DUPLO GRAU OBRIGATÓRIO VS. EXECUÇÃO PROVISÓRIA: Princípio vs. regra.

 

Mauro A. G. Bueno da Silva

Procurador Autárquico Federal

INSS - Jaú-SP

Com o advento da Medida Provisória nº 1.561, com seu art.9º, convertida em a Lei 9.469/97, art. 10, estendendo às Autarquias o duplo grau obrigatório, previsto no art.475 do CPC, emergiu, nas ações previdenciárias, a tese de que a inovação trazida pelo referido art.9º da Medida Provisória não seria aplicável em se tratando de sentença que rejeite liminarmente os embargos à execução ou os julgue improcedentes.

Francamente, só a parcialidade dos defensores de tal tese pode justificar sua coragem de suscitá-la.

Em linguagem proverbial, tal tese consiste em "confundir alhos com bugalhos".

Com efeito, em nosso "Direito Processual Civil à Luz dos Princípios Jurídicos", assim nos expressamos:

"Uma coisa é efeito do recebimento de recurso (art.520 do CPC); outra, muito diferente, é efeito da sentença (art.475, do CPC).

Os efeitos do recebimento do recurso são a conseqüência jurídica do ato recursal sobre o ato processual do juiz contra o qual ele se volta. Ato esse do juiz que, em não sendo atacado por meio de recurso, consolida-se pela preclusão, tornando-se definito. Em se tratando de sentença, a preclusão do ônus recursal, confere ao ato judicial o status de "coisa julgada", passando ele a valer como provimento jurisdicional definitivo e imutável, salvo a excepcionalíssima via da ação rescisória.

(...)

Particularizemos o raciocíonio apenas para o caso dos recursos interpostos contra sentença, ou seja, apelação.

Quando o recurso é recebido com efeito devolutivo e, também, suspensivo, significa que o recurso, a par de devolver ao Tribunal a apreciação da causa e suas questões, operou sobre o ato judicial obstrução da eficácia, retirando-lhe a exeqüibilidade.

Ou seja, há um provimento definitivo, pronto a operar efeitos mas, em razão de recurso recebido com efeito suspensivo, não poderá ser executado (cumprido coercitivamente), devendo aguardar o desfecho da apreciação do recurso que o atacou com pretensão de vê-lo substituído (reformado).

Entretanto, se a parte sucumbente não formular recurso, o ato judicial, pronto e acabado que está, restará hábil a produzir seus naturais efeitos, inclusive da executividade coecitiva.

Tudo isso, em regra, pois há os casos em que a sentença, mesmo quando não atacada por recurso, não será eficaz senão depois de confirmada em Segundo Grau de Jurisdição. São os casos sujeitos ao duplo grau obrigatório, em que o provimento jurisdicional é formado de ato judicial composto, que só se completa pela intervenção de dois órgãos (o Juízo do Primeiro Garu e o Juízo do Segundo Grau de Jurisdição).

Art. 475 - Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:

I - que anular o casamento;

II - proferida contra a União, o Estado e o Município;

III - que julgar improcedente a execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, Vl).

Parágrafo único - Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação voluntária da parte vencida; não o fazendo, poderá o presidente do tribunal avocá-los.

Em casos tais, antes da confirmação pelo Tribunal a sentença não é um ato jurisdicional pronto e acabado, como normamente seria. Ela é apenas uma parte do provimento jurisdicional que só se completará quando ultimada sua outra parte que é a confirmação pelo Tribunal.

Assim, com rigor, antes dessa confirmação pelo Tribunal, nos casos sujeitos ao duplo grau obrigatório, não se tem provimento jurisdiconal. Daí o porque de não se poder pensar em execução provisória, que pressupõe um título judicial completo, ainda que sujeito a ser desconstituído pelo provimento substitutivo alcançado por meio de recurso. Nos casos sujeitos ao duplo grau obrigatório, então, pela inexistência de título judicial eficaz, é inadmissível a execução provisória".

Na esteira desse entendimento, nos casos arrolados no art.475 (CPC), agora neles inclusas as sentenças proferidas contra Autarquias, o provimento jurisdicional é ato jurisdicional composto (sentença + acórdão) que depende, para sua eficácia, da intervenção de dois órgãos distintos, o Juízo de Primeiro Grau e o Juízo de Segundo Grau.

