Administração Pública e Racionalidade Gerencial: Programas de Desligamento Voluntário, Características e Efeitos Alcançados

 

Antônio Rodrigues de Freitas Jr., Antônio Russo Filho e Mário Sérgio Maschietto

(Assessores Jurídicos da Cãmara dos Vereadores de São Paulo)

 

Com o advento da crise do paradigma político do welfare state, que já em meados dos anos oitenta pôs a nu as insuficiências das concepções que viam no Estado o provedor direto do bem-estar, quando não do próprio emprego, tomaram corpo um cem-números de tentativas de repensar a Administração tendo presentes suas reais possibilidades orçamentárias bem como suas finalidades principais.

Um pouco premida por imperativos econômicos, um pouco também induzida pelo predomínio de ideários políticos que constituem, em maior ou menor grau, modulações da ideologia do minimal state, a Administração foi levada, especialmente ao longo da última década, a rever seus pressupostos bem como a repensar seus parâmetros constitutivos. Essa mudança de perspectiva, como é compreensível, causou grande impacto sobre algumas das categorias fundamentais da dogmática jurídica publicista e ensejou, como subproduto, a necessidade de se desenharem novos quadrantes conceituais por cujo intermédio fosse possível veicular essa nova espécie de demanda política.

1. Com esse pano de fundo sobressaem, no Brasil, muitas propostas tendentes da reduzir os gastos públicos destinados à remuneração de servidores. Tenham-se presentes, v.gr., propostas de reforma constitucional destinadas à redução e/ou à extinção de benefícios previdenciários; figuras jurídicas tais como o desligamento de servidores por "insuficiência de desempenho" e os assim chamados "Programas de Desligamento Voluntário" aplicados à Administração Pública.

É precisamente desses últimos que nos ocuparemos ao longo do presente estudo.

A primeira circunstância a se levar em conta para a plena compreensão desses programas consiste no fato de terem sua origem no âmbito da iniciativa privada.

Com efeito, durante os piores momentos da recessão econômica que teve lugar na segunda metade dos anos oitenta, diversas empresas foram levadas a praticar extensos programas de dispensa de seus empregados. Ocorre notar, entrementes, que o Brasil passava, naquela ocasião, pelas últimas etapas de seu longo e quase inconclusivo processo de democratização institucional, e também em função disso, o cenário econômico contava então com a ampla capacidade de arregimentação e de conflito protagonizada por sindicatos de trabalhadores; particularmente de trabalhadores urbanos do setor industrial e da atividade bancária.

A solução então esboçada por algumas lideranças empresariais, para superar ou minorar o impacto das dispensas coletivas nas relações com os sindicatos de trabalhadores, foi a implementação de programas de dispensas sujeitas a adesão de empregados interessados; e para tanto as fez acompanhar da concessão de vantagens adicionais àquelas então previstas na legislação em vigor. A premissa desses programas foi a de que o oferecimento de vantagens adicionais (aviso prévio ampliado, meses adicionais de cobertura por planos de saúde, compromissos de reconvocação em caso de reaquecimento da atividade econômica, etc.), contribuiria para legitimar as iniciativas de corte de pessoal, conferindo-lhes um sinal de boa-fé e de sinceridade no trato com o problema, bem como tornando mais assimilável o custo social e humano a ser inexoravelmente pago por conseqüência da crise recessiva.

É necessário não perder de vista que a dispensa — vale dizer, que a rescisão do vínculo empregatício por iniciativa unilateral do empregador — mesmo coletiva, estivera sujeita no direito brasileiro, para a grande maioria dos casos, à vontade exclusiva desse último. Por outro lado, nada obstante amplamente discricionária, a dispensa sempre foi acompanhada de um sistema de indenização tarifada tendo por base, sobretudo, as variáveis tempo de serviço e remuneração. A solução preconizada por certos empresários, sob a rubrica dos chamados "programas de desligamento voluntário", foi precisamente a de tornar mais atraente — ou se tanto menos oneroso — o ato da dispensa, de tal ordem que os empregados pudessem, eles próprios, optar pela ordem dos que seriam por ele vitimados.

Esse painel de informações históricas pode ser útil para compreender em que medida e sob quais aspectos a própria idéia de um Programa de Desligamento Voluntário — ou simplesmente PDV — tenderia a apresentar dificuldades se e quando aplicado à Administração pública sem as necessárias mediações e adaptações.

