Setembro/2013
Um dos mais intrigantes fatos semânticos do árabe é a metátese,
transposição de fonemas dentro de uma palavra, frequentemente com relação de
sentido entre as formas metatéticas. Pode ser uma útil unidade auxiliar de
compreensão de fenômenos do português.
Em nossa língua, se tomamos a
palavra "porta", podemos encontrar metáteses como: trapo, rapto, parto, tropa.
Mas não há relação de sentido entre elas e, se houver (como se alegaria entre
"parto" e "porta"), costuma ser casual. Exceto em poucos casos que remetem à
mesma etimologia, como "terno" e "tenro", ou a engasgos de pronúncia, como
"estrupar" e "estuprar", "depredar" e "depedrar". Podem surpreender pela conexão
de sentido (mas são casuais...) metáteses como: "desnorteia" e "desorienta";
"podre" e "poder" ou "senador" e "desonra".
No caso da língua árabe, o
que conta é o radical triconsonantal, que é o núcleo semântico das palavras (as
vogais, que frequentemente nem são grafadas, fazem a determinação periférica do
sentido). Se aplicássemos a leitura "árabe" a nossas palavras, "obsoleto" seria
aparentado com "basalto" e "Datena" imediatamente associado a "detona".
Considerando em "carta" só as consoantes c-r-t, teríamos no mesmo campo
de significados: carta, careta, certo, corta, curto, acerto, Creta, Crato, etc.
e ampliar-se-ia o número de metáteses: troca, treco, torce, recato, retaco,
cátaro, etc. Mas as metáteses continuariam independentes e, se houvesse relação
de sentido (como, jocosamente, em "pastel" e "paulista"), seria casual. O que
não impede que se busquem tiradas, como entre "Clint Eastwood" e "Old West
Action", e versos jogando com "tálamo" e "túmulo" ou "filas", "vilas",
"favelas", etc.
Já, na língua árabe, metáteses são tão frequentes e
dotadas de sentido que é difícil afirmar casualidade quanto decifrar o
intrigante mistério desse fato de linguagem.
Exemplos: B-r-k é o radical
de "abençoar". K-b-r é "ser grande" (a bênção é engrandecimento: de colheitas,
família, sucesso, etc., a tal ponto que q-l-l é "ser pouco" e, no hebraico
bíblico, "amaldiçoar").
Na tradição semita, a bênção é ligada sobretudo à
primogenitura: b-k-r! Se "viajar" é s-f-r; f-r-s é o "cavalo". X-r-b é beber;
b-x-r é alegrar-se, boas novas. Etc. etc. etc.
Esses exemplos foram
escolhidos de propósito, procurando associá-los a palavras familiares ao leitor:
b-r-k como no nome do presidente dos EUA: abençoado, Bento. K-b-r (como no
Alcácer kibir, o grande Alcácer); s-f-r, como em "safári"; f-r-s, como no
"alferes" Tiradentes. X-r-b ("xarope" - o b supre em português a letra p,
inexistente em árabe); b-x-r ("alvíssaras": al-besharah).
Metáfora
Essa introdução sobre metáteses árabes
é para discutir um caso de especial importância sobre a palavra para "metáfora":
o radical m-th-l.
Primeiramente, é necessário destacar outro ponto em que as
línguas semitas divergem das ocidentais: o pensamento confundente (Ortega), isto
é, o acúmulo numa única palavra árabe de significados que nós distinguimos em
diversas palavras.
Mathal em árabe (ou seu correspondente em hebraico
mashal; pl.: amthal e mashalim resp.) é uma dessas palavras "confundentes".
Assim, se quisermos cobrir o campo semântico em torno do radical
triconsonantal m-th-l, encontraremos: metáfora, provérbio, parábola, comparação,
exemplo, modelo, ditado, adágio, semelhança, analogia, equivalência, símile,
apólogo, imagem, ideal, escultura, tipo, lição, representação diplomática,
interpretação teatral ou cinematográfica, etc.
Amthal (parábolas,
metáforas, provérbios etc.) são realidades humanas universais, mas têm especial
força na comunicação oriental: se - falando tipicamente - o pensamento grego e
ocidental "tem sua praia" no logos, na argumentação lógica; o mathal - sempre
falando em tipos - é "a cara" do Oriente. Cristo não está preocupado em
elaborações conceituais nem empreende requintados debates lógicos: dEle, o
evangelho diz - Mt 13, 34-35 - que só falava em mashalim, parábolas:
"E sem
parábolas nada lhes falava, para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta:
'Abrirei a boca em parábolas; proclamarei coisas ocultas desde a fundação do
mundo'".
Perguntado pelo "próximo", Cristo não procura estabelecer
aristotelicamente uma conceituação teórica ("A diz-se próximo de B se, e somente
se, tal e tal...), mas simplesmente conta a parábola do bom
samaritano.
Poesia
Quando o poeta Omar Khayyam,
em suas Rubayat, transbordantes de pensamento metafórico, resolve falar de "modo
direto" sobre a condição humana e chega a advertir que não vai se valer de
amthal..., imediatamente tem uma recaída:
Para falar claramente e sem
metáforas (!?)
Somos as peças do xadrez jogado pelo Céu
Que brinca conosco
no tabuleiro do ser
E depois... voltamos, um por um, à bolsa do
Nada.
