ensino de teorias de autores proibidos pela Igreja. Pelo período que passou em Valença do Minho, acusaram-no de "[...] se persuadir dos erros do deísmo, tolerantismo e indiferentismo, tendo para si, e crendo que se salvaria na observância da lei natural (...)" e ainda por ter por "[...] injustas e tiranas as leis com que a Igreja obrigava os fiéis a captar os seus entendimentos [...] persuadindo-se igualmente que qualquer pessoa se salvaria em toda e qualquer religião que seguisse, e fielmente observasse, capacitado que obrava bem, ainda que errasse, não sendo por malícia, mas por falta de conhecimentos". Quanto ao ensinamento de doutrinas hereges, foi acusado de ensinar pelo Sistema da Natureza de Holbach, tendo-se até provado que emprestara um exemplar a D. rodrigo de Sousa Coutinho (conde de Linhares).

Assim, José Anastácio da Cunha foi preso, condenado e internado na casa da Nossa Senhora das Necessidades da Congregação do Oratório de Lisboa (local por ele escolhido para cumprir as suas penas); e afastado para sempre do ensino universitário.

De toda a sua obra, dedicada à matemática, física e filosofia, o mais importante trabalho foi, sem dúvida, os Princípios Mathematicos [...] (Lisboa, 1790), que o eminente geómetra inglês Playfair considerou ser: "A primeira obra científica de Portugal, que faria honra aos países mais adiantados em conhecimentos filosóficos."

Foi também José Anastácio da Cunha um poeta. Influenciado pelas escolas francesa e inglesa, alguns autores consideram-no percursor do Romantismo em Portugal. Foi em 1839 que a sua obra poética, pela primeira vez reunida em volume, pela mão de Inocêncio Francisco da Silva, saiu do prelo, com o título de Composições Poéticas do Doutor José Anastácio da Cunha, [...] (Lisboa, 1839). A poesia de José Anastácio da Cunha foi definida pelo próprio Almeida Garrett ao dizer:

    "De José Anastácio da Cunha, que das matemáticas puras nos deu o melhor curso que há em toda a Europa, desse infeliz engenho (que talento houve já feliz em Portugal) a quem não impediam as rectas de Euclides, nem as curvas de Arquimedes, de cultivar as musas; de tão ilustre nome, que direi eu, senão o muito que me pesa da raridade das suas poesias? Todas tão filosóficas, ternas e algumas repassadas de uma tão meiga sensibilidade, que deixam na alma um como eco de harmonia interior, que não vem do metro dos seus versos, mas das ideias dos pensamentos."

Chegamos finalmente à questão de ter ou não José Anastácio da Cunha sido maçon. Não há qualquer documento conhecido que o indique objectivamente, até porque os documentos originais referentes à Maçonaria Setecentista perderam-se quase todos - se alguma vez os houve - nas numerosas perseguições que lhe foram movidas. Tem-se notícia, contudo, da existência, em meados e finais do século XVIII, de um oficina maçónica a funcionar em Valença do Minho, para a qual não existe qualquer documentação conhecida. Tudo isto, aliado às amizades e conhecimentos de José Anastácio da Cunha, aponta para que tenha sido iniciado em data e local desconhecido, talvez no regimento aquartelado naquela localidade minhota, cujo comandante e outros oficiais, de origem inglesa, eram provavelmente maçons, como confirma Raul Rego ao afirmar: "José Anastácio da Cunha, futuro lente de Coimbra, terá sido iniciado em Valença do Minho por oficiais ingleses."

Existe no entanto um documento que prova que José Anastácio da Cunha era maçon e que fora iniciado em Valença, ou - hipótese mais remota - em Almeida: trata-se de uma carta que lhe escreveu a sua amante Margarida e que se encontra reproduzida por António Baião nos seus Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa. Esta carta possui a particularidade de apresentar aquilo a que o Baião chama de "indecifráveis sinais", e que não são mais do que escrita maçónica. A mulher que escreveu esta carta, provavelmente ensinada por José Anastácio da Cunha, utiliza o alfabeto maçónico para ocultar palavras como "santo ofício", "religião", "temente a deus" e "vivi", embora com alguns erros ortográficos, motivados certamente pela inexperiência no uso deste alfabeto e também pela sua pouca cultura, demonstrada ao longo de toda a missiva.

Este documento, há muito publicado nos meios historiográficos, escapara sempre à observação atenta dos maçons, não compreendendo, portanto, os profanos o significado da simbologia nele empregada, embora os sinais tenham sido recentemente decifrados. O seu valor para a história da Maçonaria portuguesa é duplamente importante: por um lado, por provar que José Anastácio da Cunha foi maçon, não apenas em espírito e em ideologia, mas tendo efectivamente recebido a Luz; por outro, na medida em que é o mais antigo documento conhecido para Portugal a apresentar escrita com o alfabeto maçónico. Sobre este assunto encontram-se investigações em curso de que, numa altura mais próxima, informarei esta R.·. L.·..

Por tudo o que aqui foi dito e todo o mais que ficou por dizer, José Anastácio da Cunha contribuiu decisivamente para o progesso intelectual do País e, por conseguinte, da humanidade em geral. É pois um exemplo que é necessário não esquecermos, tanto pelo seu valor intrínseco, como pelas perseguições que lhe foram movidas - a ele e a tantos outros homens de real valor da nossa história - por parte de forças ancestralmente cultoras da ignorância e do antiprogresso.