2. Embora buscando atingir finalidades semelhantes, os diferentes programas agregados sob a rubrica PDV, apresentam diversidade sob inúmeros aspectos, em correspondência com as peculiaridades existentes em cada Entidade da Administração Pública a que se destinam.

2.1.Nesse passo, o programa instituído pelo Executivo Federal, por intermédio da Medida Provisória n. 1530, foi estruturado tendo por escopo atingir aqueles servidores exercentes de atribuições de menor qualificação e complexidade na Administração.

Em conseqüência, foram excluídos do âmbito do programa os integrantes de carreiras consideradas estratégicas para o desempenho das atribuições reservadas à Administração Pública, tais como Advogados da União, Auditores Fiscais do Tesouro Nacional, Diplomatas, Analistas de Controle e Finanças, entre outros de nível técnico e superior.

Dessa forma, puderam aderir ao programa os servidores estáveis, titulares de cargo de provimento efetivo, bem como os antigos servidores celetistas não amparados pela estabilidade conferida pelo art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e que com o advento do Regime Jurídico Único — Lei n. 8112/90 — tiveram suas funções transformadas em cargos.

Uma vez que o eixo de tais programas consiste no oferecimento de incentivo financeiro, autêntico estímulo ao servidor a fim de que se desligue da Administração Pública, o Executivo Federal, tendo em vista as metas a serem atingidas, estabeleceu indenização de forma escalonada, de acordo com o tempo de efetivo exercício.

Assim, o servidor com até 14 (quatorze) anos de serviço, por exemplo, percebeu indenização no importe de uma remuneração por ano, enquanto que aquele que contava com 15 (quinze) a 25 (vinte e cinco) anos recebeu indenização no montante de uma remuneração e meia.

Considerando também as repercussões sociais advindas da possibilidade de desemprego, em decorrência do Programa de Desligamento Voluntário, ao instituí-lo buscou-se uma forma de minimizar seu impacto social, razão pela qual o plano em apreço instituiu projeto de apoio, qualificação e aperfeiçoamento profissional objetivando a reinserção do servidor no mercado de trabalho (art. 14, Decreto n. 2.076, de 20 de novembro de 1996).

No tocante às assim chamadas Metas e Resultados, segundo dados jornalísticos do total de servidores a que se dirigia, aproximadamente 327.834 (trezentos e vinte e sete mil, oitocentos e trinta e quatro), 10.865 (dez mil, oitocentos e sessenta e cinco), 3,31%, manifestaram e tiveram deferida sua adesão; o que de certo modo evidencia o reduzido impacto concreto dessa iniciativa no montante da folha de pagamento da União.

2.2. Na mesma direção, o Executivo do Estado de São Paulo, procurando adequar sua folha de pagamentos ao limite delineado pela Lei Complementar nº 82, de 27 de março de 1995, conhecida como "Lei Camata", que preconiza sejam as despesas com pessoal limitadas a 60% (sessenta por cento) das receitas correntes líquidas, vem promovendo programas de desligamento voluntário.

O mais recente deles, instituído por meio da Lei Complementar nº 811, de 24 de junho de 1996, foi organizado tendo como ¨público alvo¨ , em especial, os servidores que ingressaram na administração pública nos últimos 12(doze) anos, eis que, segundo dados apurados pela Secretaria da Administração e Modernização do Serviço Público, nesse período teria sido constatado aumento injustificado no quadro de pessoal.

Em vista de tais objetivos, procurou-se ampliar ao máximo o universo de servidores aptos a aderir ao referido programa.

Desse modo, puderam candidatar-se ao P.D.V. estadual, servidores estáveis titulares de cargos de provimento efetivo, servidores admitidos nos termos dos incisos I, II e III do artigo 1º , da Lei nº 500, de 13 de novembro de 1974, extranumerários, e celetistas, excluídos apenas os integrantes da Polícia Civil e Militar, e Agentes de Segurança Penitenciário.

Em consonância à sua decisão de estimular a adesão daqueles servidores que ingressaram na Administração nos últimos doze anos, foi estabelecido como incentivo financeiro o valor de 100% (cem por cento) da retribuição global mensal do servidor por ano de serviço público estadual, limitado ao máximo de 12 (doze) retribuições.

Tendo em consideração a elevada competitividade existente no mercado de trabalho, em decorrência da recessão econômica, o plano em análise preocupou-se em oferecer aos servidores treinamento destinado a requalificá-los profissionalmente, tendo em vista a busca de novo emprego ou a abertura de negócio próprio, inclusive proporcionando-lhes linha de crédito especial e assistência tecnológica.

