Trabalhos: Liberdade e Maçonaria

Lisboa, 9 de Novembro de 1999

Este foi o discurso proferido pelo Professor Doutor A. H. de Oliveira Marques na sessão comemorativa do 10º aniversário da R.·. L.·. Fénix. Esta sessão teve como tema principal a Liberdade e contou com a presença de vários OObr.·. de várias OOf.·. do Gr.·. Or.·. Lusitano, bem como dos principais dignatários desta Obediência.

Na sua derradeira mensagem ao povo maçónico, no equinócio de 1928, dizia o Grão-Mestre Magalhães Lima:

Não pode apelidar-se Pátria um país minado por ódios vesgos, uma terra onde medram as ambições, as invejas, as vaidades, a ganância sórdida. Pátria é sinónimo de Liberdade. Onde está a Pátria aí está também a Liberdade.

Mesmo que o conceito não fosse novo, como admitia o próprio Magalhães Lima, nem por isso era menos revolucionário. De um traço desapareciam a história, a etnia, a língua, o nascimento e a terra dos antepassados como elementos definidores de pátria. Identificar pátria com liberdade era internacionalizar a pátria, era fazê-la coincidir com qualquer Estado do planeta onde fossem proclamados e respeitados os direitos básicos das gentes. Um português, um italiano ou um russo, sujeitos a ditaduras ferozes, poderiam escolher como pátrias uma França, uma Inglaterra ou uns Estados Unidos. Ao conceito nacionalista substituía-se o conceito transnacional, o conceito maçónico por excelência, que visava a emancipação do prejuízo, da intolerância e da superstição. Como escreveria, alguns anos mais tarde, o rosacruciano Fernando Pessoa, a nação é a escola presente para a supernação futura, a Humanidade.

De facto, nos quase 300 anos de história maçónica, nos mais de 270 dessa mesma história em Portugal e nos quase 200 anos de existência do Grande Oriente Lusitano, o combate pela Liberdade tem sido um denominador comum. Note-se que Liberdade se entendia, na prática, antes das revoluções Americana e Francesa, como uma prerrogativa de carácter social e laboral: o homem livre – e todo o maçon tinha, como tem, de o ser – era o contrário do escravo, o que podia dispor, sem peias, da sua pessoa. Gradualmente, porém, o conceito de Liberdade ampliou-se e transformou-se, ganhando contornos que hoje nos são mais familiares. Já num discurso de Orador, pronunciado por volta de 1790 pelo grande maçon português, o sacerdote D. André de Morais Sarmento, se mencionava o legítimo poder a que todo o obreiro devia obediência e fidelidade, o que implicava a existência de poderes ilegítimos, abrindo aliás um vasto campo de subjectivismo e de casuística futuros.

A liberdade desses primeiros tempos era encarada sobretudo do ponto de vista religioso. Nas lojas conviviam adeptos de várias confissões, nomeadamente católicos, protestantes e judeus, o que perturbava a unicidade religiosa tradicional e própria da época, levando a condenações, quer por parte das autoridades católicas quer das evangélicas. A bula papal de 1738, que proscrevia Maçonaria e maçons, apontava como primeira razão condenatória o reunirem-se, sob juramento comum, homens de várias religiões. Já na década de 20 do mesmo século, um texto ainda hoje respeitado, as Constituições do pastor protestante Anderson, proclamava a liberdade religiosa dentro das lojas, aceitando até uma religião natural, própria de todos os homens.

A liberdade religiosa e uma liberdade civil cada vez mais definida encontram-se nos diversos textos constitucionais portugueses do século XIX. Na Constituição de 1821 proibia-se a admissão de profanos absolutistas, inimigos do governo representativo. Embora retirada das Constituições posteriores, essa proibição traduzia o cunho liberal da Maçonaria da época. A partir de 1871, a tolerância entrou nas definições de Maçonaria do Grande Oriente Lusitano, o que se repetiria em quase todos os textos constitucionais até hoje. Mas o princípio desenvolveu-se ainda mais. Após 1895 as Constituições portuguesas incluíram, à cabeça, verdadeiros códigos de princípios morais, políticos e religiosos, onde o conceito de Liberdade estava sempre presente.

Não se argumente que tais princípios eram ou são exclusivos da Maçonaria portuguesa e, dentro dela, de um Grande Oriente Lusitano republicano ou republicanizante. Em muitas maçonarias eles se encontravam e encontram, quer na Europa quer em Obediências americanas, africanas, asiáticas, etc. A Liberdade corresponde, na simbologia maçónica, ao compasso das Três Grandes Luzes que adornam o altar de uma loja regularmente constituída. Todos os dicionários de Maçonaria consagram ao termo uma importância comparável ao que ele tem significado na luta dos povos e dos cidadãos pela sua emancipação colectiva e individual, sempre apadrinhada por obreiros da Arte Real, desde a Revolução Americana até à libertação de Timor, passando pela Revolução Francesa e pelos movimentos independentistas em todos os continentes, e em épocas em que a Maçonaria era una em todo o mundo. Não aconteceu por acaso que, nos Estados onde se implantaram regimes autoritários baseados em ideologias totalitárias, a Maçonaria foi sistematicamente perseguida e, em muitos casos, conseguida a sua extinção. Vejam-se os países fascistas e os países comunistas. E não se conteste com a Maçonaria cubana de hoje, já que ela só subsiste mediante a entrega às autoridades profanas da lista dos seus irmãos, o que constitui violação flagrante do segredo maçónico tradicional.

Convém insistir em dois pontos que se me afiguram chave no conceito de liberdade maçónica: o da já mencionada liberdade religiosa e o da invariabilidade de princípios.

