Do Crime de Prevaricação e seu Cometimento por Funcionário Público

 

Emerson O. Sandim

Procurador do INSS/MT

Especialista em Direito Processual Civil e Conferencista

 

1 - Da Situação Fática:

É comum ver magistrados, frente a demandas previdenciárias, ordenando que seja tomada uma providência qualquer no prazo exíguo de vinte e quatro horas, registrando no mandado, por exemplo, que se "efetue o pagamento do valor correto devido ao autor, (omissis), sob pena de incidir seu representante legal em crime de desobediência e sem prejuízo da adoção de outras de sanções processuais, objetivando dar efetividade à decisão judicial ...".

Em tais casos, é bom que se diga, que quem, na ótica de tais julgadores, deverão ser incursos na tipificação do delito supradito são os Procuradores Estaduais do INSS, já que eles são os titulares dos poderes de receber citação em feitos judiciais.

2 - Da Impossibilidade de Prática de Crime de Desobediência por Funcionário Público:

O funcionário público não pode praticar crime de desobediência pelo simples fato de que tal prática criminosa tem o particular como seu sujeito ativo. De efeito, o agente público somente poderá perpetrá-lo na hipótese de ordem que não se refira ao exercício de suas funções, ou seja, quando ele estiver equiparado a um cidadão comum.

Merece ser escandido que, pela própria topologia do crime de desobediência, em nosso Código Penal, chega-se ao acerto do gizado no item anterior, visto que o mesmo encontra-se epigrafado no artigo 330, que por sua vez é ínsito no Título IX, Capítulo II, onde está inserto: `Dos Crimes Praticados por Particular contra a Administração em Geral’.

A relevância da observação merece nota, pois definido está o sujeito ativo da infração. Tanto assim é que a doutrina e a jurisprudência registram a seguinte distinção - repita-se: o funcionário público somente pratica o delito, caso a ordem desrespeitada não seja atrelada às suas funções.

Por isso mesmo, com a maestria que lhe é peculiar, afirma DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS que o crime de desobediência é: "Crime comum, pode ser executado por qualquer pessoa, inclusive por funcionário público, desde que o objeto da ordem não se relacione com as suas funções. Se diz respeito às suas funções , pode haver prevaricação"(2).

3 - Do Posicionamento Jurisprudencial sobre o tema:

Inicia-se pelo Superior Tribunal de Justiça, onde assenta que: EMENTA: HC — Penal — Funcionário público — Ato de ofício — Desobediência — Prevaricação — O Código Penal distingue (título XI) crimes funcionais e crimes comuns. Evidente, quando o funcionário público (CP, art. 327) pratica ato de ofício, não comete delito próprio de particular. Assim, inviável a infração penal — desobediência (CP, art. 330 — Crime Praticado por Particular contra a Administração Pública, Título XI, cap. II). Em tese, admitir-se-á — prevaricação (CP, art. 309). Urge, no entanto, a denúncia descrever elementos constitutivos dessa infração penal. (RSTJ, 63/70).

Esta orientação pretoriana, como se pode visualizar do que fora coligido pelo saudoso CELSO DELMANTO (3), não é nova, já que agasalhada nos julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo e nos anais do próprio Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, ao qual, inclusive, está jungido o magistrado coator, que deu azo à impetração do ‘habeas corpus’, cujo teor desenvolvemos neste livro.

4 - Da Competência para cumprir Ordem Judicial no átrio do INSS:

A primeira ressalva que se deve proceder é a de que a omissão não se confunde mais com a ação não cumprida e nem, tampouco, com o simples deixar de fazer. Enfim, configura-se a conduta omissiva com o olvido de obrigação juridicamente imposta.

Bem por isso, faz-se necessário indagar: o Procurador Estadual tem a obrigação jurídica de cumprir a ordem legal? Deve ser lembrado, todavia, que suas atribuições são impostas por lei e regulamentadas por atos interna corporis. Logo, a resposta ao questionado supra, por óbvio, é negativa, podendo ser aduzido, ainda, que os ditos Procuradores Estaduais não podem ser compelidos a honrar os ônus da autarquia.

