Utopia da Revolução Permanente no Brasil Antropofágico


Oswald de Andrade, o revolucionário modernista das Letras nacionais, sentia-se distante e "enojado de tudo" quando constata (1933) que era "o palhaço da burguesia" por servindo-a sem nela crer. Após o "grito" dado em 22, o enfant-terrible revê, então, sua postura política e intelectual. Em 1931 é levado para Montevideo, por Pagu, sua mulher na época, para encontrar-se com o Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos Prestes.

Este momento torna-se o ‘marco zero’ do autor na luta política. Como primeira consequência funda com Pagu o jornal O Homem do Povo que, aliás, teve vida efêmera ( março a abril de 1931). Com a proposta de ser lido pelos ‘homens do povo’, o jornal na realidade era lido por intelectuais e estudantes, a ‘massa fina’ da sociedade.

Acreditando no poder de instrução da imprensa, Oswald, partia deste princípio marxista para produzir seus textos ‘revolucionários’. Antecipando-se assim, ao Congresso de Escritores Soviéticos que 1934 sob direção de Andrey Jdanov determinou o o tipo de literatura que deveria ser feita para concretizar a revolução . No referido Congresso, exigia-se dos intelectuais comunistas uma obra voltada para a classe operária para assim criar no proletariado uma consciência revolucionária, cujos responsáveis deveriam ser os intelectuais. Através das palavras dirigidas pela literatura soviética, a Revolução socialista deveria alcançar todo o mundo capitalista, como o próprio Jdanov afirmava:

Only Soviet literature,which is one of flesh and blood with socialist construction could become, and hás indeed become, such a literature - so rich in ideas, so advanced and revolutionary.

(Andrey Jdanov, Soviet writer's congress - 1934 - The debate on Socialist Realism and Modernism. London: Lawrence and Wishatar editors, 1935 .p. 18 (ed. facsimilar).

Baseando-se num artigo de Lênin de 1905, os intelectuais ligados às propostas de remodelação literária acreditavam que, pela linguagem fechada para interpretações, poderiam criar uma consciência revolucionária mesmo que a liberdade criadora fosse censurada. Os intelectuais soviéticos que participaram do Congresso de Escritores, que também repudiaram as vanguardas européias que revolucionaram a arte ocidental, acreditavam que a contribuição da literatura russa para o mundo deveria ser o compromisso de desvendar a ‘nova’ realidade social. Apoiados pela polarização ideológica que ocorria dentro do mundo intelectual do ocidente, os ideólogos do Congresso propagavam seus ideais e sua ‘nova concepção de literatura’. Nascia então, o realismo socialista que retrataria o realismo da vida social, os intelectuais entendiam, assim, que estariam sendo modernos ao propagarem sua nova forma de pensar, abrindo a cortina para que o mundo visse as conquistas da Revolução de 1917.

Os jornais seriam os principais veículos da propaganda da ‘nova’ forma de pensar e criar. No Brasil, os periódicos comunistas seguem as determinações do Congresso de Escritores. Em O Imaginário Vigiado de Dênis de Moraes( José Olympio Editora, 1995), vemos como se processou a montagem destes através do jogo lingüístico. Ao selecionar os signos utilizados pelas mensagens, o enunciador do discurso recorria a vários artifícios para organizar visualmente o jornal e assim atraía leitores para os artigos propriamente ditos. O autor ou editor que não se enquadrasse nas determinações do Partido passava a fazer parte do índex inquisitório, transformando o caminho para a Revolução numa trilha cheia de armadilhas para escritores e artistas em geral.

Mesmo ainda não sendo palavra de ordem entre a intelectualidade brasileira nos anos 30, Oswald percebia que pela escrita poderia fazer um trabalho de conscientização política. No periódico O Homem do Povo, mesmo não sendo um jornal oficial do PCB, Oswald produzia um discurso nos moldes dos periódicos comunistas. Com um discurso persuasivo, O Homem do Povo propunha a salvação do homem brasileiro ao questionar a classe dominante:

Mas quem é essa ELITE, em cujas mãos se monopolizam os 'meios de produção'. Imbecis de todas as espécies, moços que não têm um dedo de conhecimento de vida, coronéis inviris e de mulheres feias, vazias e recalcadas.

(Editorial de O Homem do Povo, no 2, 28/3/1931 ed. Facsimilar).

Como ainda os títulos dos artigos como palavras de ordem de seus artigos, da mesma forma o faz no romance cíclico Marco zero.

