Voltar à página principal

O Espírito da Liturgia
(notas informais de palestra no PUR, 23-6-02)

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br
Poema em linha recta de Fernando Pessoa

 

Anima forma corporis: o espírito da liturgia

Liturgia, diz o #1069 (# indica ponto do Catecismo) - significa etimologicamente "ação pública" "serviço em favor do povo". E no Novo Testamento (#1070) é não só a celebração do culto divino, mas também o anúncio do Evangelho e o ato de caridade: em todos estes casos se serve a Deus e ao povo. A Igreja é servidora, à imagem de seu Senhor, o único Liturgo (Hbr8,2 e 6), participa de seu sacerdócio. Liturgia é o exercício da função sacerdotal de Cristo.

A partir do #1113, o Catecismo começa a falar dos Sacramentos: Os sacramentos são sinais especiais porque realizam aquilo que significam: conferem a graça que significam (Conc. Trento) (#1127). São eficazes porque neles é o próprio Cristo Quem opera: é Ele quem batiza, etc.(#1127). Este é o sentido da clássica fórmula: os sacramentos atuam ex opere operato (pelo próprio fato de que a ação se realize), isto em virtude da obra salvífica de Cristo, realizada de uma vez por todas.
Na base da exposição que faremos nesta palestra, uma exposição sobre o alcance antropológico dos sinais, estão os #1145 e #1146, absolutamente centrais e decisivos para o tema:

1145 Uma celebração sacramental é tecida de sinais e de símbolos. Segundo a pedagogia divina da salvação, o significado dos sinais e símbolos deita raízes na obra da criação e na cultura humana...

1146 Na vida humana, sinais e símbolos ocupam importante lugar. Sendo o homem um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual, exprime e percebe as realidades espirituais através de sinais e de símbolos materiais. Como ser social, o homem precisa de sinais e de símbolos para comunicar-se com os outros, através da linguagem, de gestos, de ações. Vale o mesmo para a sua relação com Deus.

Neste contexto, dizíamos, situa-se a reflexão que faremos hoje.
Como diz o teólogo alemão Romano Guardini, mestre de importantes teólogos como Josef Pieper e Josef Ratzinger, toda a liturgia nada mais é do que levar às últimas conseqüências a tese antropológica (que é ao mesmo tempo uma verdade de fé para o católico!!): anima forma corporis, a alma é forma do corpo, ou, como diz o #1146: "Sendo o homem um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual..."

A Igreja, ao formular essa sua doutrina, vale-se do conceito aristotélico de forma, que é ainda mais forte do que falar da mera composição alma/corpo ou espírito/matéria; dizer que a alma é forma, é dizer que há, no homem, uma intrínseca união entre espírito e matéria: que nele não há nada de espiritual que não seja acompanhado, que não esteja acoplado, que não esteja em íntima estrutura de união interna com o outro co-princípio, à matéria: a alma é a estrutura espiritual íntima da matéria.

Esse "materialismo" cristão  é tipicamente católico: contra os materialismos que excluem o espírito, e contra qualquer "espiritualismo" descarnado a Igreja responde com a mais equilibrada concepção de homem: anima forma corporis, a alma é forma do corpo.

Só assim, dizíamos, se compreende a liturgia e, aliás, todo o catolicismo. (Com tudo isto se diz, que o catolicismo pressupõe uma concepção antropológica, uma concepção filosófica de homem...)

A Igreja "aposta" nessa incrível articulação matéria/espírito que se dá no ser humano: e a tradução mais notória dessa articulação é precisamente a liturgia.
 
 

A indução no espírito através do corpo

A articulação espírito-corpo tem sido muito enfatizada ultimamente nessa conhecida série de fenômenos psicossomáticos: é bem sabido, hoje (e, para um S. Tomás de Aquino no século XIII, não era já nenhuma novidade!!) que disfunções orgânicas como gastrite, úlcera etc. e síndromes como o do stress, tem, pelo menos, um componente de psyché. Tanto para o bem como para o mal: corpo e alma estão em interação dialética.

A Igreja sabe, desde sempre, que a recíproca também é verdadeira: o homem - não sendo puro espírito - atinge o espiritual a partir do material: daí a extraordinária importância que a liturgia dá aos signos, aos gestos, às cores, aos sons, à postura, enfim, ao sensível em geral. É, no fundo, a sabedoria popular expressa no provérbio: "Quem canta seus males espanta".

