Abril/2014
Em vez de falar de "o brasileiro", com riscos da generalização indevida, mais adequado metodologicamente é falar em vigencias (Ortega), formas sociais que têm livre trânsito entre nós, que se aceitam sem discussão, as "preferências nacionais", que se dan por supuesto.
Nórdicos terão dificuldade com algumas de nossas vigências alimentares, de modos de vestir, de cumprimentar (com o contato físico de abraços e beijinhos), etc. Uma das mais arraigadas vigências em nossas formas de comunicação e expressividade é a referência à religião (muitas vezes associada à superstição e ao lúdico, outra vigência tupiniquim).
Como estas páginas tentam mostrar, o Brasil tem uma exagerada, insaciável, propensão ao religioso, que se tornou uma linguagem própria. Naturalmente, há referências à religião entre os muçulmanos ou em países de tradição católica. Mas, no Brasil, temos nossas peculiaridades.
Fé linguística
Tradicionais - "Vai com Deus!", "Fica com Deus!", "Se Deus quiser..." (o que a familiaridade brasileira com o divino se permite acrescer: "E Ele há de querer!").
Ecumênicas - Vindas do relativamente recente "boom" de evangélicos, espíritas e outros, como os "Misericórdia!", "Ô glória!", "Axé", e o referir-se ao interlocutor como "Fulano do céu" etc.
Bênção - Virou sinônimo de qualquer sucesso (financeiro, profissional etc.).
Votos - São tantos os votos de caráter religioso que, para esses casos, em vez de dizer "sim" empregamos "Amém" (usada nos cultos também na função conativa: "- Amém, irmãos!").
Por Deus! - Interjeição para expressar inesperado final feliz ("Por Deus, o carro foi perda total, mas ninguém se machucou") e, curiosamente, situações surpreendentes: "Olha, por Deus, éramos favoritos, mas perdemos de 4 x 0!".
Gestos comunicativos
Também nos gestos temos ampla gama de traços de linguagem religiosa, que vai dos pulinhos (a Iemanjá e São Longuinho) ao envio de energia (positiva, negativa) com as mãos para o campo. Referências à religião afligem até nossos bandidos. Não surpreende que dois dos maiores assaltantes de bancos (ao menos 62 agências roubadas), Monstro e Charuto, presos recentemente, tenham suspendido as operações da quadrilha no Natal. Ano passado, Fernandinho Beira-Mar, condenado a 80 anos de prisão, começou a cursar ("a distância", naturalmente) uma faculdade. De teologia!
O verbo da propina
Até os corruptos oram, como na famosa Oração da Propina, que os deputados Rubens César Brunelli Jr. (PSC-DF) e Leonardo Prudente (DEM-DF), presidente da Câmara Distrital, ofereceram ao então secretário (Relações Institucionais do DF) Durval Barbosa, que distribuía propinas entre a base aliada. Juntos, pedem a Deus:
"Pai, queremos te agradecer por estarmos aqui. Sabemos que somos falhos, que somos imperfeitos, mas queremos agradecer aos santos que nos purificam. Olha, nós somos gratos pelo amigo Durval, que tem sido um instrumento de bênção para as nossas vidas e para essa cidade, que o Senhor contemple as questões do seu coração. Tantas são as investidas, Senhor, de homens malignos contra a vida dele, contra as nossas vidas. Nós precisamos dessa tua cobertura, dessa tua graça, da tua sabedoria. De pessoas que tenham, Senhor, armas para nos ajudar nessa guerra. E, acima de tudo, é o Senhor. Todas as armas podem ser falhas, todos os planejamentos podem falhar, todas nossas atividades, mas o Senhor nunca falha."
Nomes de santos
Nenhum carioca se importa com a contradição que o feriado estadual de São Jorge supõe para o Estado laico: afinal, se 21 de abril é feriado nacional de Tiradentes e o santo guerreiro é 23 de abril, o que acontece com o dia 22? E com o 20 e o 24? Viva Jorge! Sobre a familiaridade brasileira com os santos, já quase 80 anos, advertia Sérgio Buarque de Holanda: "Nosso velho catolicismo, tão característico, que permite tratar os santos com uma intimidade quase desrespeitosa e deve parecer estranho às almas verdadeiramente religiosas, provém ainda dos mesmos motivos. A popularidade, entre nós, de uma Santa Teresa de Lisieux - Santa Teresinha - resulta muito do caráter intimista que pode adquirir seu culto, culto amável e quase fraterno, que se acomoda mal às cerimônias e suprime as distâncias." Teresinha, assim no diminutivo, tornou-se nome de tantas brasileiras em homenagem à santa.
Sem blasfêmias
Ao contrário de países de tradição católica (e correspondente tradição anticlerical), praticamente não há no Brasil blasfêmias. Afora alguns poucos radicais, na contramão da vigência, há enorme respeito por todas as manifestações de religiosidade, por mais ridículas que pareçam. David Letterman se divertiu com a torrada que tinha "milagrosamente" estampada a imagem da Virgem Maria e foi leiloada por US$ 28 mil no site e-Bay. O católico anglo-saxão terá apoiado a ridicularização dessa farsa. Mas é difícil imaginar algum apresentador brasileiro - seria considerado ímpio! - esculhambando um fraudulento "sinal" religioso, digamos, a "folha" de Nossa Senhora. Essa que encontramos em adesivos nos automóveis: um terço emoldurando a figura de Nossa Senhora, que, segundo a lenda (surgida no início deste século), teria sido elaborada em uma folha de árvore por formigas!