A liberdade religiosa confundiu-se, desde muito cedo, com liberdade de consciência. As imposições de cristianismo, ou de qualquer religião dita revelada, ou de crença na imortalidade da alma, ou da necessidade de existência de uma Bíblia no altar com obrigatoriedade de juramentos sobre ela, ou sequer de invocação de um Ser Supremo estavam ausentes das Constituições de Anderson e de outros textos maçónicos do século XVIII. Só mais tarde deram entrada no corpus de princípios de algumas maçonarias, nomeadamente nas de base protestante, onde o laicismo nunca, ou só muito tardiamente, penetrou. Isso não impedia que, durante mais de um século, a totalidade ou a esmagadora maioria dos maçons fosse cristã e jurasse sobre um livro religioso cristão – não necessariamente a Bíblia no seu conjunto, aliás não traduzida para português com Imprimatur antes de 1790 e, durante muito tempo, pouco divulgada, mas antes os Santos Evangelhos, do Novo Testamento, texto habitual de quaisquer juramentos profanos. Mas já em 1834 em Portugal, o ritual do Rito Francês não mencionava qualquer livro sagrado sobre o altar, a não ser os Estatutos Gerais da Ordem, embora os juramentos se fizessem perante ou na presença do Grande Arquitecto do Universo. Num Guia brasileiro da mesma data, referente ao Rito Escocês Antigo e Aceite, aceitavam-se, indiferentemente, a Bíblia ou os Estatutos Gerais da Ordem sobre o altar. Este foi depois o costume até aos dias de hoje, tendendo os referidos Estatutos – que se fizeram, mais tarde, coincidir com a Constituição – a predominar, a ponto de se tornarem, nos começos do século XX, quase exclusivos. A referência ao Grande ou Supremo Arquitecto do Universo manteve-se. Nada, porém, o obrigava, compreendendo-se que a evolução dos tempos, conduzindo a um maior laicismo e uma tolerância mais abrangente, aliada à vontade de restaurar à Maçonaria a liberdade inicial, levassem o Grande Oriente da Bélgica (1872) e o Grande Oriente de França (1877) a suprimir dos seus textos constitucionais a obrigatoriedade da crença em Deus e na imortalidade da alma, abusivamente introduzidas, e apenas por algumas Maçonarias, na primeira metade do século XIX.

De facto, só a aceitação de agnósticos e de livres-pensadores daria realidade ao desejo do pastor Anderson, em 1723: de que os maçons fossem, essencialmente, homens bons e leais ou homens honrados e honestos, quaisquer que sejam as denominações ou crenças que os possam distinguir, convertendo a Maçonaria em centro de união da Humanidade.

Como qualquer história, a da Maçonaria tem-se caracterizado por etapas e variações, tanto em princípios quanto em forma, ritual e objectivos. Nunca e em nada houve bases imutáveis – landmarks – que, de século em século, tenham sido recebidos dos nossos antecessores e assim transmitidos aos nossos sucessores. O tempo tudo modifica. Para começar, a própria Maçonaria especulativa resultou da Maçonaria operativa por sucessivas fases, que foram gradualmente reduzindo a participação de obreiros da construção material. A concepção e a estrutura das lojas variaram também, e já no período especulativo, existindo a princípio um único Mestre em cada uma, o qual trabalhava apenas com Companheiros e Aprendizes. Não se aceitavam servos nem escravos e, durante muito tempo, negros, índios ou outros membros de etnias havidas por inferiores. Já vimos como as crenças e as invocações de tipo religioso igualmente variaram. Houve, nos séculos XVIII, XIX e até XX, mulheres iniciadas em Obediências universalmente reconhecidas. Foi obrigatório, durante muito tempo, o uso do chapéu, posto e tirado em momentos diversos do ritual. Os poderes do Grão-Mestre e das várias autoridades maçónicas dependeram das Obediências. E os exemplos poder-se-iam multiplicar, mostrando que a fixação de landmarks imutáveis constituiu somente uma tentativa anglo-saxónica de definir dogmaticamente uma Maçonaria que tendia a fugir-lhe das mãos, fazendo-a controlar pela religião e pela moral judaico-cristãs e impondo-a ao globo como una e exclusiva. Condicionando a existência de Obediências a um reconhecimento por parte da Grã-Bretanha (no caso dos graus simbólicos) e dos Estados Unidos da América (no caso dos altos graus de um dos mais divulgados ritos, o Rito Escocês Antigo e Aceite), a Maçonaria anglo-saxónica controlaria o mundo maçónico, tal como a Inglaterra e, depois, os Estados Unidos, tentaram controlar desde o século XIX e hoje efectivamente controlam o mundo profano. Em vez de universal e livre, adaptável aos costumes de cada povo e à evolução da Humanidade, a imposição dos landmarks anglo-saxónicos criava uma Maçonaria arqueológica, parada no tempo, incapaz de ultrapassar um figurino clubista e folclórico. À Maçonaria da tolerância e da vanguarda substituía-se uma Maçonaria de museu.

Recusemos, meus Irmãos, este modelo, que muitos querem introduzir entre nós, mesmo que isso signifique a destruição dos fundamentos do Grande Oriente Lusitano e de todas as suas conquistas. Rejeitemo-lo sem hesitações. A Maçonaria, meus Irmãos, não pode reduzir-se às pretensões de obreiros fossilizados, conservadores e mesmo reaccionários, que não conseguem nem desejam entrever o progresso ou o futuro. A Maçonaria, meus Irmãos, não pode ser a variante iniciática de um poder imperialista e submisso à vontade dominadora anglo-saxónica.

A Maçonaria, meus Irmãos, é outra coisa. A Maçonaria é Liberdade.