No que pertine aos objetivos pretendidos com a implantação do programa, pode-se dizer que o número de adesões ficou dentro da expectativa pretendida, eis que do total de servidores "elegíveis", aproximadamente 289.492 (duzentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e noventa e dois), cerca de 12.538 (doze mil, quinhentos e trinta e oito), ou seja, 4,33% (quatro vírgula trinta e três por cento) aderiram ao P.D.V.

2.3. Em decorrência do aumento de competitividade ocasionado por fatores de natureza a um só tempo política e econômica, as empresas estatais, necessitando igualmente adequar-se às exigências do mercado, ocuparam-se de desenvolver novos parâmetros para suas estruturas organizacionais, de acordo com a visão privatística que privilegia o nível técnico em detrimento do nível quantitativo de empregados, aliado ao enxugamento de custos e ao incremento no ganho de produtividade a fim de se tornarem competitivas e adaptarem-se aos recentes paradigmas que norteiam o novo conceito de custo de produção.

Em meio a esse cenário, a Companhia de Eletricidade do Estado de São Paulo S.A. - Eletropaulo, implantou, no mês de maio de 1995, seu plano de demissão voluntária.

Assim, tendo o propósito de atingir as metas acima expostas, a empresa em questão, após realizados os estudos acerca de seu quadro funcional, direcionou seu plano apenas aos empregados admitidos anteriormente a 31 de dezembro de 1989.

No tocante à modalidade de rescisão contratual, o programa foi estruturado de molde que o desligamento se desse por meio de despedida sem justa causa; circunstância essa que possibilitou ao trabalhador o levantamento do fundo de garantia por tempo de seviço. Tal fator constituiu-se em substancial incentivo à adesão, e não é encontrado nos programas precedentes.

Item de relevante importância, uma vez que almeja minimizar as consequências sociais da retração de postos de trabalho gerada pelo P.D.V., e inexistente no programa implantado pela Estatal Paulista, é aquele que proporciona ao empregado auxílio visando requalificá-lo para a busca de novo emprego ou abertura de empreendimento particular.

No que respeita às finalidades colimadas, quais sejam, a redução de pessoal e a diminuição das despesas com a folha de pagamentos, o projeto em análise apresentou índices que revelam que tais planos, uma vez elaborados e estruturados de acordo com a realidade própria de cada Entidade, podem alcançar considerável probabilidade de êxito; tudo a depender, naturalmente, das expectativas que neles sejam depositadas. Tenhamos presente que, de um universo de aproximadamente 20.000 (vinte mil) empregados, a que o programa foi destinado, o número de adesões alcançadas foi de cerca de 1.000 (mil), ou seja, 5% (cinco por cento), estando tal resultado dentro das expectativas vislumbradas pela empresa.

2.4. Por último, cabe uma descrição sintética do programa de desligamento voluntário cuja implantação está em debate no âmbito do Legislativo Paulistano, levando em conta suas peculiaridades e necessidades; programa esse consubstanciado no Projeto de Resolução nº03-0032/97.

Nesse passo, tendo como premissas a redução das despesas com seus servidores, assim como a intenção de se estabelecer, futuramente, um regime único de pessoal, o programa em consideração foi direcionado unicamente aos servidores vinculados à Administração sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho, estáveis e não estáveis.

Descendo às especificidades do Plano, observamos que a Administração, com o escopo de concretizar tais finalidades, considerado para tanto o impacto global na folha de pagamento, fixou como incentivo financeiro o valor de 100% (cem por cento) da retribuição do servidor por ano de serviço prestado à Câmara Municipal de São Paulo, até o limite de 15 (quinze) anos.

No atinente ao apoio à reintrodução do servidor no mercado de trabalho, o Projeto de Resolução em análise nada inseriu entre suas disposições. Contudo, consta do relatório final elaborado pelo Grupo de Estudos incumbido de analisar a viabilidade de implantação dessa modalidade de desligamento, sugestão no sentido de que se promovam esforços visando à requalificação dos servidores desligados.

Mas o mais interessante, e que é onde reside o novo, é a forma definida para a rescisão contratual dos servidores estáveis, qual seja, a dispensa sem justa causa.

A despeito de tais servidores serem amparados pela estabilidade pervista no art. 19 do ADCT da Constituição Federal, seu desligamento pôde efetuar-se na modalidade acima referida, uma vez que foi prevista, em seus dispositivos, a possibilidade de prévia transação do direito à estabilidade.