Mas, tanto em O Homem do Povo, quanto no Marco zero, Oswald não se deixa dominar totalmente pela forma do discurso dos meios de comunicação comunista. Com um caráter autoritário, em geral, o discurso que divulgava a ideologia dos partidos comunistas não dava espaço para um receptor ativo. O ouvinte sem ter poder de resposta, participava passivamente de um jogo de comunicação que não reconhecia seus desejos, nem tampouco abria espaço para outras vozes discursivas. Assim, o enfant terrible do Modernismo não cedia totalmente aos desejos do discurso ideológico, à medida que sempre procurava causar reações em seus leitores.

No periódico, dessacralizava-se o tom eloqüente da palavra jornalística, recorrendo-se à sátira e reabilitando a linguagem cinematográfica utilizada anteriormente pelo autor. O Homem do Povo inseria o discurso político de esquerda na deglutição radical oswaldiana. Criticando a dominação imperialista, o autor mantinha seu discurso carnavalizador nos editais do periódico, como observamos em um de seus efusivos editoriais:

Dum país que possui a maior reserva de ferro e o mais alto potencial hidráulico, fizeram um país de sobremesa. Café, açúcar, fumo, bananas. Que nos sobrem ao menos as bananas.

(O Homem do Povo, no 1, 27/3/1931 - ed. facsimilar)

Em 1933 publica o prefácio definitivo de Serafim Ponte Grande. Antes da edição final, o livro recebera um outro prefácio, de 1926. Nele canonizava-se o Modernismo como uma escola que entrava para a História da Literatura e cujo livro condutor seria o Serafim, bem como ratificava-se a questão da Antropofagia, na medida que apresentava o romance como um processo acabado de uma literatura "verdadeiramente" nacional. Já no prefácio de 33, Oswald assumia uma postura definitiva, negando seu passado burguês e reconhecendo a existência de uma luta social.

E possuído de uma única vontade. Ser, pelo menos, casaca de ferro na Revolução Proletária.

( Prefácio de Serafim Ponte Grande, in: Andrade, Oswald, Serafim Ponte Grande, Ed. Globo, p.12)

Em 1935 ao publicar Marco Zero I - A revolução Melancólica o autor selaria o compromisso em propagar os ideais do comunismo soviético, uma vez que a intelectualidade mundial, em sua maioria era admiradora do então regime. A polarização ideológica, então, permitiria a conscientização social de muitos autores. Surgia entre nós o romance social vinculado ao proletariado como reconhecimento à contribuição da força produtiva esmagada pelos interesses capitalistas. Como vemos, Pagu publicou em 1931, sob o pseudônimo de Mara Lobo, o romance Parque industrial. Financiado por Oswald, o livro pretendia desnudar o lado proletário da cidade reservando o papel de personagens protagonistas da narrativa aos oprimidos economicamente.

O romance aborda a violação da mulher imposta pelos centros industriais, restando às personagens femininas filiar-se à prostituição ou à luta comunista. Parque industrial permite uma leitura que mostra a dupla violação sofrida pelos oprimidos. Ao focalizar privilegiadamente em sua narrativa a mulher operária, Pagu apresentava um grande avanço em sua época:

Nunca mais trabalhara. Quando tem fome abre as pernas para os machos. Saíra da cadeia. Quisera fazer vida nova. Procurara um emprego de criada no 'Diário Popular'. Está pronta à fazer qualquer serviço por qualquer preço. Fora sempre repelida. Entregara-se de novo à prostituição.

(Mara Lobo (Patrícia Galvão), Parque Industrial , Rio de Janeiro: Alternativa, 1962 p. 120.ed.facsimilar).

A consolidação ideológica do Modernismo acirrava-se cada vez mais com a participação dos intelectuais no processo de transformação política. Oswald iniciava severas críticas ao novo regime. Ao combater o ufanismo de vários movimentos que se diziam inspirados na Antropofagia, o autor na realidade combatia um tipo de pensamento que poderia levar ao fascismo. Além de combater o novo regime e o posicionamento político-ideológico da elite paulista através de artigos o autor preparava ainda o romance Marco zero. .Alardeado pelo autor, o romance seria o relato da ‘civilização paulista’, e deveria ser lido como um

livro panorâmico da transformação do mundo vista através dum dos mais curiosos e ativos aglomerados humanos, São Paulo

(Andrade,O. Estética e Política, São Paulo, Ed. Globo, pp. 193-194).

A construção do Marco zero, cuja narrativa ssincopada projetava um romance mural e refletia a maturidade intelectual do autor, tinha como proposta narrar os feitos ‘heróicos’ dos paulistas para salvar o país das mãos das mãos do governo Vargas bem como, ainda adota as teses defendidas no III Congresso do PCB que objetivavam, principalmente melhorar o desempenho do partido dentro de São Paulo. Oswald ficaria, então, à vontade para desenvolver sua narrativa social.

