Sarapatel dos Estetas
 
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Érico Vieira Leão Pereira
Divinópolis - M.G..
 
 
 
Contos 
1. 
Um prenúncio sinistro da onda de crimes que acometeria o ano de 199... foi dado no Dia do Ano Novo mas não havia quem pudesse reconhecê-lo então. Durante as comemorações do Ano Novo, Missy Templeton, uma senhora de cor que trabalhava como enfermeira há mais de vinte anos num hospital público em Manhattan e que estava tendo um  péssimo dia, tentava abrir caminho entre a multidão festejante em Wall Street, mal-humorada, cansada, empurrada de um lado para o outro, tirando punhados de papel picado do cabelo. Missy finalmente encontrara uma clareira no tumulto festivo quando o vento mau soprou: uma nuvem escura e compacta se destacou da chuva branca de papel que mais parecia uma nevasca falsa, dançou no ar como um dragão de papel serpenteando nas ruas de Chinatown e precipitou-se em sua direção como um enxame de gafanhotos. Pedaços de papel grudaram-se nos óculos de Missy e, quando ela tentou retirá-los, mais deles voaram em sua direção, grudando-se em seus lábios, selando-os e ameaçando entrar por sua boca adentro, cobrindo as maçãs salientes de seu rosto, salpicando seu avental branco, invadindo suas narinas, aderindo-se aos pelinhos que ladeavam o septo nasal. Missy foi cegada por um momento pelo papel miúdo que se prendia em suas pálpebras e cílios e entrou em pânico, girando sobre si mesma numa dança louca e desesperada como um enorme pião em duas cores. Pessoas ao seu redor voltavam-se surpresas para o bizarro espetáculo, para ver aquela mulher que parecia estar tendo um ataque epilético e que rolava pela calçada suja em meio à multidão. Naquele mesmo momento, um rapaz sardento que assistia ao desfile na avenida distante uns dez metros do espetáculo encenado pela pobre Missy e completamente alheio a seu sofrimento, sentiu algo tocando seu rosto como um beijo suave e molhado de criança. Num movimento automático, retirou o pequeno pedaço esverdeado de papel da face e descobriu, espantado, que os números 1, 0 e 0 indicados no fragmento lhe diziam que ele estava olhando para um pedaço de uma nota de cem dólares. 

Missy foi finalmente socorrida, após rolar na calçada por uns cinco minutos como um animal tentando se livrar de moscas incômodas banhando-se em lama, seu dia já perfeitamente arruinado, e o incidente teria sido esquecido se uma policial zelosa e curiosa não tivesse recolhido alguns dos fragmentos grudados ao corpo já estropiado da infeliz enfermeira e levado aquele punhado de papel picotado, emplastrado - percebia-se após um exame superficial - com uma substância viscosa e suspeita, para análise. O que se descobriu depois é que aquelas peças perdidas de um quebra-cabeça pareciam se juntar para formar um lote de várias, muitas notas de cem dólares, dezenas delas, ao que tudo indicava; o detalhe grotesco era que estavam untadas com o que parecia ser líquido seminal humano, tratado quimicamente para preservar sua viscosidade e aderência. Mas o fato é que a brincadeira sinistra nunca foi a público pois a história foi abafada ao alcançar escalões mais altos da polícia; uma brincadeira envolvendo notas de cem dólares picotadas e jogadas no ar como confete é um embaraço inconfessável para qualquer um com um senso enraizado de fidelidade burocrática. A origem do dinheiro só seria descoberta muito depois e tarde demais, pois o  Assassino do Cofrinho de Porco já havia feito seu trabalho então. 
 

2. 
  A primeira vítima apareceu na primavera. O corpo do principal acionista de uma companhia de petróleo, desaparecido há quase uma semana, foi encontrado em um estacionamento do centro da cidade, sentado no banco do motorista de seu carro japonês de luxo, as mãos presas firmemente ao volante - que teve de ser quebrado para que o corpo pudesse ser retirado do veículo. O carro e seu falecido proprietário haviam permanecido ali por um dia inteiro; um dos garagistas lembrava-se do veículo entrando no estacionamento cedo pela manhã mas pôde apenas fornecer uma descrição muito vaga do motorista. Quando o corpo foi descoberto, o ar-condicionado do carro estava ligado ao máximo, mas o que havia realmente retardado o processo de decomposição do corpo era o fato de que ele fora embalsamado.  