Não dissentem deste posicionamento os pretórios pátrios que, em regra, assim posicionam: "Processo Penal. "Habeas Corpus". Ordem de liberação de importância dirigida a pessoa incompetente para cumprir a determinação judicial. 1. A representação administrativa do INSS, em cidades do interior, é feita pelo agente do posto, ou servidor de cargo análogo, e não pelo procurador autárquico, o qual não possui competência para determinar que se faça liberação de importância, a título de pagamento de beneficio previdenciário. 2. Mal endereçada, a ordem judicial não é suscetível de gerar obrigação de pagar ou de caracterizar o delito de desobediência. 3. Em tal caso, a ameaça de prisão configura violação ao 'jus libertatis' do paciente. 4. Ordem de 'habeas corpus' a que se concede."(4): "Habeas Corpus. Procurador Autárquico. Competência. Descumprimento de ordem judicial. Trancamento de inquérito policial. I - Compete ao Tribunal Regional Federal, conhecer e decidir Habeas Corpus, quando a autoridade coatora estiver investida na função jurisdicional constitucionalmente Delegada. II - O descumprimento de ordem judicial constitui, em tese, ilícito penal. Se praticado por particular o crime é de desobediência, previsto no artigo 330 do Código Penal. Se praticado por funcionário publico, o crime é de prevaricação, previsto no artigo 319 do mesmo "Codex". III - O Procurador Autárquico tem apenas a representação judicial da autarquia, não lhe cabendo a execução da ordem judicial que lhe foi encaminhada, cuja atribuição é dos agentes administrativos do órgão representado. IV - Ordem concedida para trancamento do inquérito policial"(5); Processo Penal. "Habeas Corpus". Desobediência a Ordem Judicial. Inquérito Policial. Ausência de Justa Causa. Trancamento. Ordem Concedida. I. Não compete ao paciente, Procurador Autárquico do Instituto Nacional do Seguro Social, INSS, determinar pagamentos judiciais, eis que sua competência funcional limita-se apenas à representação processual da autarquia. II. Ordem judicial só poderia ser cumprida pelo Superintendente do instituto ou em virtude de sua determinação. III. Ordem concedida para fim de trancar o inquérito policial instaurado contra o paciente face a manifesta ausência de justa causa"(6).

Disto resulta claro que, a nível estadual, a competência para cumprir ordens judiciais é do Superintendente da autarquia, claramente delegável para os chefes de Posto, aqui incluídas as áreas de Benefício e Arrecadação, porém, jamais a Procuradores, visto que, estes últimos, têm o mister funcional de defender o órgão em juízo, dado serem advogados, e, com isso, não estão jungidos às questões administrativas.

5 - Do Cometimento do Crime de Prevaricação:

Segundo a boa doutrina criminal, no que é seguida pela jurisprudência, o tipo subjetivo da prevaricação, que é capitulada no art. 319 do Código Penal, exige o ‘dolo específico’, sendo necessário, pois, que a prova revele que a omissão decorreu de afeição, ódio, contemplação, ou para satisfazer interesse (Tribunal Federal de Recursos, RC 895, DJU 14.10.82, p. 10363), como bem trazido à lume por CELSO DELMANTO(7).

De outra parte, não se há falar em prevaricação se todos os atos que deviam ter sido praticados no âmbito da Procuradoria já foram levados a cabo, isto, por si mesmo, elide qualquer alegação de omissão reveladora de sentimento pessoal, tais como: ódio, afeição ou satisfação de interesse de idêntica natureza.

Aliás, bem fixou o Tribunal Regional Federal da 3ª Região que: "Habeas Corpus - Trancamento de Inquérito Policial - Delegado - Crime de Desobediência - Prevaricação - Inexistência dos Elementos Essenciais para Tipificação. - O crime de desobediência que exige dolo só pode ser praticado por funcionário público se este age como particular, pois, se atua na condição de funcionário, o delito será outro (Precedentes do Supremo Tribunal Federal). - Não demonstrados o interesse ou o sentimento pessoal, inocorre crime de prevaricação, visto que para sua configuração é necessário que a prova revele que a omissão decorreu de afeição, ódio, contemplação ou para satisfazer interesse, e não por erro ou dúvida de interpretação do agente. Ordem Concedida"(8).

Com efeito, três são as modalidades descritas na tipificação do crime de prevaricação, quais sejam: a) retardar indevidamente ato de ofício; b) deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício e, por fim; c) praticá-lo contra disposição expressa de lei.

Já fora dito que se, dentro das atribuições da Procuradoria Estadual do INSS, todas as providências forem tomadas (ou seja, os atos de ofício, compreendidos estes dentre aqueles que são de competência do setor - e que não se inclui o dever de solver débito da autarquia), defluída resta a elisão de qualquer possibilidade da ocorrência de dolo. Noutros termos, não se pode imputar ao agente a vontade livre e consciente de praticar as ações ou omissões descritas no tipo penal, já que o seu agir fora dentro dos parâmetros da estrita legalidade.

Ora, por todas as razões já expostas, insta concluir-se pela ilegalidade da ameaça contida em ofício judicial, ordenando-se que o Procurador da Autarquia, ou o próprio Procurador Estadual do INSS, solvam benefícios, paguem quantias devidas a segurados, sob pena de desobediência ou mesmo de prevaricação, pois não pode o Procurador Estadual ficar a esta sujeito, com as conseqüências dela advindas, na hipótese de não se implementar a ordem do juízo, visto que a eles não estão acometidas as funções administrativas do órgão previdenciário.

6 - Da Impetração de ‘Habeas Corpus’ frente às Decisões Judiciais sem Justa Causa - Viabilidade de Atendimento Liminar da Ordem:

Ordens judiciais de tal jaez, então, imbricam, na inexorável falta de justa causa para a ameaça ou lesão ao direito de locomoção do paciente (Procurador). De outra forma pode-se assentar que falta fumus boni iuris para prisão, inquérito, ação penal ou qualquer outro constrangimento ilegal à liberdade de ir, vir e permanecer, ensejando, assim, a impetração de ‘habeas corpus’.

