MORALIDADE ADMINISTRATIVA

SIVAM - O ZAIRE É AQUI

Duciran Van Marsen Farena
Procurador da União em São Paulo

Está aberta a temporada de caça. A população brasileira bem informada sabe muito bem, pelos estrondos, explosões, ruídos, escutas telefônicas, conflitos diplomáticos, etc. O alvo é um animal, nem sempre tão arisco, às vezes completamente indefeso, mas sem dúvida nenhuma em vias de extinção (na África e na América Latina): os recursos públicos para investimento em infraestrutura. E a arma dessa caçada denomina-se SIVAM.

De fato, os recursos para investimento no terceiro mundo - ao qual o Brasil, até por força de "caçadas" como essa, inelutavelmente pertence - estão escasseando. Esgotaram-se na Nigéria, esgotaram-se no Zaire, esgotaram-se no México, na Argentina. Afora os "tigres asiáticos", que nem bem podem ser considerados "terceiro mundo", resta o Brasil.

O Brasil, "le pays de la démesure", na expressão de RICHARD BERGERON 1, parece ainda ter recursos de sobra para investir em projetos grandiosos, embora para o propalado "Comunidade Solidária", espelho da preocupação neo-social do Governo, sobrem apenas mirrados 50 milhões de reais. 2

Assim é que um obra de inicialmente 300 milhões de reais foi desfigurada para transformar-se no terceiro maior contrato do mundo (1,4 bilhões de dólares), podendo mesmo se tornar o primeiro, um exemplo de vitória da "nova diplomacia comercial agressiva americana". 3

RICHARD BERGERON, Professor da Universidade de Montreal, nos ilumina o processo pelo qual uma fábrica ou usina é vendida ao terceiro mundo no que considera "um jogo de cinco atores": o primeiro ator é o fabricante, que tem o interesse de vender seu produto do jeito que ele é, pelo preço mais alto possível. O segundo ator é o comprador, membro da elite dirigente do seu país, que, geralmente sem conhecer nada do assunto, obstina-se em ver o país dotado da mais bela fábrica ou do mais belo tanque, sem consideração de preço, e que exigirá - o que é quase a regra - para que a transação seja completada, um depósito em sua conta numerada na Suíca ou em outra parte. O terceiro ator é o "expert", que encontrará argumentos para dar uma cobertura de cientificidade à misitificação grosseira que representa a aquisição dessa fábrica ou tanque. O quarto ator é o banqueiro, geralmente do mesmo país industrial vendedor, pronto a financiar a aquisição, mesmo sem adotar as cautelas próprias de sua profissão, no tocante à viabilidade do projeto. O último ator é o Estado do vendedor, que não recusará as garantias reivindicadas pelo banqueiro ao organismo público de seguros (tipo o Eximbank nos Estados Unidos). 4

As últimas coisas que contam, nesse processo de cinco atores, são o interesse da nação ou a soberania nacional.

Interesse nacional, desprezado no projeto SIVAM, porque o desenvolvimento científico nacional é marginalizado com o SIVAM, consoante afirmam os "experts" realmente descompromissados, como o Presidente da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC), Sérgio Ferreira 5.

Interesse nacional, vilipendiado, porque as verdadeiras prioridades do país são atropeladas por uma despesa nitidamente excessiva "...quando poderíamos ter um sistema equivalente com muito menores dispêndios. A opção pela implantação de um sistema equivalente importando apenas os equipamentos necessários e utilizando os técnicos e o gerenciamento nacional, além da economia decorrente geraria empregos e nos daria o real controle de sua configuração e, por via de consequência, a capacidade de atualizá-lo tecnologicamente sempre que for considerado conveniente".6

Soberania nacional, esmagada, porque o SIVAM, como visto, na verdade é uma "caixa preta", à qual, segundo especialistas da SBPC, a CIA teria acesso, dadas as ligações entre a Raytheon e esse órgão 7; ademais, conforme muito bem afirma Othon Luiz Pinheiro da Silva, é paradoxal que o Estado que, por meio de suas atividades e institutos de pesquisa forma uma plêiade de técnicos, publicamente (e sem licitação) declará-los incompetentes e apelar ao grande "buwana" - aliás, a expressão é oportuníssima, na nossa linha de considerações. 8

Enfim, o SIVAM, da forma como concebido, interessa apenas aos seus "atores", cujas manobras sórdidas vieram à luz recentemente, através de "escutas telefônicas" e notícias divulgadas pela imprensa.

Até a título de exemplo, vejamos, ainda na exposição de RICHARD BERGERON, o que ocorreu com o Zaire, nação "emergente", nas décadas de 60 e 70, dotada de inúmeras riquezas naturais, mas que submergiu, arruinada por excesso de "contratos tecnológicos" superdimensionados e sem nenhuma ligação com a realidade do país, potencializados por uma ditadura corrupta.

Tanto é assim que BENOIT VERHAEGEN intitula seu artigo, do qual foram extraídos por RICHARD BERGERON os exemplos de desperdícios promovidos pelo governo do Zaire, que mencionaremos, de "Os Safaris Tecnológicos do Zaire".

