[an error occurred while processing this directive] A linguagem da enrolação | Revista Língua Portuguesa
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A linguagem da enrolação
Não é preciso ser corrupto, basta escancarar o discurso vazio da política para um político cair em desgraça

Jean Lauand

Justiça aceitou Tiririca como alfabetizado: campanha eleitoral baseada na crise de linguagem dos políticos

Aqueda de Minoru Yanagida, ministro da Justiça do Japão, em 22 de novembro, e o carnaval provocado pela campanha eleitoral do palhaço Tiririca no Brasil trouxeram sugestivas indicações sobre a linguagem. Yanagida não caiu por corrupção, escândalos, medidas impopulares ou erros técnicos, mas por sua sinceridade ("Trop honnête pour être ministre", foi a manchete do Le Monde) ao declarar como lidava com os parlamentares: "Meu trabalho é fácil. Basta lembrar apenas de dizer duas frases durante as sessões do Parlamento: 'Não vou comentar casos específicos' e 'Estamos analisando o assunto de acordo com a lei e as evidências'".

Os deputados, furiosos, exigiram sua cabeça e ele, no ritual nipônico de desculpas, alegou que tinha falado "meio de brincadeira". De qualquer modo, ato imperdoável: não por se valer de técnicas de linguagem comuns a todos os políticos, mas por entregar publicamente o código da classe.

O código, no caso, é o recurso ao genérico, ao neutro. Método sutil de se resguardar e com a vantagem adicional de não precisar mentir descaradamente. Por isso, é bom recordar aspectos desse expediente de falar sem dizer.

Embora gramaticalmente inexistente no português - e em tantas línguas modernas que perderam esse poderoso recurso do latim -, a necessidade do neutro é tão forte que procuramos recuperá-lo em construções alternativas. Utrum é a forma latina que exige a definição de um de dois; daí ne-utrum ser: nenhum dos dois, neutrum! Neutro que pode não ser nenhum dos dois, porque é ambos: confundente, indeterminado.

Indeterminações
Engana-se quem pensa que o neutro seja só ou principalmente um modo de designar o que não é macho ou fêmea. Essa primeira aproximação do neutro está longe de esgotar-lhe o significado. Tipicamente, o neutro puxa para a abstração, a totalidade, a indeterminação. Masculino e feminino opõem-se ao neutro enquanto determinação; mais do que quanto a "gênero" ou sexo. Tomás de Aquino - cujo pensamento explora as ricas possibilidades do neutro - no-lo explica:

"O gênero neutro é informe e indistinto; enquanto o masculino (e o feminino) é formado e distinto. E, assim, o neutro permite adequadamente significar a essência comum, enquanto o masculino e o feminino apontam para um sujeito determinado dentro da natureza comum" (Suma Teológica I, 31, 2 ad 4).

Fomos apresentados ao neutro desde a infância: ao final dos violentíssimos jogos de futebol de várzea, a fórmula do time adversário para despedir-se era: "Desculpe alguma coisa" (lançando os agravos reais no limbo do neutro, como se não tivesse havido concretíssimos pontapés desleais, caneladas etc.).

Uma indeterminação que rege diversos setores da existência, até instituições. O neutro, a neutralidade do neutro, faz parte de nossa cultura: o que, em outros países dá-se como afirmação (ou negação) veemente, aqui perde os contornos nítidos, adquire forma genérica! Se não reparamos nisso, é porque ele nos é tão evidente que chega a ser conatural. Pensemos nessa - incrível, para estrangeiros! - instituição tupiniquim: o ponto facultativo. Como dizia Stanislaw Ponte Preta: "Vai explicar pro inglês o que é um ponto facultativo?".

- É feriado?
- Não, Mr. Brown, é ponto facultativo!!
- Então, haverá trabalho normal?
- Não, Mr. Brown, claro que não: é ponto facultativo!!
Não é feriado, e não deixa de ser... É neutro!

Atinge o tempo. Para indicar que uma ação é maximamente imediata, o brasileiro diz o vago: "na hora" (pastéis fritos na hora; consertam-se sapatos na hora etc.); já em Portugal a faixa de indeterminação é bem mais estreita; é "ao minuto" (e nos EUA "at the moment"!). O pior é que o neutro (indevido) está tão arraigado que a opção por ele parece natural e legítima. E ai de quem se insurgir. A egoísta instalação do falante no neutro é-lhe cômoda, mas exasperadora para o interlocutor. O namorado pontual estaciona numa vaga precária, porta de garagem do prédio, faz um gesto para o irritado porteiro de que não vai demorar, liga para a amada e ouve: "Já estou descendo...". Minutos depois, volta a ligar e ouve: "Calma! Estou só acabando a maquiagem e em um minutinho eu desço...".