O corpo teve de ser conduzido ao necrotério na posição mesma em que fora encontrado, as pernas flexionadas e os braços estendidos, como que acomodado num assento imaginário, segurando firmemente um volante que não estava mais ali; o esqueleto havia sido parcialmente substituído por barras de ferro que moldavam o corpo naquela posição. Uma cisão fora feita da virilha até a base do pescoço; o corpo aberto como um peixe a ser limpo tivera seus órgãos removidos, sendo estufado com o novo e minimalista esqueleto e com uma profusão branca de algodão. E, acomodado em meio a toda aquela brancura fofa, havia um novo intestino, na verdade, um intestino de porco enorme e inteiriço, preenchido por um conteúdo escuro, indefinido, que o tornava extremamente pesado. Enquanto esse novo órgão estava sendo cuidadosamente retirado do corpo, durante a autópsia, seu tecido se rompeu e uma quantidade enorme de moedas de dez centavos vazou de seu interior, espalhando-se com um barulho medonho pelo piso branco do necrotério. 

O caráter meticuloso do crime não deixava dúvidas de que aquilo era apenas o começo. Quando o diretor de um dos bancos mais proeminentes da cidade desapareceu, cerca de um mês depois, a polícia já esperava pelo pior. O corpo foi encontrado depois de cinco dias de angustiante expectativa: sentado apaticamente, como um atleta cansado, em um dos banco do Central Park, vestido em suas roupas de jogging, headphones posicionados delicada mas firmemente em seus ouvidos, como que para impedir que o fluido cadavérico escorresse, o walkman tocando suavemente uma fita com execuções de músicas de Vivaldi. 

 Todos os demais detalhes do caso correspondiam aos do crime anterior. Dois seres humanos transformados em bonecos grotescos, estufados, quase informes, maquiados exageradamente, como que na antecipação de um solene funeral; até mesmo seus olhos haviam sido substituídos por olhos de vidro, como se as vítimas fossem ursos pardos empalhados em um museu de história natural. Dois homens brancos, ricos e influentes, mortos não se sabia como, pois não havia rastros nos corpos limpos de suas entranhas, todas as evidências materiais que poderiam levar ao criminoso desaparecendo com elas, seu destino intraçável como o crescente amontoado de moedas de dez cents, transformados em cascas vazias, empalhados não se sabia porquê. De modo quase miraculoso os detalhes assustadores dos crimes foram mantidos longe da imprensa e os parentes das vítimas deixados no escuro, sob o pretexto de não se comprometer a investigação. Mas os próprios tiras estavam no escuro, perdidos num breu completo sem saberem ao certo o que viria em sua direção no momento seguinte. 

O apelido medonho do assassino taxidermista invisível, “Assassino do Cofrinho de Porco”, surgiu com a vítima seguinte, um mês depois do segundo crime, quando o padrão das atrocidades se cristalizara; uma piada perversa que, de certa forma, parecia tranqüilizar os detetives empenhados no caso: afinal, dar um nome ao demônio não deixa de ser o primeiro passo para exorcizá-lo. O diretor de uma grande agência imobiliária foi encontrado na piscina de sua cobertura de luxo, de óculos escuros e calção de banho, deitado sobre uma bóia que vagara pela água cristalina por horas a fio, sob um céu limpo de verão, a maquiagem pesada aplicada à pele, seca como camadas de tinta numa parede, esfacelando-se aos poucos pela ação do sol, indiferente que este é a qualquer consideração cosmética. 

 O fato de que o assassino tivera livre acesso à residência da vítima parecia confirmar uma suspeita perturbadora que despontara desde o primeiro crime. Supunha-se que o Assassino do Cofrinho de Porco havia entrado no edifício pela garagem, no carro do morto, e feito o percurso de ida e volta à cobertura, trazendo o corpo embalsamado consigo, sem ser notado por ninguém, com a tranquilidade e a familiaridade de um condômino como outro qualquer. O que talvez indicasse que o monstruoso assassino não só conhecia a vítima como também era íntimo da mesma. Um cruzamento de dados dos três mortos não foi muito revelador, além da descoberta de dois possíveis e embaraçosos denominadores comuns entre as vítimas, na forma de uma próspera agência de acompanhantes e de um traficante de cocaína de origem porto-riquenha (não menos próspero). Esse último parecia ser o candidato perfeito a bode-expiatório dos crimes escabrosos, mas houve muita resistência em dar prosseguimento à investigação, quer num ou noutro sentido, pois havia gente demais no caminho, gente importante que não gostaria de ser incomodada, muito menos implicada em assassinato. Algo fedia em Manhattan, como não poderia deixar de ser. 