É bem este o sentido da aguda sentença de Pascal:

"É preciso que o exterior se una ao interior para obter de Deus: isto é, que nos ponhamos de joelhos, que oremos com os lábios etc. (...)  Esperar ajuda somente desse exterior é ser supersticioso; não querer juntá-lo ao interior é ser soberbo" (Pensées, 250).

Daí a falácia do espontaneísmo dos dias de hoje incapaz de compreender a sabedoria expressa nessa sentença de Guimarães Rosa:
"Tudo se finge primeiro; germina autêntico é só depois" (Tutaméia, p. 166).

Espontaneamente não brotam em nós as virtudes nem a relação com Deus...; na verdade, a mal-entendida espontaneidade é um dos tantos disfarces de um desenfreado egoísmo.

A Igreja educa-nos pelos sinais, pelo corporal, pelo exterior que induz o interior... Certamente, nisso, como em tudo, pode haver um desvirtuamento (no caso, o formalismo de formas vazias); mas a possibilidade do desvirtuamento não invalida o sadio uso normal, avalizado pelo:

#1145 Segundo a pedagogia divina da salvação, o significado dos sinais e símbolos deita raízes na obra da criação e na cultura humana...

Nesse sentido, vejamos o que acontece nos dois primeiros minutos da Missa.
 
 

Um caso concreto: os dois primeiros minutos da Missa
(Ao longo deste tópico, seguimos o estudo de R. Guardini Von heiligen Zeichen)

O homem de hoje - que só tem sensibilidade para o funcional-prático ou para o símbolo como sinal de status -, precisa re-educar-se para essa articulação, essa "jogada ensaiada" corpo/alma, sensível/espiritual com que trabalha a liturgia da Igreja.

O sino. Os Degraus. A Porta. As velas. A Água Benta.

Uma fábrica de tecidos chama seus funcionários para o trabalho ferindo seus ouvidos com um apito; uma escola avisa do início da aula com sirene; a Igreja convoca os fiéis para o Santo Sacrifício da Missa com o sino. O som do sino, ou melhor, a voz do sino não é um mero ruído sonoro convencional; se tudo corre bem (se, apesar de tudo, nos deixamos atingir por ela) a voz do sino produz na alma um efeito. O som do sino - sobretudo no campo - penetra em toda a realidade e manifesta o caráter de criação dos vales, dos montes, dos rios etc. como que dizendo ao homem: "Pára! Repara na grandeza do mundo e vê como é evidente que ele é obra de Deus".

O sino traz um chamado vivo e tem uma personalidade. Os antigos davam nomes aos sinos (às vezes, até apelidos familiares como Big Ben) e gravavam neles inscrições como Vivos voco, Mortos plango, fulgura frango - Os vivos, convoco; os mortos, choro; os raios, quebro (até o poder de pára-raios era, antigamente, atribuído ao sino). E, de há séculos, está inscrito no profético "São Pedro", o sino da multicentenária Catedral de Colônia: Ruf ich zur Einigkeit (Eu convoco - os alemães - à unidade).

Os degraus

Se tudo corre bem,a Igreja à qual o fiel foi chamado pelo sino tem degraus. Uma agência Itaú ou Bradesco são funcionais, não têm degraus; a igreja tem degraus (pense-se por exemplo no caso extremo da Igreja do Calvário na Henrique Schaumann com a Cardeal...). E é que o degrau, enquanto elevação física, prepara a elevação da alma: ao lugar sagrado, à casa de Deus não "se vai"; "se sobe (Is 38, 22; etc. etc. ): pois o templo não é um vestiário nem um banco (exceção feita à Catedral de Brasília, em que, para entrar, se desce!!?).

Ao altar (I Sam 2,28; Eclo 50,11 etc. etc. ) e mesmo a Jerusalém (I Re 12,28; II Re 12,18 etc. etc.) não se vai, se sobe; e ainda hoje, em hebraico, voltar ou ir - quando se trata do judeu voltar, ir ou emigrar para Israel - diz-se 'aliá, subir.