Julgando que através de sua obra um dia pudesse trazer as massas para uma conscientização social e política, utiliza-se de determinados recursos para atrair o leitor. Além da apresentação da narrativa que monta o mural social, o autor lança mão dos títulos para anunciá-la e ordená-la, antecipando mais uma vez as transformações da estética literária brasileira.

Ao iniciar os capítulos, já temos idéia sobre o quê tratarão, como exemplo trazemos um tema que se tornava preocupação do autor - a posse da terra- no primeiro volume da série temos no capítulo I, "A posse contra a propriedade", título homônimo de um artigo do periódico já citado, que trata da questão da posse da terra e a relação entre latifundiários, posseiros e trabalhadores do campo. Já o título do quinto capítulo do primeiro volume ainda, "Os latifundiários em armas", trata da luta paulista em 1932. O título já prepara o leitor para o assunto, nele a Guerra de 32 é discutida em seu conjunto e principalmente a sua organização pela classe dominante no campo. No volume Chão, o primeiro capítulo "Resta húmus na terra" nos apresenta uma sociedade que deseja resgatar-se de uma guerra. No sexto capítulo, "Oh! guerreiros da taba sagrada" discute-se as várias formas de transformação de uma sociedade e uma certa convocação para uma nova luta. O autor ainda ligado ao tema da revolução socialista, conscientiza-se da falta de preparo dos seus articuladores, assim como o distanciamento de objetivos da massa, o título do último capítulo, "Somos um Eldorado fracassado" aborda a impossibilidade de uma transformação social radical no Brasil, mas aponta, por outro lado, uma certa reação heróica para a transformação social.

Com o Marco zero, Oswald escreveu uma obra na qual, além de divulgar seu novo posicionamento ideológico comunista, inovou esteticamente através da montagem do romance-mural e contou sua história enquanto burguês destruído que buscava recuperar o orgulho do passado bandeirante dos paulistas. Como coloca Antônio Cândido, A revolução melancólica é o desabafo da burguesia cafeeira de São Paulo.( Vários Escritos, p. 56.)

Dentro desta compreensão pode-se dizer que na obra tematiza-se a indignação da oligarquia paulista com a Revolução de 30, que humilhara São Paulo. Em seus murais narrativos, os personagens discutem esta questão, em busca dos motivos que levaram São Paulo à derrota.

Já em Chão, a narrativa examina as inter-relações das propostas culturais do Modernismo com a política de Getúlio. Também neste volume, inscrevem-se vários textos que permitem a atuação de diversos personagens distantes das doutrinas comunistas mas que, de alguma maneira, sofrem as conseqüências das diferenças sociais do mundo capitalista.

Por fim, quando se trata da literatura dos anos 30, no Brasil, normalmente a crítica refere- se ao romance social do Nordeste, ignorando a existência de algumas obras que focalizam outros centros urbanos. Como se pode ver, Marco zero é um destes exemplos esquecidos.

Não aceito pela crítica, Marco zero mostrou para o autor o lado perverso do movimento que ajudara a criar. A alegre demolição proposta pelo autor nos anos 20, faz lembrar a observação de Walter Benjamin sobre a perversidade demolidora que caracterizava os movimentos de vanguarda. O pensador alemão em Rua de mão única, no fragmento "Imagens do Pensamento", coloca que a dialética demolição/construção, uma das marcas do movimento de vanguarda, ocultou muitas obras por uma questão ideológica. Esta dialética ao demolir permitia o revide das instituições na retomada de territórios perdidos. No Brasil dos anos 30, a guinada para a direita - percebida na maioria dos intelectuais precursores do movimento Modernista - procurou colocar Oswald no ostracismo literário. Mas ainda tomando como referência o texto de Benjamin sobre o caráter destrutivo, temos o outro lado da discussão, onde o pensador alemão mostra a força deste caráter na realização de transformações bruscas na História da humanidade. Abandonando o projeto de Marco zero, o autor mergulhou em pesquisas de ordem filosófica. Sem se abater pela tentativa de silenciar, manteve a característica do caráter demolidor do qual fala Benjamin, o antropófago notava que

"o caráter destrutivo não vive do sentimento de que a vida vale ser vivida,mas de que o suicídio não vale a pena"

( Walter Benjamin, Rua de mão única, São Paulo: Brasiliense, 1987 pp. 236-237.)

Desta forma, após o projeto Marco zero, Oswald de Andrade continuaria a viajar pela Utopia.


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