Senão, vejamos: 30 fábricas de engrenagem de algodão, compradas por 7,7 milhões de dólares a uma firma americana, a qual faliu logo após esta venda, jamais saíram de suas caixas; a Thompson - CSF (casualmente, a concorrente da Raytheon no SIVAM...) implantou através do país uma rede de comunicações da qual a maior parte das unidades deixam rapidamente de funcionar, rede essa que foi reforçada por um sistema de comunicações por satélite suportada por 13 estações terrestres de captação, que rapidamente também enguiçaram; um complexo de empresas francesas implantou, a um custo de 600 milhões de francos, a Cidade da Voz do Zaire, que só é utilizada em 20% de sua capacidade; barragens foram construídas por firmas italianas por 800 milhões de dólares para fornecer 1.500 megawatts, quando o consumo do país é de 150 megawatts; para utilizar a energia excedente, constrói-se uma linha de alta tensão (cujo custo passa de iniciais 250 milhões e 1 bilhão de dólares) em direção a um complexo minerador projetado que custou 200 milhões de dólares, e que também malogrou, o que significa que a linha não serve mais de nada... 9

No entanto, o governo não admite que possa ser posta em dúvida a competência técnica da Raytheon, a excelência e adequação do projeto à realidade nacional, a justiça do preço a ser pago, a lisura do procedimento de seleção...como certamente não pensavam de outro modo as autoridades do Zaire, com relação às maravilhas tecnológicas citadas...

Ai de quem ousar fazê-lo! Até o Plano Real correria o risco de periclitar!

Da mesma forma, não pode ser posto em dúvida o decreto terrível, irrevogável, lançado "inaudita altera parte", de incompetência e incapacidade da comunidade científica nacional (e, via de consequência, da incompetência do país) assim considerada porque o Governo declarou.

No entanto, à diferença do Zaire, o Brasil tem uma opinião pública capaz de despertar e impedir esse projeto lesivo à nação, já que o Governo parece por demais enredado (em que pesem as insistentes declarações em contrário) com o contrato já assinado para poder dele se desevencilhar.

Se essa opinião pública, vigilante, exercer suas prerrogativas, o Governo, submetido ao fogo da reação pública, e à censura das instituições, será obrigado a transigir, se não em razão dos interesses maiores da soberania e independência tecnológica nacional, pelo menos diante das comprovadas irregularidades que cercam o projeto, demonstradas cabalmente em manifestação corajosa do TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO 10.

Contudo, é preciso lembrar que o mero cancelamento do contrato não resolve o problema. Apenas libera a presa (que já se supunha pronta para o abate) novamente para a caça, com todo o seu cortejo infame de propinas e corrupção.

Essa ignomínia pode ser evitada se todo o projeto for revisado, para incluir a participação obrigatória da tecnologia nacional e a consequente redução do apetite dos caçadores, em virtude do "emagrecimento"da presa.

É imperioso, pois, que o Governo tome consciência da responsabilidade que pesa sobre suas decisões, e antecipe-se aos fatos, para que não seja levado de roldão por eles. Urge que assuma o erro e a luta para rever todo o projeto, antes que seja muito tarde. Antes que nossos governantes, refinados e primeiromundistas, mirando o país, acabem reconhecendo nele não o "primeiro mundo" que sonhavam implantar, mas a miséria própria dos mais desfavorecidos rincões do terceiro mundo, e, por sua vez, sendo reconhecidos - como os porcos do romance Animal Farm, de George Orwell - com a face de Carlos Salinas de Gortari, ou, pior, de Mobotu Sese Suko - o ditador do Zaire.


NOTAS

(1) L'Anti-Developpement - Le Prix du Libéralisme, L'Harmattan, Paris, 1992, pág. 106. Recorde-se, ainda, o poema de Cassiano Ricardo - Iara, a Mulher Verde: "Neste país de coisas em excesso/o sol me agride, o azul passa da conta/No entanto, os poucos beijos que te peço/o teu amor futuro me desconta. ...No país do excessivo, és muito pouca". No país do excessivo (salvação de bancos, Raytheon) também são muito poucas as verbas sociais, como veremos. <RETORNA>

(2) Conforme artigo "A Dieta da Comunidade", assinado por Josias de Souza, publicado na FSP de 17/12/95. <RETORNA>

(3) Seria o terceiro maior contrato conseguido por uma empresa americana em 1994 - artigo How Washington Inc. Makes a Sale, NYT, 19/02/95. Os outros dois seriam a construção de uma usina elétrica na Indonésia e a Compra de 20 aviões de passageiros pela China. Há quem diga que o valor de 1,4 bilhões é irreal para o projeto, cujos custos poderiam alcançar 2,8 bilhões. <RETORNA>

(4) Conforme Richard Bergeron, op. cit., pág. 104. <RETORNA>

(5) Conforme FSP, 8/12/95, pág. 1-8. <RETORNA>

(6) Conforme artigo do Almirante da Reserva Othon Luiz Pinheiro da Silva, "Videogame, Sivambra e "buwana"Raytheon", publicado na seção "opinião" da FSP, 8/12/95. <RETORNA>

(7) Conforme Editorial da FSP, 16/12/95, pág. 1-2. <RETORNA>

(8) Extraído do artigo de Othon Luiz Pinheiro da Silva, já mencionado. <RETORNA>

(9) Cf. Richard Bergeron, op. cit., pág. 105. <RETORNA>

(10) A respeito, artigo "Dano ao Erário", Revista ISTO É, nº 1367 - 13/12/95 e artigos "TCU Quer Fazer Auditoria na Aeronáutica", FSP 8/12/95 e "Relatório do TCU complica SIVAM" - Jornal da Tarde, 20/12/95. <RETORNA>

("Advocacia Pública" - Boletim do Instituto Paulista de Advocacia Pública n.3 - Abril/Junho-1996 - Pp.8/9).


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