Mas o fim estava próximo. Com o outono veio a quarta e última vítima: um corretor da Bolsa cujo corpo embalsado fez repetidamente o percurso de uma das linhas de metrô pelo que talvez tenham sido doze horas, encolhido em um banco, escondido dentro de um pesado capote como se fosse mais um mendigo da cidade, os demais usuários daquele vagão em particular ignorando a forte colônia após barba com que fora encharcado, ao que parece, com o intuito de camuflar o cheiro de formaldeído. A polícia de Nova Iorque estava à beira do pânico, cabeças já começavam a rolar, os negócios começavam a cair na cidade que fora o coração da economia mundial como se influenciados por um feitiço secreto, um invejoso mau-olhado. E o Assassino do Cofrinho de Porco provavelmente continuaria livre e anônimo no próximo verão - mas o inverno traria consigo algumas surpresas, ainda que pouco alívio viesse com elas. 
 

3. 
  O verdadeiro nome do Assassino do Cofrinho de Porco era Norman Peacock. E seu disfarce era tal que o tornava um invisível elo de ligação entre as vítimas e, ao mesmo tempo, um improvável suspeito dos crimes. 

Peacock era filho de um empresário da indústria química que cometera suicídio em meados da década de 80, após ter ido à falência. Fora isso, nada tinha de notável ou marcante em seu histórico; frequentara a escola de artes e fora chutado da mesma por seu péssimo rendimento. E então descobrira sua verdadeira vocação como falsário. 

Na verdade, dizia-se um artesão, o que não interessava realmente ao Serviço Secreto quando este fora bater à sua porta. Pois, por uma dessas ironias dos anais da criminologia, Peacock não fora pego pelo Departamento de Polícia de Nova Iorque sob a acusação de assassinato mas sim pelo Serviço Secreto Americano, sob a suspeita de falsificação de moeda. Suspeita verdadeira, de fato; Peacock era cuidadoso em seu ofício e em suas transações, mas fora delatado por um intermediário que também era, incidentalmente, um dedo-duro em tempo integral. O Serviço Secreto estava há anos investigando uma rede de lavagem de dinheiro sujo em ação na cidade, o que não era bem sua área, a não ser pelo fato de que as “notas quentes” estavam sendo trocadas por notas não propriamente "frias", mas sim falsas - esse, sim, seu departamento, uma vez que uma das tarefas dessa agência federal é proteger a moeda americana (a outra sendo, curiosamente, a de proteger a vida do Presidente). 

Peacock se revelara, pois, o elo fraco na cadeia. Não se preocupou em negar as acusações; porém, quando sob interrogatório, parecia ter assumido uma tática de despistamento, contando em detalhes uma história maluca sobre uma peça pregada no Dia de Ano Novo. Ele estava se vangloriando, é claro, mas os agentes do Serviço Secreto não pareciam impressionados, a não ser pelo fato de que essa brincadeira infantil envolvia a destruição de moeda circulante, um ato que constitui crime por si só; o interesse maior estava no fato de que as notas rasgadas e espalhadas ao vento faziam parte das levas de grana suja que Peacock recebia em troca de seu dinheiro de mentirinha. 

De qualquer forma, houve uma certa demora na confirmação da história e Peacock estava ficando impaciente nesse meio tempo, decidido que estava em controlar o show,  mantendo os holofotes apontados em sua direção o tempo todo, revelando a seus captores apenas o que lhe conviesse. Não demorou muito para que começasse a contar aos agentes do Serviço Secreto mais do que eles queriam saber; seu jogo infantil, que consistia em forçar os agentes a descobrirem qual fora sua brincadeira mais malcriada, qual fora sua verdadeira brincadeira genial, cedeu lugar a uma compulsão confessional que assombrou as noites insones de muitos dos zelosos guardiões do dólar. 

Peacock falou sobre os crimes, falou sobre eles em detalhes; referia-se apenas de modo marginal ao fato de que as vítimas fossem todas parte do esquema de lavagem de dinheiro sujo. Não; não importava o que fossem aqueles homens “antes”, mas sim no que eles haviam se tornado em suas mãos. Peacock queria que todos admirassem suas pequenas obras-primas não assinadas e que compreendessem a nova liturgia que ele se esforçava por criar. 

