Fevereiro/2015
Em Studies in Words, C. S. Lewis fala da "notável tendência" de inversão de polaridade valorativa: palavras que originalmente indicavam qualidades positivas passam a significar defeitos. E exemplifica com innocent e simple, entre outras. Assim, no sentido pejorativo do inglês, na Espanha (e em diversos países de língua espanhola) celebra-se o dia da mentira em 28 de dezembro, dia dos Santos Inocentes, os bebês que Herodes mandou matar, pois inocente em espanhol passou a significar "pessoa fácil de ser enganada" (Dicc. de la Real Academia).
Também a palavra "prudência" decaiu. Originalmente, era a principal das virtudes cardeais, a virtude da decisão certa: corajosa e justa (Tomás de Aquino), com base na visão da realidade. Hoje está mais para indecisão, receosa cautela de cálculos egoístas. O homem prudente necessitava da nobre e rara qualidade de ser "simples", capaz da visão límpida da realidade, preconizada por Cristo: "Se o teu olho for simples todo teu corpo estará na luz", diz MT 6,22.
Hoje, no verbete "simples", em vez do vigoroso elogio, encontramos no Aurélio:
"Que se deixa facilmente enganar; sem malícia; ingênuo, papalvo, tolo, crédulo, simplório, singelo; simplacheirão", "ignorante, humilde" etc.
O contrário também pode acontecer, passe o exemplo jocoso, como na conhecida piada da briga de galo. Em visita a uma cidade do interior, um sujeito é convidado a assistir a uma rinha de galos. Vendo que todos estão apostando, também resolve jogar.
Vira-se para um caipira, que fuma um cigarrinho de palha enquanto observa com muita atenção a luta dos bichos, e pergunta:
- Qual é o galo bom na próxima briga?
O caipira dá cusparada de lado.
- Óia, tem o galo branco e o galo preto. O bom é o branco.
Confiante, o sujeito aposta toda a grana que tem no bolso no galo branco. Mas o bicho leva uma tremenda surra do galo preto. Indignado, ele pede explicações ao caipira:
- Pô, você não me disse que o galo branco era bom?
- Uai, responde o caipira, - O branco era bom mesmo. Mas o marvado é o preto!
Nessa mesma linha de inversão, Aurélio registra o uso ("paradoxal") de "filho da puta" como elogio de excelência:
"O filho da puta é inteligente: estudou pouco e mesmo assim passou em primeiro lugar".
O uso é antigo e não exclusivamente nosso: já no Quixote, Sancho bebe vinho da bota e exclama:
- ¡Oh hideputa bellaco, y cómo es católico!
E seu interlocutor pergunta como pode louvar, chamando de f-d-p:
- ¿Veis ahí - dijo el del Bosque, en oyendo el hideputa de Sancho -, cómo habéis alabado este vino llamándole hideputa?
E Sancho sentencia que chamar de f-d-p não é ofensa quando é usado para louvar:
- Digo - respondió Sancho -, que confieso que conozco que no es deshonra llamar hijo de puta a nadie, cuando cae debajo del entendimiento de alabarle.
O falante espanhol que hoje emprega a expressão "palabras mayores" não se dá conta da inversão que a formulação recebeu. Quando se diz "eso son palabras mayores" indica-se que o que se acabou de dizer é algo importante: como quando o Barcelona acabou contratando Neymar, que se supunha ir para o Real Madrid, ou a imprensa espanhola (palabras muy mayores!) comentou a afirmação de Pelé de que Neymar poderia chegar até a ser melhor do que ele. Palabras mayores foi a decisão do presidente Obama de reatar relações diplomáticas com Cuba e convidar o Congresso americano a levantar o embargo à ilha.
Em sua antiquíssima origem, porém, a expressão refere-se a algo muito mais prosaico: palavrões e insultos. Mais concretamente, muito antigas e vigentes por séculos, leis espanholas - como o Fuero Real de 1255 de D. Alfonso o Sábio, ou uma lei de 1566 de Felipe II - puniam com pesadas multas ofensas com "palabras mayores", as verdadeiramente grandes: gafo (o estigma do leproso), sodomético, cornudo, traidor, herege ou puta (no caso, só para mujer que tenga marido!).
No caso de o ofendido ser fidalgo, Felipe II mantém a antiga pena de 500 soldos e quantias menores "para quem injurie com palavras menores do que as expressas na lei anterior".
