Sarapatel dos Estetas
 
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Vindima
 
André Felipe Pinto Duarte
Belo Horizonte - M.G..
 
 
Crônicas Do fundo da noite as vozes que escapam das festas e os ruídos das ruas perpetuam-se em ondas através do ar. Sinto algo ecoando em minha cabeça, algo que lembra uma sugestão hipnótica. Sons surdos de tambores primitivos, gritos histéricos de satisfação de mulheres que dançam fazendo strip-tease sobre brasas e cacos de vidro colorido, grasnados de aves agourentas teimosas voando após o pôr-do sol. 

Alguns demônios travessos provindos de todas as religiões conhecidas ou ainda por serem inventadas divertem-se espalhando o lixo deixado sobre a calçada e estouram lâmpadas queimadas sobre o asfalto molhado. Alguns sátiros e ninfas repletos de paixão jogam e chutam latas de cerveja vazias, trepam e urram alucinados dentro dos túneis e trincheiras iluminados apenas pelos faróis dos carros que passam frenéticos e buzinam estrondosamente. Bodes e cabras soltos por toda a cidade destroçam as plantas dos prédios, rasgam os sacos de lixo e espalham tudo aquilo que não comem. 

Por mais que eu deseje descer ao Inferno, as luzes estão apagadas, não há ninguém em Casa e amanhã todos ainda estarão bêbados demais para serem capazes de me receber. Só Cérbero irá latir em resposta ao meu chamado de "ôôô de casa!" e não me deixará dormir próximo ao portão, babando e lançando sobre mim seu bafo pestilento através de suas três bocas. Tenho medo de cachorros, Cérbero é um bom cão de guarda e se recusaria a comer as guloseimas que eu lhe ofereceria na tentativa de torná-lo meu amigo. Já passei pela experiência. Por mais de uma vez tive em minhas mãos apenas a infértil oportunidade de estar sozinho. 

Sozinho, um pouco de repouso numa rede estendida próxima às videiras que crescem no monte Nisa, agora deserto enquanto os outros estão de férias. Sou eu que com minhas mãos deverei dar prosseguimento à vindima interrompida, arrancando um a um os cahos das uvas que já começam a apoderecer e cair na terra úmida e deverei sozinho espremê-las nas taças de ouro abandonadas por ocasião da festa da última colheita quando todos se embriagaram. 

Chegou a minha vez de ficar embriagado, de celebrar a sós a colheita feita com sucesso, a descoberta do novo néctar que descerra uma espécie de delírio vertiginoso, a dança embalada pelos sons das flautas e dos címbalos cujos ecos atravessam os séculos viajando nas asas do vento e enchendo os vales que cercam o monte Nisa sem a necessidade de serem tocados novamente. Uma vez que o culto fora introduzido, uma simples lembrança já se configura com sendo o todo dos rituais em honra ao filho de Sêmele. 

Devo aguardar que todos voltem para iniciar a próxima colheita. Ou devo aguardar que o último morador do Inferno volte e em sua bebedeira esqueça a porta da frente aberta e que sua trilha de vômito até o interior da Casa repugne o próprio Cérbero e o caminho fique livre para que eu entre. Eu estarei carregando cantis cheios do vinho novo pisado por meus pés e os esvaziarei dentro das taças de todos os habitantes para que seja dado início a uma nova festa...

 
  
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