Os laços entre o falsificador e aqueles ilustres homens de negócios eram estritamente profissionais; sequer havia entre eles o espírito de cumplicidade próprio de certos grupos criminosos: Peacock não era mais do que um elo naquela cadeia ilícita de trocas. E, ainda que fazer parte dessa cadeia lhe trouxesse muitas vantagens materiais, ele invejava secretamente seus “patrões” e a inveja se mesclava a uma admiração sincera pelo que lhe faltava e  que eles tinham de sobra: legitimidade. 

Peacock queria se tornar legítimo, queria participar da prosperidade do mundo real, território exclusivo daqueles homens que pareciam estar acima de todos os homens - mas se sentia impotente. Ao que parece, fora acometido de uma espécie de crise mística, talvez induzida pela exposição negligente a produtos tóxicos que faziam parte de seu ofício de artesão-falsificador. De qualquer forma, foi com essa crise que veio a idéia da brincadeira do Ano Novo: ao invés de destruir o dinheiro sujo que lhe fora confiado, Peacock iria "transmutá-lo" e pô-lo em circulação novamente - ostentando uma marca que fosse inegavelmente sua. Como não seria possível colocar sua efígie nas notas, viu-se obrigado a destruí-las, de qualquer forma, mas antes embebeu-las em seu próprio sêmen, numa tentativa dúbia de polinizar o mundo com essa semente; de tornar-se, enfim, legítimo: colado ao mundo real - ainda que “sujo” e volátil - da moeda em circulação e tornando-se, dessa forma, onipresente . 

O que se revelou um experimento frustrante; Peacock não obteve qualquer satisfação com a brincadeira secreta e foi acometido de uma nova crise, essa mais dramática e definitiva. Pois trouxe consigo uma nova revelação: o falsário nunca poderia se tornar o legítimo homem de negócios, nunca poderia se alçar ao mundo dos semideuses que tanto admirava, não importando de que subterfúgio fizesse uso. Poderia apenas venerá-los; sua maior honra estaria apenas em servir a esse novo panteão que governava o mundo, mesmo que num sacerdócio humilde. E em propagar  a Boa Nova. 

A mensagem não poderia ser equívoca; o mundo deveria reconhecer as novas divindades pelo que elas realmente eram. Assim, valendo-se de alguns contatos comuns e de algumas manobras sutis, Peacock conseguiu finalmente se aproximar de seus ídolos um a um; e, valendo-se de sua arte, da habilidade e da meticulosidade que desenvolveu ao longo de anos de trabalho silencioso e não reconhecido, cuidou de torná-los imortais: limpou-os de seus resquícios humanos, tornando-os ícones atemporais de um mundo de pura bonança e prosperidade; o detalhe das moedas escondidas dentro dos corpos era apenas um índice da generosa fecundidade desses seres divinos, fontes reais de toda a riqueza material. 

Seu trabalho não estava completo; felizmente, os membros restantes do complô criminoso haviam fugido do país, tomando a onda de crimes como uma espécie de macabra queima de arquivo. Assim, coube a Peacock o papel de bode-expiatório, de mártir - o que, de certa forma, era mais do que ele esperava como retribuição por seu pio trabalho. 

Peacock nunca foi indiciado pelos crimes. No entanto, o Departamento de Polícia de Nova Iorque foi pressionado a fechar o caso, como se esse não tivesse tido uma solução satisfatória. O Assassino do Cofrinho de Porco cumpre hoje, anônimo, uma longa pena por fraude em uma prisão federal de segurança máxima. 

Pois não havia, realmente, evidências materiais para um caso - e não havia motivos para se permitir a eclosão do escândalo que esse suposto caso traria consigo. Peacock, o meticuloso profissional, havia se livrado de todas as evidências que o ligassem aos crimes, e sequer as causas das mortes poderiam ser provadas de modo convincente em tribunal. Quanto aos órgãos extraídos das vítimas, Peacock dizia tê-los queimado. A hipótese de canibalismo chegou a ser ventilada, mas essa acusação ele negou, ultrajado.  

Havia algo, no entanto, que o falsário havia guardado de suas vítimas. Em um canto de uma de suas oficinas secretas foi encontrado um pequeno altar de madeira improvisado. Nele, ao invés de ícones religiosos ou oferendas, estavam dispostos, carinhosamente, talões de cheques e cartões de crédito pertencentes aos homens que haviam sido mortos.

   
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