As injúrias hoje
Fidalgo de 500 soldos chega a ser mesmo uma tipificação: "sou fidalgo de solar conhecido, de posses e propriedades, e com direito a reivindicar (devengar) 500 soldos", diz D. Quixote de si mesmo. Assim, se a uma ofensa corresponde a quantia de 500 soldos; a uma segunda ofensa serão "outros quinhentos" e pode-se discutir que se se deve 500 por chamar uma mulher de "puta", pois no mesmo ato se insulta o marido de "cornudo", o que implicaria (ou não?) um acúmulo de "outros quinhentos".
Antes de sorrirmos com superioridade ante visões de nobreza, gênero etc. da época, lembremo-nos da célebre indenização de 500 soldos que, em 2014, a agente de trânsito Luciana Tamburini foi condenada a pagar pela "ofensa" ao magistrado João Carlos de Souza Correa, por ter afirmado que juiz não é Deus...
No Brasil de hoje, a injúria qualificada (Código Penal art. 140, par. 3) e mais penalizada é a injúria discriminatória ("Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência"). E com pena acrescida de um terço, no caso de ser contra o Presidente da República ou chefe de governo estrangeiro ou, os novos fidalgos de 500 soldos: "funcionário público em razão de suas funções".
Quanto aos insultos de leproso, cada vez menos circulam entre nós "lazarento" e "morfético" e promovemos encantadora delicadeza: o Brasil é o único país que mudou a palavra "lepra", carregada de estigmas, para "hanseníase". Embora a especialista Maria Leide de Oliveira aponte as disfunções dessa ternura eufemística:
"Hanseníase é [erradamente tida por] uma doença simples, não precisa se preocupar, tem tratamento e cura, então talvez a gente tenha banalizado muito a hanseníase" (Câmara Notícias, 2012, http://bit.ly/1yJQZP5).
Provocações
Quanto a "sodomético" (ou equivalentes atuais) - apesar de tanta homofobia truculenta - o exagero e o lúdico acabam tirando eficácia ao caráter ofensivo do insulto. Em Curiosidades brasileiras, o francês Olivier Teboul registra:
"Aqui no Brasil tudo é gay (ou 'viado'). Beber chá: é gay. Pedir um coca zero: é gay. Jogar vólei: é gay. Beber vinho: é gay. Não gostar de futebol: é gay. Ser francês: é gay, ser gaúcho: gay, ser mineiro: gay. Prestar atenção em como se vestir: é gay. Não falar que algo é gay: também é gay."
E há usos não ofensivos, como um hétero que diz carinhosamente para o amigo hétero: "E aí, seu viado, já comprou a cerveja?".
Por vezes, aquilo que era originalmente um insulto acaba sendo assumido pelos ofendidos. Como quando em histórica capa do Placar (novembro de 1986), Jorginho anexou o porco como mascote do Palmeiras, invertendo a polarização negativa por tantos anos sofrida pela torcida.
Nessa linha, seria possível penalizar Daniela Mercury, que no carnaval de 2011, do alto do trio de seu bloco Crocodilo, proclamou em nome de todos os gays: "É isso mesmo: a gente é veado"? E com relação a "cornudo" também o humor (Reginaldo Rossi, Falcão etc.) se encarrega de atenuar: a Associação dos Cornos do Ceará existe há mais de 15 anos, tem sede própria e mais de 17 mil filiados de carteirinha, que pagam mensalidade.
Também a palavra "puta" recebeu ousado apoio com a iniciativa da guerreira Gabriela Leite, autora de "Filha, mãe, avó e puta", fundadora da "putique" Daspu ("nome provocativo, de quem não tem vergonha de dizer quem é e o que faz") e da ONG Davida, que defendeu o uso da palavra para vencer o preconceito:
"Hoje, não se pode chamar favela de 'favela', tem de dizer 'comunidade'. Mas favela é favela e puta é puta." "Eu faço muito questão do nome 'puta', é o que eu mais gosto, aliás, porque eu acho que a gente não pode esconder esse nome e colocá-lo de um modo que um dia fique bonito." (http://pt.scribd.com/doc/51487118/Roda-Viva-Entrevista-com-Gabriela-Silva-Leite-sociologa-e-prostituta).
Traidor ateu
Completa a lista dos 500 soldos o "traidor" que, em vez de condenado, é beneficiado por delação premiada e o "herege", que muda de religião e igreja livremente (o preconceito agora é contra ateus, como quando, em julho de 2010, José Luiz Datena, no Brasil Urgente (TV Bandeirantes), relacionou um crime hediondo ao ateísmo do homicida:
"Um sujeito ateu não tem limites, e é por isso que a gente vê esses crimes aí").
Como se vê, as "palavras maiores" necessitam de discernimento na sociedade brasileira de hoje, mas isso são outros quinhentos...
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