Evidenciada a atipicidade de qualquer conduta perpetrada pelo paciente (aqui incluídos os Procuradores do INSS), assim como a impossibilidade dos mesmos serem autores de crime de desobediência, impõe-se a admissibilidade e o cabimento da ordem ora impetrada.

Não é à toa, portanto, que o Supremo Tribunal Federal anotou, em lição que, mutatis mutandis, aplica-se à espécie, que: "Constitui constrangimento ilegal a instauração de inquérito para apuração de fatos que desde logo evidenciem-se inexistentes ou não configurantes, em tese, de infração penal"(9).

Estão presentes e configurados os requisitos para a concessão de liminar em ‘habeas corpus’ impetrados em tais casos, isto porque das argumentações suso mencionadas, haure-se direito inequívoco a socorrer tais pacientes, desbordando, inclusive, os limites da fumaça do bom direito para, em realidade, albergar-se no pálio das questões alcançadas pela certeza.

E, por outro lado, quanto ao periculum in mora, pode ser dessumido da iminência de ofensa ao direito de locomoção manifestada pelo intuito, ameaçador, de imputar ao paciente a prática de crime, nos termos da ordem acoimada de ilegalidade (decisões que ordenam solvimento de quantias, etc, assacando a pena do delito de desobediência, caso elas não sejam cumpridas pelo Procurador da Previdência Social).

Existem julgados, quanto à concessão in limine do ‘habeas corpus’, assim vazados; "Em matéria penal não existe a concessão liminar da ordem de ‘habeas corpus’ impetrada, como se vem, com freqüência, pleiteando com base em desautorizado símile do mandado de segurança" (RT 597/303 - TJSP); "Liminar em ‘habeas corpus’. Não-conhecimento por incabível. Regramento não previsto no art. 557 do CPP" (RJTJERGS 152/90 - TJRS) (10).

Os Regimentos Internos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, aduzem que: Art. 191- O Relator requisitará informações do apontado coator e, sem prejuízo do disposto no ART.21, IV e V, poderá: (...) IV - no habeas corpus preventivo, expedir salvo-conduto em favor do paciente, até decisão do feito, se houver grave risco de consumar-se a violência" e "Art. ; "Art. 201. O relator requisitará informações do apontado coator, no prazo que fixar, podendo, ainda: (...) IV - no ‘habeas corpus’ preventivo, expedir salvo-conduto em favor do paciente, até decisão do feito, se houver grave risco de consumar-se a violência" (sem reticências e parêntesis no original).

Ora, é decorrência do simples princípio da razoabilidade a viabilidade de concessão liminar de ‘habeas corpus’ preventivo, porque, em mandado de segurança, onde se tutelam valores alheios à questão da liberdade, tal agir é permitido. Logo, não seria crível que o bem jurídico liberdade pudesse, em termos de remédio constitucional, restar inferiorizado a outros de caráter muito mais patrimonialista.

Diante do exposto, e voltando-se à hipótese em tela, não havendo justa causa para que ao paciente seja imputada a prática de crime, ficando à mercê da instauração de inquérito ou ação penal, pode o impetrante solicitar seja concedida liminarmente a ordem de habeas corpus, garantindo-lhe o salvo-conduto.

NOTAS

Este tópico nasceu de um ‘Habeas Corpus’ impetrado pelo insigne Procurador, Dr. Fábio Possik Salamene. Nós, neste artigo, apenas desenvolvemos um pouco mais o tema;

(2) Direito Penal, v. 4, Ed. Saraiva, 1988, p. 185;

(3) Código Penal Comentado, 3ª ed., Ed. Renovar, p. 500;

(4)Tribunal Regional Federal da 3ª Região, j. 10.03.1992, HC nº 03002123, ANO:92-SP, 2ª Turma, Rel. Juiz SOUZA PIRES - Publicação: DOE de 13-04-92, p. 117;

(5) Tribunal Regional Federal da 3ª Região, j. 08.08.1995, HC nº 03044059/95-SP, 2ª Turma., Rel. Juiz CELIO BENEVIDES, DJ de 30.08.95, p. 55662;

(6) Tribunal Regional Federal da 3ª Região, j. 22.08.1995, HC nº 03044067, ANO: 95-SP, 1ª Turma, Rel. JUIZ SINVAL ANTUNES, DJ 19-09-95, p. 62571;

(7)Ob. Cit., p. 484;

(8) j. 26-05-1992, HC nº 03021046, Ano:91-Sp, 1ª Turma, Rel. Juiz Jorge Scartezzini, DOE de 22.06.92, P. 135;

(9) RT 620/368 e no mesmo sentido o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul na RT 619/351;

(10) Os julgados foram coligidos da obra Código de Processo Penal Interpretado, de lavra de Júlio Fabbrini Mirabete, 2ª ed., Ed. Atlas, p. 764.