O ex-ministro japonês Yanagida, que perdeu o cargo por ferir   o uso da voz neutra, típica da ars enrolandi política
Neutralidades

"Estou descendo", "um minutinho" pode significar, no caso, qualquer intervalo de tempo até, digamos, uma hora de relógio... O mesmo acontece com o "estou chegando".Quantas brigas de casais têm suas raizes nas diferenças de determinação dos cônjuges: a neutra resposta de um ao celular ("Calma, estou chegando!") bem poderia - queixa-se o outro - ser substituída por algo determinado, como "Já estou na esquina da padaria" ou "No máximo, em três minutos chego aí", etc.

Indeterminação do espaço (formas carregadas de subjetividade: "é pertinho", "logo ali"); indeterminação das pessoas, diluídas em neutros (é menos comprometedor o neutro "a arbitragem" do que o concreto "juiz"; "ô, chefia", "ô, malandragem", em vez das pessoas concretas do chefe ou do amigo malandro...) etc. O neutro indevido, egoísta, é legitimado pelos hábitos de indeterminação do brasileiro. É, como diz Ortega, vigencia entre nós. E insistir por resposta mais determinada é quase ofensivo: "Nossa! Como está estressado, já falei que estou pertinho e estou chegando..." Claro que os políticos são campeões do uso do neutro e fogem do concreto. Esta é sua arma secreta e por isso fritaram o japonês...

Por isso, os debates entre candidatos tornaram-se enfadonhos. Refugia-se no neutro o político que ignora a a pergunta concreta: "O senhor é contra ou a favor da volta da CPMF?". "Veja bem. A captação de recursos para a saúde... blablablá... e fiz mais pela saúde do que... blablablá... não se trata de onerar a carga tributária... blablablá..." não diz sim nem não até que soa o gongo: "Candidato, seu tempo está esgotado".

De vez em quando alguém se atreve a romper com a palhaçada e falar claro. Como no clássico italiano Gli Onorevoli (1963) do inesquecível Totó. No filme, Totó é Antonio La Trippa, principiante lançado candidato pelo Partito Nazionale per la Restaurazione. Embora instruído pela coordenação da campanha, ao começar o comício tem um surto de sinceridade: "Se dissesse que vou fazer estradas hospitais etc., vocês acreditariam em mim? - Siiiiim. Se dissesse que estes homens [que estão com ele no palanque] são pessoas honradas, dignas do título parlamentar [os congressistas são chamados de onorevole, honorável] e que buscam seus votos para o bem da comunidade, vocês acreditariam em mim? - Siiiiim. Então vocês são uns babacas, porque, assim que eleitos, eu e esses senhores vamos $#@%$ vocês, porque somos uns #$**@#. Não votem em mim!".

Mais ou menos como o Tiririca, que em dezembro foi considerado capacitado (alfabetizado) pela Justiça para assumir o cargo de deputado federal. Na propaganda televisiva, ele saiu do neutro e desceu ao "caso específico" ao descortinar o código linguístico que rege os políticos: "Quero ser deputado para ajudá os necessitado, inclusive a minha família"; "Você sabe o que faz um deputado? Também não sei, mas vota em mim que te conto".

O humorista italiano Totó no classico Gli Onorevoli: paródia às enrolações de campanha e descontrução do discurso padrão da política
Tucanês
Outro que não sabia de neutro e não ficava "analisando o assunto de acordo com a lei e as evidências" era Adilson "Maguila" Rodrigues. "E aí, Maguila, veio prestar sua homenagem..." "Olha, eu nem tô sabendo de homenagem, falaram que tinha churrasco de graça, eu vim..."

Outra forma de esquivar-se são os eufemismos ou, segundo o humorista José Simão, o "tucanês". São mais de 2 mil casos registrados (tucanês, tucanaram, anti-tucanês etc.) em 12 anos do vocábulo! Um dos primeiros foi quando um tucano falou que o Nordeste "sofre de desconforto hídrico". Ou as reservas mentais: assentir à literalidade de uma afirmação, mas violar-lhe o espírito, como o político que diz: "Sou contra a CPMF!" (enquanto pensa com seus botões: "Mas estou promovendo a CSS, Contribuição Social para a Saúde, novo nome da CPMF). A coisa chegou até o Edward, de Crepúsculo - que pela ética dos vampirinhos não pode quebrar o juramento de não cruzar a porta da casa de Bella. Lá pelas tantas, ele se encontra com a moça no quarto dela e diz: "Não quebrei o juramento: entrei pela janela!".

No meio de tanta enrolação, o único que teve a coragem de abrir o jogo cai. O ex-ministro japonês merece um desagravo e, quem sabe, até a instituição de um "prêmio Yanagida" para o político que mais se distanciar da ars enrolandi.

Jean Lauand é professor titular da Faculdade de Educação da USP
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