[an error occurred while processing this directive] A língua na sala de estar | Revista Língua Portuguesa
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A língua na sala de estar
Diferença entre os verbos "ser" e "estar" é mais profunda do que se imagina

Jean Lauand e Sylvio Horta

A estrutura é de pedra, mas pode cair a qualquer momento: noção de um estado passageiro simbolizado nas diferenças entre "ser" e "estar"
Sempre que, em aulas de filosofia, perguntamos aos alunos sobre a diferença entre "ser" e "estar", rápida, indefectível e unanimemente vem a resposta: "estar" indica uma situação temporária ou provisória; "ser", definitiva. E a surpresa dos alunos quando ouvem o contraexemplo de Julián Marías:
"Mas... e o Pai Nosso, que está nos céus, está lá de passagem? Nada mais definitivo do que a instalação divina no Céu. Entre as dezenas de usos de "estar", está o de instalação - a duradoura, permanente ou eterna - que condiciona a vida."

O casamento, por exemplo. Os mais jovens não acreditarão, mas no tempo de seus avós o casamento era duradouro: de iure e de facto. Havia, quando muito, um ou dois "desquitados" no bairro e divórcios só nos filmes americanos (mesmo nos EUA o no fault divorce só foi introduzido em 1970 - na Califórnia - e, formalmente, ainda hoje o estado de Nova York só admite o divorce at fault!).

Mesmo nessa época, na Espanha, onde a dissolução do casamento era impensável, a expressão mais usada foi "estar casado"; enquanto no Brasil, esta formulação sugere um casamento efêmero de algum jogador de futebol ou rainha de bateria... E é que o "estar casado" espanhol não aponta para a duração do enlace, mas para o modo como o casamento afeta a instalação de vida. Não é por acaso que é chamado de estado civil. Estar casado é algo que condiciona e transforma a totalidade da existência: dos horários, rotinas e hábitos até práticas de higiene, reuniões da APM, sogra etc.; o solteiro podia deixar a louça espalhada sem lavar por dias na cozinha, discutir futebol até tarde com os amigos na padaria ou não trocar a roupa de baixo todos os dias... Uma velha piada espanhola, fala de "cair a ficha" da enormidade da mudança de estado de solteiro para casado (jogando com o todo/parte: ha enterado em oposição a ha participado) dois amigos se encontram: "- E aí me inteirei de que você se casou. - Não, você foi participado; quem se inteirou fui eu!".

É interessante nesse sentido a regência inglesa to para o casamento: "married to", usada originalmente apenas para mulheres (algo assim como "maridada para Fulano") e depois com sentido estendido também para homens: o casamento é algo relacional de Fulan para Sicran e uma amarra (casamento é enlace...); a etimologia de husband (segundo o Oxford English Dictionary) é húsbonda: o detentor (bonda) de casa (hús), com o mesmo bond de laço, que sugere o marido como que amarrado à casa...

Ser e estar
O mesmo caso de instalação de vida, dá-se com a guerra; a guerra é algo em que se está, que condiciona fortemente o modo de viver quotidiano. Ou as enchentes em São Paulo, que tanto interferem em nossas vidas e produzem estados: de atenção, de alerta, de emergência ou de calamidade.

Quando as crianças (ou adultos...) decidem dar o dedinho e "estar de mal", instalam-se num relacionamento especial: não trocam figurinhas, não brincam juntas, não se falam... porque estão de mal.

Um outro uso do "estar" é na encantadora expressão "sala de estar", infelizmente em declínio quanto ao uso consciente, por conta do fato de o próprio "estar" ser cada vez mais raro. A língua inglesa, que não distingue entre ser e estar, chama esse cômodo de "living room"; é adequado, mas durante a guerra "living room" acabou servindo também para traduzir o Lebensraum de Hitler.

O tempo da vida moderna, sobretudo o tempo paulistano, tende a excluir o estar: já o design dos restaurantes de fast-food é um convite a dissociar o comer do estar, a arquitetura e a decoração parecem dizer: ingira o alimento e caia fora logo. O mesmo se dá com a crescente presença de ruidosa música nos restaurantes, que impedem o conversar; deixando à vontade aqueles que, afinal, temem uma instalação menos superficial no amor ou na amizade.

Amores instalados
As expressões relacionadas ao amor indicam esse caráter de instalação: to fall in love with no inglês, enamorar-se no espanhol e no português. Há também o nosso "namorar com", que, finalmente, consta dos dicionários. Essa intuição do lugar, não necessariamente espacial, mas vital já aparece em Santo Agostinho ao falar do amor como peso, que o levava ao seu lugar, isto é, a se instalar em si mesmo:

"Nosso descanso, nosso lugar (Requies nostra, locus noster). O corpo, por seu peso, tende a seu lugar. O peso não arrasta só para baixo, mas para o seu lugar: o fogo tende para cima; a pedra, para baixo. O peso move, dirigindo a seu lugar. O óleo derramado na água fica sobre ela; a água derramada no óleo se situa por baixo: cada um movido por seu peso tende a seu lugar. O que está fora de lugar está inquieto; dirige-se a seu lugar e aquieta-se... O meu peso é o meu amor (Pondus meum, amor meus); aonde quer que eu vá, por ele sou levado" (Confissões XIII,9).

"Estar" está associado ao vagar (como na deliciosa palavra nossa de-vagar), à holgura (Julián Marías), à "ausência de tensão de futuro" (Von Hildebrand), àquele "o tempo parou para eu olhar" de Caetano; dá-se no caminhar descontraído, no passear, no conversar..., na sala de estar. Enfim, no modo tradicionalmente ibérico (e se quisermos exponenciar: baiano) de vivenciar o tempo. Esse estar se projeta na maravilhosa gíria brasileira: curtir. "Curtir" é saborear com calma, desfrutar devagar, como o caldo de curtição beneficia o couro. Um exemplo de articulação dos dois sentidos de "estar" que estamos considerando (instalação e curtição) dá-se na sentença: "Agora que eu estou aposentado, estou curtindo meus netos". 

Novamente encontramos na instalação amorosa a ideia do eterno no momento, do fluir que tem duração. Na letra da canção "Quando eu fecho os olhos" (Chico César / Carlos Rennó) encontramos:

"E aí você surgiu na minha frente/ E eu vi o espaço e o tempo em suspensão
Senti no ar a força diferente/ De um momento eterno desde então
E aqui dentro de mim você demora/ Já tornou-se parte mesmo do meu ser".

"Ser" que no fundo é "estar", assentar-se: estar sentado...

Jean Lauand é professor titular da FE-USP e Sylvio Horta é professor doutor da FFLCH-USP

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