Para efeitos deste estudo, retenhamos de mathal o significado
central de metáfora. Os dois exemplos anteriores já insinuam duas paradoxais
funções da metáfora: velar e revelar; esconder e mostrar: em Khayyam, ocultar;
em Cristo, mostrar. Mas, mesmo revelando, as parábolas de Cristo servem para
ocultar e Ele mesmo diz:
"Por isto, Eu falo em parábolas: porque eles,
olhando, não veem, e ouvindo, não compreendem!", cumprindo assim a profecia de
Isaías: 'Ouvireis e não compreendereis'" (Mt 13,
13).
Amthal
Incrivelmente, a paradoxal dualidade
da metáfora expressa-se em duas metáteses de M-th-l: Th-L-M (fazer uma
abertura), brecha que permite ver e L-Th-M (velar, encobrir). Como o turbante
(al-muLaThaM) que encobre o rosto dos militantes.
Evidentemente, no
ensino e em toda comunicação valemo-nos constantemente de metáforas (e
comparações etc.): elas permitem a compreensão rápida e vigorosa de uma situação
abstrata: a dificuldade, digamos, de uma empresa em crise é trazida para o
concreto pela metáfora da sinuca ou da sinuca de bico; ou pela genial metáfora
tupi "pinda-íba" (anzol-estragado). É o lado revelador da metáfora, que, como
dissemos, também pode esconder.
Essa dialética esconde-revela torna-se
particularmente importante - no Alcorão, na Bíblia e na mentalidade medieval -
quando referida a nosso discurso sobre Deus: nossa linguagem humana, formada no
sensível, derrapa e é incapaz de falar com propriedade sobre o divino. Daí a
necessidade de metáforas.
Quando Tomás de Aquino discute a conveniência
de que Deus se revele por metáforas e comparações na Sagrada Escritura (I, 1,
9), após lembrar que o ensino por comparações sensíveis é o mais adequado à
natureza do homem (espírito intrinsecamente unido à matéria), enfrenta a objeção
de que ocultam a verdade. E responde:
"O raio da divina revelação não se
extingue por ser comparado ao sensível em que se envolve, mas permanece em sua
verdade: cabendo às mentes que são destinatárias da revelação ascender a seu
sentido superior..."
E diz que, mesmo para aqueles a quem as parábolas
permaneciam veladas - porque não eram dignos ou capazes de apreendê-las em seu
sentido profundo -, "melhor lhes era receber esses ensinamentos velados, do que
ficar totalmente privados deles" (III, 42, 3).
Também no Alcorão é muito
claro o duplo caráter das metáforas: revelar / esconder. Allah vale-se de
metáforas para esclarecer os fiéis, por exemplo em 30, 028: "Allah propõe
metaforicamente: E assim explicamos detalhadamente os sinais aos que
raciocinam"; mas também para obscurecer e confundir os que insistem em ficar
fora do caminho! Como, por exemplo em 74, 031:
"Para que os infiéis
digam: 'Que é o que Allah pretende ao propor metaforicamente?'"
E em 2,
26 encontramos:
"Allah não se envergonha de falar metaforicamente, mesmo que
se trate de um mosquito. Os que creem sabem que é a verdade que vem de seu
Senhor. Já os que não creem, dizem: 'Que é o que Allah está propondo
metaforicamente?'. Assim, Ele extravia a muitos e também encaminha a muitos. Mas
não extravia senão aos perversos."
Alegoria
Para o Alcorão, para a Bíblia e a
mentalidade religiosa antiga e medieval, as coisas do mundo são metáforas,
sinais de Deus: as coisas não são só o que são; são, antes de tudo, pistas para
compreensão da fala de Deus: como enigmas a serem decifrados. O mundo é visto
como alegoria.
Explicando o que é alegoria, diz Agostinho:
"Chama-se
alegoria a palavra que soa de um modo, mas acaba significando outra coisa
diferente. Por exemplo, Cristo é chamado cordeiro (Jo 1,29); acaso é Ele animal?
Cristo é chamado leão (Apo 5,5); acaso é Ele fera? É chamado pedra (I Cor 10,4);
acaso é Ele dureza? É chamado monte (Dan 2,35); acaso é Ele elevação de terra?
E, assim, há muitas palavras que soam de um modo, mas são entendidas de outro e
a isto se chama alegoria" (En. 103, 13).
Nesse quadro, criadas pela
Inteligência do Logos, as coisas do mundo trazem uma mensagem cifrada sobre Deus
e as verdades eternas, como se diz nos famosos versos - PL 210:579 - atribuídos
a Alain de Lille:
Omnis mundi creatura (Do mundo, toda a
criatura)
Quasi liber et pictura (Como livro e pintura)
Nobis est
speculum. (É um espelho para nós)
Nostrae vitae, nostrae mortis (De nossa
vida e morte)
Nostrae status, nostrae sortis (De nosso estado e
destino)
Fidele signaculum. (Sinal confiável)
Compreendemos assim uma
das razões para o imenso cultivo de enigmas e adivinhas na Idade Média: são como
que um modelo da fé e do conhecimento da verdade religiosa (cf. http://www.hottopos.com/notand18/enigmas.pdf).
Referindo-se às verdades de Deus, São Paulo as equipara a enigmas. O Apóstolo
diz na I Epístola aos Coríntios (13, 12) que hoje vemos confusamente como em um
enigma, mas que um dia as veremos com clareza: tal como acontece, quando se
resolve uma adivinha.
Assim, metáforas (& cia.) brincam de
esconde-esconde (ou esconde-revela) com nossa compreensão do mundo, do homem e
de Deus. E o próprio Jesus, como Verbo Encarnado, é Ele mesmo, um mathal: muitos
não viam nEle senão um mero homem, o "filho do carpinteiro".
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