Portanto, enquanto não confirmada pelo tribunal, a sentença de primeiro grau, é ineficaz e, conseqüentemente, inexeqüível. Em verdade, não há título. Este está ainda em formação; apenas metade dele está aperfeiçoada, estando a outra metade pendente de efetivação, sendo mesmo falível, já que o Tribunal, simplesmente, pode não confirmar a sentença, caso em que o título não se completará.

Assim, é evidente que o disposto no art.520, V, do CPC, é preceito aplicável somente quando não se trate de nenhuma das hipóteses de duplo grau obrigatório; ou seja, quando a sentença, de per si contenha provimento jurisdicional inteiro e acabado, ainda que susceptível de substituição (reforma) em Segundo Grau.

Afinal, como é que se poderia conceber a execução provisória de uma sentença a que a Lei expressamente nega efeito antes de confirmada pelo Tribunal ?

Tal sentença é ineficaz e, portanto, inexeqüível, enquanto não for confirmada pelo Tribunal.

É de se ver que o art.520, do CPC, trata dos efeitos da apelação e a esta pertine, nada dizendo com os casos de duplo grau obrigatório.

Art. 520 - A apelação será recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo. Será, no entanto, recebida só no efeito devolutivo, quando interposta de sentença que:

I - homologar a divisão ou a demarcação;

II - condenar à prestação de alimentos;

III - julgar a liquidação de sentença;

IV - decidir o processo cautelar;

V - rejeitar liminarmente embargos à execução ou julgá-los improcedentes.

Outrossim, o efeito meramente devolutivo da apelação contra sentença que rejeita liminarmente embargos à execução ou os julga improcedentes é mera regra, enquanto o duplo grau obrigatório é um princípio de direito processual, decorrente da necessidade de ser resguardado o bem público que é indisponível, de modo que recorrendo ou não o Procurador Público, o Tribunal há que examinar a sentença para verificar-lhe a correção.

E, como bem se sabe, nos estágios hodiernos da evolução jurídica, a hermenêutica dominante é de que a regra não vale contra o princípio.

O consagrado constitucionalista Paulo Bonavides, em seu magnífico Curso de Direito Constitucional, é lapidar ao discorrer sobre a prevalência do princípio sobre a regra.

No conflito de regras a interpretação o eliminará de modo que a regra prevalente exclui do mundo jurídico a preterida; no conflito de princípios o valor informa o princípio prevalente, afastando a incidência do princípio preterido sem exclui-lo do mundo jurídico de modo que poderá vir a ser aplicado em outra oportunidade; e, no conflito entre o princípio e a regra, está não prevalece nunca porque regra só vale se conforme com os princípios.

Não há mesmo, em boa e isenta doutrina, quem divirja do entendimento de que a regra só vale se consentânea com os princípios.

Portanto, se já não bastasse a obviedade decorrente da interpretação das regras expressas do CPC, também pela hermenêutica jurídica mais atualizada, impõe-se o duplo grau obrigatório (princípio jurídico) como afastador da execução provisória (regra) nos casos arrolados no art.475 do CPC, entre os quais agora se tem também as sentenças proferidas contra as Autarquias.

Com efeito, veio a bom tempo essa Medida Provisória nº, visto que os nossos jurista, aferrados aos textos das Lei e divorciados do gênio criativo do romano de olhar os fatos e extrair o direito, olvidavam-se da ratio essendi da sujeição ao duplo grau obrigatório das decisões proferidas contra a União, os Estados e Municípios, previsto na infeliz redação do art.475,III que deveria, simplesmente dizer "Fazenda Pública".

Afinal, a razão do duplo grau obrigatório nas causas em que sejam parte a União os Estados e os Municípios é, como já dissemos, a indisponibilidade da coisa pública, pelo que ao Procurador Público não é dado dispor do direito recursal, de sorte que ele interpondo, ou não, o recurso, a causa há que ser apreciada pelo Tribunal.

Com efeito, desde a edição da Lei 8.620/93 que, em seu art.8º equiparou o INSS à Fazenda Pública, esta Autarquia já era beneficiária do duplo grau obrigatório, servindo a Medida Provisória, superveniente Lei, apenas para atender às demais autarquias, a par de registrar o óbvio para o Jurista e atender aos reclamos do que só reconhecem o direito expressamente estampado em textos positivados.