A cada degrau - se tudo corre bem, se nos abrimos à pedagogia da Igreja-, eleva-se a alma para o alto e, portanto para Deus que, quoad nos (isto é, para efeitos de nós, os homens) está nas alturas ("Glória a Deus nas alturas" dizem os anjos na noite de Natal) e para o Altíssimo.

A porta

Depois há uma porta, também ela diz algo. A porta da igreja não é funcional ela fala: marca a ruptura (templo etimologicamente guarda relação com corte, ruptura...) entre o espaço profano (o barulho da rua e do mercado) e o sagrado... Abrir a porta do templo ajuda a abrir a alma para adentrar o sagrado (diferente do efeito espiritual de cruzar a porta giratória do Unibanco, ou cruzar a porta de uma danceteria...).

As velas

Já dentro da igreja, as velas. Também elas, ao menos nestas alturas do século XX, não têm sua razão de ser no funcional, mas nesta indução sensível - espiritual. É o melhor símbolo (luz viva e calor) da alma humana em seu vigilante aspirar a união com Deus. A vista que vê a vela recolhe a sua luz e faz-se um com ela (quando a prática eclesiástica pseudo-aggiornata começou a ter vergonha das velas e das procissões, a Anistia Internacional e o Fan-Club de Elvis Presley apossaram-se deste precioso símbolo do estado de vigília do espírito humano).

A água. O sinal da cruz. A genuflexão

Também o sacramental da água benta. A água que, em sua simplicidade, parece existir só para despretensiosamente servir: para saciar a sede, para purificar, para refrescar... a água, que a benção purificou de seu terrível poder tenebroso e destruidor (quando jorra e transborda etc.), deixando-a apenas como "a nossa casta irmã, a água", como dizia S. Francisco.

E, então, quando o cristão persigna-se, faz o sinal da cruz: não um sinal da cruz acanhado, furtivo, a la derobée; mas uma autêntica cruz lenta e ampla, da testa ao peito, de um ombro a outro e se sente totalmente envolvido pela Cruz redentora de Cristo que penetra seu corpo e sua alma...

E faz, em seguida a genuflexão: não uma genuflexão acanhada, não furtivamente... Se, na próxima vez que fizermos uma genuflexão ante o Ssmo., a fizermos assim: lenta, encostando o joelho no chão (e deixando-o um segundo que seja no chão) e acompanharmos este gesto de um pensamento de adoração, verificaremos com clareza o efeito espiritual imediato e toda a sabedoria da Igreja ao propor-nos estes gestos milenarmente destilados. Porque nos situa adequadamente diante de Deus: que faz o soberbo? Olha "de cima para baixo" e o fariseu da parábola, de pé, dizia: "Graças Te dou porque não sou como os outros homens...".

Nesse mesmo sentido opera o gesto multimilenar de bater no peito (não um bater no peito acanhado, não furtivamente...), que, espiritualmente, significa/produz: Oh! Acorda!  Cai na real!  Que eu saia desse mundo fictício da minha habitual soberba onde eu sou mais eu, não: Eu sou mais Deus!. No começo do séc. V, S. Agostinho ("Sermão 112 A, Sobre o Filho Pródigo" in LJL Cultura e Educação na Idade Média, São Paulo, Martins Fontes, 1999)  ensinava essa pedagogia dos gestos: "O que a mão faz exteriormente ao golpear o peito, a consciência o faz interiormente: golpeia-se nos pensamentos".
 
 
 

No caso dos sacramentos, já não se trata de acoplamentos corpóreo-espirituais que, afinal, ocorrem - para o bem ou para o mal, em maior ou menor grau, de modo mais ou menos consciente - em qualquer realidade humana (seja uma reunião de escoteiros ou num show de rock), mas de sinais eficazes instituídos pelo próprio Cristo (os sacramentos são sinais especiais porque realizam aquilo que significam: conferem a graça que significam (Conc. Trento) (#1127). São eficazes porque neles é o próprio Cristo Quem opera: é Ele quem batiza, etc.(#1127). Este é o sentido da clássica fórmula que diz que os sacramentos atuam ex opere operato (pelo próprio fato de que a ação se realize), isto em virtude da obra salvífica de Cristo, realizada de uma vez por todas).
 
 
 

Voltar à página principal
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

   #