Trabalhos: Vício-Virtude

Grémio Fénix, Janeiro de 1991

Nos antigos rituais maçónicos escrevia-se que os principais deveres de um maçon eram "cavar masmorras ao vício e erguer templos à virtude" (objectivos que se mantiveram com a expressão "fugir do vício e praticar a virtude"). E os vícios a combater, dizem os rituais actuais, são a tirania, a ignorância, os preconceitos e os erros, e as virtudes a glorificar, o direito, a justiça, a verdade e a razão. Praticar a virtude é, antes de mais, "preferir a tudo a justiça e a verdade".

João Pedro Ferro

Vício/virtude é um binómio que encontramos igualmente na iniciação dos neófitos. Batendo à porta, o candidato pretende entrar na Maçonaria. Pergunta-lhe então o Venerável: "Como pôde ele conceber tal esperança?", ao que o Guarda Interno assegura, "porque nasceu livre - entenda-se, 'renasceu', livre de preconceitos - e é de bons costumes". E aqui temos o julgamento: o candidato de "maus costumes", ou seja, o vicioso, não tem lugar no seio da Augusta Ordem.

É que, de facto, o antagonismo maniqueísta de bom e de mau, de virtuoso e de vicioso, sempre informou a moral social. Abre-se o dicionário e a definição de vício que se nos depara é de "grande defeito ou imperfeição, que torna uma pessoa (ou coisa) imprópria para o fim a que se destina". O vício é aquela "tendência habitual para proceder mal", são os costumes censuráveis ou condenáveis, os "maus costumes". Vício é libertinagem, desmoralização. O homem vicioso é aquele que se opõe a certos preceitos ou regras: é corrupto, depravado, desmoralizado.

Efectivamente, o vício é tudo aquilo que a moral da sociedade não aceita, tudo o que foge à regra, que escandaliza a maioria. E é esta maioria o guardião da moral, a defensora da virtude. Mas, se prevalecesse somente a moral da maioria, uma moral sempre conservadora - porque as maiorias, os consensos são por natureza conservadores, contrários ao progresso - viveríamos então segundo uma moral de há muitos séculos atrás. Ora acontece que, nas várias Santanas do Agreste1 deste mundo e da nossa história, sempre foram aparecendo aquelas "televisões" que cerceavam, a pouco e pouco, a "moral e os bons costumes", e que mobilizavam hordas de Perpétuas, furiosas, em defesa do statu quo, numa batalha já perdida. E é assim que as próprias Perpétuas, a pouco e pouco, vão achando interessantes as imagens da TV e que, não digo os seus filhos, mas os seus netos já não se escandalizam com as nádegas que sobram do fato de banho ou com os seios que, teimosos, tentam romper o decote. Tudo isto para dizer que, com a evolução da moral ao longo dos tempos - umas vezes mais permissiva, outras menos - também os conceitos de vício e de virtude variaram e que as variações foram, quase sempre, produzidas por aquela minoria social de "libertinos", de "desmoralizados", que escandalizava a maioria da sociedade.

Introduzamos agora uma outra variante: o prazer. O prazer é aquilo que agrada aos nossos sentidos, satisfaz o intelecto. Também os prazeres sempre foram variando e variam consoante a formação do indivíduo, consoante as suas necessidades, consoante a sua personalidade mas também consoante aquilo que a moral de uma época permite. Durante algum tempo beber café era considerado um vício; hoje ninguém pensa assim, se não se estiver "viciado" (ou seja, se não beber demais, ou não estiver dependente). E assim, o prazer rapidamente se transforma em vício, quando o corpo e a mente, num crescendo, reclamam a sua satisfação, até à dependência. E então surge o julgamento: são os viciados - os que sofrem de gula, os alcoólicos, os fumadores, os drogados, os tarados sexuais, os psicopatas, os criminosos...etc. Enfim, todos aqueles que fogem à regra, que não observam as normas dos bons costumes, que aconselham a moderação nuns casos e a abstenção total noutros, e que a sociedade normalmente taxa de desequilibrados, "loucos", quando muitas vezes são apenas diferentes. Os bons costumes, com as suas normas de moderação, permitem apenas um prazer moderado, ou seja, mantêm o indivíduo numa incessante insatisfação ou antes, mantêm o indivíduo que não se contenta com as coisas simples da vida. E tudo isto em nome da integridade física e da moral: porque faz mal comer muito, beber muito, fumar muito, fornicar muito, etc. Na realidade, tudo isto e muito mais, quando praticado em excesso, faz mesmo mal. Vejamos um exemplo simples: suponhamos que eu gosto muito de bolinhos de ovos e que passo os dias a comê-los desenfreadamente: sou um viciado, tenho prazer de comer bolinhos de ovos uns atrás dos outros. E tenho de aguentar todas as recriminações do mundo que me rodeia: porque me faz mal à saúde (e provavelmente apanharei uma cirrose, diabetes, estragarei os dentes, etc. e assim morrerei muito mais cedo: porque agora o que interessa é viver muitos anos); porque é imoral gastar tanto dinheiro em doces enquanto tanta gente morre de fome, além do que desequilibro o meu próprio orçamento; porque perco o apetite para comer as refeições normais, cheias de vitaminas, proteínas, sais minerais e todas aquelas coisas necessárias para que uma pessoa resplandeça de saúde, etc., etc. Mas, na realidade, se eu, na minha formação, tomei conhecimento dos problemas que os bolinhos de ovos, quando comidos em excesso, podem trazer, ou se ganhei meios para os poder deduzir, o que é que o mundo tem a ver com o facto de eu comer muitos bolinhos de ovos, ou até de não me preocupar de morrer alguns anos mais cedo por comer aquilo de que tanto gosto? Teria menos aspectos visíveis mas seria muito mais prejudicial para a minha felicidade se não os comesse, fazendo ouvido à maioria.

A satisfação do prazer e a intensidade do vício deverão ter duas limitações: a formação correcta que permite uma mínima capacidade de escolha e a liberdade dos outros e esta última discutível - se não se escandalizasse, não se evoluía. Quanto ao resto, deve-se sempre tentar satisfazer os sentidos e a imaginação, de modo a criar uma moral de libertação e a impedir que as pessoas vivam frunstradas e infelizes. E aqui cabe um largo papel à Maçonaria e à sua capacidade de formação, pois afinal tudo se integra numa aprendizagem de progressiva abertura de espírito.

Disse.

1- Referência à telenovela brasileira Tieta do Agreste, então em exibição.