O RISO GREGORIANO


Desde o Descobrimento, o Brasil exercia grande fascínio no Velho Mundo, conquistador da nova terra se encantava com a alegria natural do selvagem, com as cores exuberantes da Natureza do Novo Mundo e sobretudo com a abundância de minérios preciosos, o mundo edênico era por fim encontrado. Paradoxalmente, morar na terra “fértil” era impossível, mas a atração pelo ouro sucumbia ao desejo de partir definitivamente, para poderem explorar ao máximo a nova terra, tal qual Robinson Crusoé, estes aventureiros resolvem então colonizar a nova terra, inserí-la nos seus padrões, impondo sua identidade, criando assim seu próprio mundo, negando e destruindo qualquer outra cultura.

No século XVII, a terra está totalmente explorada, altos impostos cobrados pelos fidalgos portuguêses, que anteriormente aqui tinham chegado como meros aventureiros. Neste contexto temos então o poeta baiano Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno, que através de sua poesia, nos alerta contra a figura destes representantes da coroa portuguesa.

Graças à fusão da sensibilidade pessoal com os pressupostos estéticos do Barroco, Gregório de Matos decompõe sua realidade e aponta-lhe as partes, ora aos pedaços, ora em contrastes. Em sua mão, o transformismo característico do Barroco, no qual embute a noção da mutabilidade constante e veloz, encontra campo fértil quando o poeta nos alerta para a ascensão social do colonizador, de artesão passa rápido à condição de fidalgo. (Antônio Dimas-"Gregório de MAtos Guerra ao Português"in: Os pobres na Literatura Brasileira-org. Roberto Schwarz,S.P.Brasiliense, 1983, pag.15)

Pelo viés da poesia satiríca e pela cultura popular, Gregório de Matos usa sua poesia para desmascarar os vícios e a miséria política em que sua província havia mergulhado. A linguagem satírica residente em suas poesias destrona as autoridades e carnavaliza a pobreza. Mergulhado no contexto cultural baiano que deita suas raízes num passado português-ibérico-europeu da tradição popular, Gregório busca um nova linguagem que o represente bem como um novo signo para expressar as formas de um mundo às avessas.

A satíra leva Gregório a quebrar o bloco imutável e normal da sociedade, a paródia e os rebaixamentos dizem verdades aos poderosos. O riso que sua obra provoca pela sensação carnavalesca do mundo, destrói o sério e as pretensões a uma significação superior e realiza o afrouxamento da consciência, da imaginação e do pensamento.

Um programa demolidor é instaurado pelo poeta e diz verdades em tom rebaixador e cômico. A linguagem que se faz rebaixadora e ao mesmo tempo renovadora desmascara satiricamente o poder e reinterpreta o sagrado sobre o plano material e corporal.

Retrato do Governador Antônio Luís da Câmara Coutinho
Vá de retrato
por consoantes,
que eu sou Timates
de um nariz de Tucano,
pés de pato
Os pés são figas
o mor grandeza
por cuja empresa
tomaram tantos pés,
tantas cantigas.
Você perdoe
Nariz nefando,
que eu vou cortando
e ainda fica nariz
que se assoe.

Atacando violentamente o governador, desmascarando-o através do grotesco, que como nos lembra Bakhtine, nele ( no grotesco) “o sentimento de insatisfação vem de ser a imagem impossível e inverossímil(...) . E é essa impossibilidade, essa incapacidade de imaginar que cria um vivo sentimento de insatisfação.” A impossibilidade de esfacelar literalmente o corpo do governador, possibilita a satisfação de poder esfacelá-lo dentro de um plano material e corporal com muita galhofa e ironia. Em outro poema, Gregório continua a esfacelar o governador. Dedicatória extravagante que o poeta faz destas obras ao mesmo governador satirizado

Desta vez acabo a obra,
porque é este o quarto tomo
de um sodomita,
dos progressos de uma fanchono
Não vai desta dianteira,
antes no traseiro a ponho,
por ser traseiro o senhor,
a que dedico meus tomos.
A vós vaca sempiterna
cozida, assada e de molho
boi sempre, galinha nunca
in secula secolurum.

O governador sodomita é destronado pela substituição do alto pelo baixo. O poeta joga com os vocábulos “dianteiro/traseiro”, optando pelo traseiro na significação ambígua topográfica do espaço e do rebaixamento corporal e material dirigido ao governador. Palavras do culto sagrado “sempiterna”e “in secula secolurum”são parodiadas num contexto obsceno, significando a permanente e absoluta solução moral do injuriado governador. O domínio carnavalesco de renovar o mundo se faz presente aí. Gregório não destrona apenas o poder, faz o mesmo com o amor, como veremos no poema Definição do Amor.

Mandai-me Senhores, hoje
que em breves rasgos descreva
do Amor a ilustre prosápia,
e de Cupido as proezas.
Dizem que de clara escuma,
dizem que do mar nascera,
que pegam debaixo d’água
as armas que o amor carrega.
O arco talvez de pipa,
a seta talvez esteira,
despido como um maroto,
cego como uma toupeira
E isto é o Amor? É um corno.
Isto é o Cupido? Má peça.
Aconselho que não comprem
Ainda que lhe achem venda
O amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias
Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um reboliço de ancas,
quem diz outra coisa é besta.

Temos aí o destronamento do Amor-cupido, que grotescamente dessacraliza o Amor, rebaixando-o ao plano material e corporal do sexo. Sua criação erótica, mescla de sensualismo, lirismo. Como a própria natureza e toda a sua ex[expressão de ser morte e nascimento, naturalismo cru e material da vida, pode ser resumida na definição que é dada ao Amor.

Vários são os poemas em que Gregório destrói a cultura oficial. Sua importância acontece por ser ele, provavelmente, o primeiro autor a apresentar a cultura brasileira através da sátira. Por fim, seus poemas desvelam sua época pela arma do riso, pelas palavras profanas, por uma linguagem dos tempos do Carnaval. Nos rebaixamento paródicos, nas injúrias, nos louvores às avessas, a linguagem da praça pública ridiculariza o sistema, desmascarando poderes vigentes.


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