Quadro Comparativo dos Programas de Desligamento Voluntário Propostos no âmbito do Setor Público

Programas

Público alvo

Incentivos propostos

Modalidade de desligamento

Resultados obtidos

Executivo Federal

servidores efetivos e celetistas não estáveis

uma remuneração por ano de efetivo exercício, até o 14º ano; 3/2 remuneração a partir do 15º ao 24ºano; uma remuneração somada a 80% de seu valor, a partir

do 25º ano

pedido de demissão

de um total de 327.834 servidores aptos, aderiram 10.865 (10%)

Executivo Estadual

efetivos, servidores admitidos nos termos da Lei 500/74, extranumerários e celetistas

100% da retribuição global mensal, até o limite de 12 anos e 400% para os servidores com menos de 4 anos de serviço público estadual

pedido de demissão

de um total de 289.492 servidores aptos, aderiram 12.538 (4,33%)

Eletropaulo S/A

empregados contratados anteriormente a 31.12.1989

¾ do salário por ano, até o limite de 10 salários

dispensa sem justa-causa

de um total de aprox. 20.000 áptos, 1.010 (5%)

Projeto de Resolução

do Legislativo Municipal

de São Paulo

servidores celetistas, estáveis e não-estáveis

100% da remuneração global mensal, até o limite

de 15 anos

dispensa sem justa-causa

(em fase de tramitação legislativa)

4.Ante a simples observância das peculiaridades de cada programa desenvolvido no setor público fica patente, antes de mais nada, que inexiste "um" modelo básico de Programa de Desligamento Vonluntário aplicável na esfera do setor público.

Bem ao contrário, trata-se de constatar que, sob a rubrica de PDV agregam-se programas de conteúdo, destinação, área de incidência e finalidades distintos, quando não entre si contraditórios.

Isso parece decorrer, por um lado, das diferentes apropriações efetuadas, no setor público, sobre a idéia de PDV que, como já tivemos ocasião de ressaltar, originou-se na iniciativa privada como estratégia para fazer frente ao déficit de legitimidade e a seus efeitos potencialmente conflitivos, de políticas de corte coletivo no número empregados as quais seriam, de um modo ou de outro, invariavelmente praticadas por imperativos de ajuste a peculiaridades do mercado.

Por outro lado, entretanto, é possível afirmar que a variedade dos conceitos de PDV, praticados ou desenhados com vistas ao setor público, explica-se também pela ausência de parâmetros gerenciais, revestidos de um mínimo de racionalidade administrativa que os habilite a adquirir a grandeza de verdadeira estratégia de gestão dos recursos humanos. Bem ao contrário, a extensão e a natureza da diversidade permite constatar que se trata de um nome genérico sob cujo manto estão recobertas perspectivas e objetivos dos mais variados; sem que entre os mesmos se possa identificar um liame com modelos nem sequer com projetos administrativos relativamente afins.

Assim como do ponto de vista administrativo, sob o ângulo jurídico a matéria necessita vir a ser percebida cum grano salis. Com efeito, por mais não fosse, a diversidade dos mecanismos e das figuras jurídicas empregados impõem que cada juízo analítico acerca da legalidade ou da constitucionalidade dos programas de desligamento voluntário demande uma reflexão particular. Basta ter presente, v.gr., que se a maioria deles se serve do veículo da demissão (rescisão unilateral por iniciativa do servidor celetista), há casos em que a figura jurídica preconizada exibe o sentido inverso, qual seja o da dispensa (rescisão unilateral por iniciativa do empregador ou da Administração, conforme o caso).

De qualquer modo, essa enorme diversidade, quer sob o prisma jurídico quer sob o administrativo, parecem indiciários do profundo vazio programático e da absoluta falta de políticas públicas racionalmente sustentadas, destinadas à gestão de recursos humanos no âmbito do setor público. Por sinal, resta sempre a sensação de que, em realidade, ditos Programas de Desligamento Voluntário obedecem mais ao propósito casuístico de singela redução do número de empregados; sem que dita redução seja justificada por políticas de médio e longo prazo concertadas em função de projetos relativamente acabados e racionalmente articulados de gestão de recursos humanos.

Que fique claro que essa deficiência necessita vir examinada de um ponto de vista mais amplo, em que seja levada em conta a grande incerteza quanto ao que fazer com o Estado numa atmosfera de crise dos já conhecidos paradigmas de welfare state e de minimal state, os quais, como se sabe, povoaram o cenário do debate administrativo ao longo, pelo menos, dos últimos quarenta anos.