O testemunho espírita
No oceano sentimental da religiosidade (o Brasil é "franciscano", segundo Gilberto Freyre; espírita, segundo outros; e, em qualquer caso, tendente ao sincretismo) não é de estranhar que aceitemos até testemunho mediúnico em tribunal. Em processo por homicídio, em 1985, um juiz de Campo Grande aceitou que a defesa apresentasse "cinco cartas psicografadas pelo médium Chico Xavier, nas quais a vítima dá a entender que a arma disparou acidentalmente. O júri o absolveu, mas a sentença foi anulada por recurso da promotoria, que quer condenação" ("Marido das cartas psicografadas volta a júri", O Estado de S. Paulo, 6-4-90, p. 16). Em outro caso, um juiz de Gurupi (GO), em 1987, convocou Chico Xavier como testemunha (mediúnica, não ocular), porque o médium teria recebido mensagem do além da vítima ("Testemunha do crime: o médium", O Estado de S. Paulo, 25-3-87, p. 17). O Jornal Espírita trouxe a notícia em 1ª página: "Haverá de chegar um tempo em que os espíritos poderão vir do 'lado de lá' - com o aval das autoridades - consertar tantas injustiças" (Ano XI, 143, maio de 1987).
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Nota exclusiva para o site:
Em caso recente, publicado pelo Estadão em 21 de março de 2014, uma "carta psicografada foi usada durante o julgamento de um processo de homicídio, em Uberaba (MG), nesta quinta-feira, 20. Para provar sua inocência, a defesa do réu, Juarez Guide da Veiga, usou trechos do que teria dito a vítima, João Eurípedes Rosa, o "Joãozinho Bicheiro", como era conhecido, através de um médium"(em http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,acusado-de-matar-bicheiro-usa-carta-psicografada-da-vitima-e-e-absolvido,1143604,0.htm).
Profissão: benzedeira
No Brasil, há uma recomendação do SUS que abriu as portas para que benzedeiras sejam reconhecidas oficialmente como "profissionais de saúde":
"- [recomenda...] valorizar as práticas populares em saúde, tomando medidas para preservar e proteger a atuação de mateiras (os), benzedeiras (os), parteiras e outras(os), articulando-as às práticas integrativas e complementares de Saúde no âmbito do SUS" (rec. 010 de 11/8/2011).
Afagos na liturgia
Mais uma experiência de transbordamento tupiniquim: o católico brasileiro ficou felicíssimo com a introdução na liturgia da missa, pouco depois do Pai-Nosso, do convite - "conforme a oportunidade" -, feito pelo sacerdote aos fiéis:
"Meus irmãos, saudai-vos uns aos outros em Cristo".
Coeteris paribus, o católico, digamos, alemão, inglês ou japonês, discretamente fará um pequeno gesto, um aperto de mão ou uma reverência aos 3 ou 4 que o circundam, dirá "a paz de Cristo" e em questão de um minuto a paz está dada. Agora, em uma missa da qual participei na Bahia, esse "dar a paz" era o ponto alto da cerimônia: cada um procurava cumprimentar efusivamente, com vagar, o maior número possível de irmãos.
Mesmo sendo um visitante ocasional (e, como bom introvertido, sentindo-me deslocado), foram pelo menos 10 minutos em que fui abraçado (em alguns casos, cheirado...), beijado etc. numa explosão de alegria, que, certamente, para nós, é o melhor selo de garantia da paz do Senhor...
A reza do futebol
Religião (ou superstição, ou misto de ambos) é prato cheio quando associada ao futebol, no qual sempre é bem-vindo o auxílio de Deus, santos ou entidades.
Pai de santo - Por anos, o Vasco da Gama manteve entre seus funcionários (com carteira assinada), o Pai Santana, pai de santo (e massagista...) encarregado de "trabalhos" contra os rivais. Ele morreu em 2011. Usava sempre roupas brancas e conta-se que, em 1977, descera de helicóptero na Gávea para fazer um "trabalho" no campo do rival. Ato contínuo, o Vasco sagrou-se campeão carioca em decisão por pênaltis.
Feiticeiro - Embora caso isolado, um feiticeiro processou o Internacional por não lhe pagar os "serviços" prestados na disputa contra o Grêmio: "O processo número 01598148052 deu entrada no 4º Juizado Especial Cível de Porto Alegre no dia 23 de setembro de 1998, sendo autor Sérgio Ruggini, que trabalha como feiticeiro especializado em trabalhos de feitiçaria para jogos de futebol". Tratava-se de ação de cobrança, pois "no penúltimo campeonato gaúcho (1997), o autor foi contratado pelos réus para segurar o Grêmio na última partida do campeonato, saindo o Inter campeão com o gol do Fabiano. Quando foi buscar o dinheiro acordado entre as partes recebeu informação dos réus de que não pagariam" (http://www.usp.br/revistausp/46/10-arioro.pdf).
Número 1 - Cansada das exibições religiosas da seleção brasileira, a Fifa decidiu proibir "comemorações religiosas" nos jogos. Proibição ignorada em campeonatos ou contornada por meio de sutis alusões a Deus, como a comemoração do gol com o indicador para o céu (sempre se pode alegar que o sentido é o de "número 1" ou anúncio de cerveja etc.)
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