Trabalhos: Patrimónioin "Rebeldia", nº 3/4, Grémio Rebeldia, Lisboa, Janeiro 1989Património não são apenas casas antigas ou objectos pré-históricos. A defesa do património de um estado ou de uma civilização inclui igualmente o que se diz, o que se toca, o que se canta e o que se representa. A preservação da língua, da música, do teatro e do cinema devem merecer tanto a preocupação dos povos como os monumentos, as cidades e as aldeias. A. H. de Oliveira Marques
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Já se atende um pouco a isto no que respeita ao chamado folclore. Protegem-se
e divulgam-se, visando a sua autenticidade e a sua restituição
aos modelos originais, os cânticos populares e as peças do teatro de cordel.
Publicam-se edições críticas de textos, com o objectivo de encontrar a versão primitiva
de um autor e de arredar a ganga de alterações que essa versão
foi sofrendo ao longo dos tempos. Simultaneamente, porém, cometem-se verdadeiros assassínios que não condizem com a defesa patrimonial, tantas vezes alardeada pela intelligentzia e pelos governantes. Veja-se, por exemplo, o que se passa com a música, sobretudo com a música ligeira. Não há qualquer protecção para os chamados "arranjos" musicais, que incidem, quer sobre os acompanhamentos, quer - mais raramente - sorbe a própria canção dos anos Cinquenta ou Quarenta na sua versão original. E não nos referimos, evidentemente, aos intérpretes originais, os primeiros a lançar a canção. É claro que são lícitas e necessárias sucessivas interpretações, tão variáveis quanto os seus executores. Referimo-nos às alterações feitas expressamente nas partituras por músicos modernos, que acham que a canção fica "melhor" ou "mais actual" com os arranjos por eles feitos. É frequente, a propósito de tais arranjos, o comentário "assim ficou muito melhor; como era, já não se podia ouvir". Toda a gente acha isto natural. Raras pessoas se demoram um pouco a pensar que tais modificações violam a autenticidade e a originalidade da canção e são tão ilícitas como as alterações nos monumentos do passado que acerbamente condenam. Fazer um "arranjo" numa canção de Cole Porter ou de Alves Coelho corresponde a transformar um altar gótico num altar renascença ou a abrir uma porta na parede do monumento que a não tinha.
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A violação tem sido ultimamente levada a extremos inqualificáveis
nas chamadas "adaptações" das óperas oitocentistas e
novecentistas. Aqui, não são tanto as partituras a sofrer atropelos - que também os sofrem -
mas sobretudo a encenação e a letra. Começou-se com as
óperas de Wagner. Os "deuses" e os "heróis" do Olimpo germânico
passaram a surgir com trajes de várias épocas, a deusa X com saia e
tournure à 1880, o herói Y com gabardine à
1940. Nunca se percebeu o alcance de tal palhaçada, que só ridicularizava
figuras e símbolos que Wagner pretendia exaltar. Depois, foi-se mais
longe, transportando-se para o passado próximo - não só
no vestuário, note-se, mas também no próprio enredo -
óperas de Verdi e de Puccini, com o Rigoletto, convertido
numa história da Mafia, e a Tosca, convertida numa história
da resistência italiana ao Nazi-Fascismo. Da palhaçada passou-se
para o assassinato puro e simples. A catedral gótica recobriu-se
de talha barroca.
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O último atentado ao Património que conhecemos deu-se aqui em
Portugal, com a reposição do Auto do Fidalgo Aprendiz
de D. Francisco Manuel de Melo. Não só a divertida comédia de
Seicentos passou a revista do Parque Mayer (sem qualque desprimor para o
género "revista"), mas também o texto foi vergonhosamente
"arranjado", aditando-lhe versos de gosto duvidoso e por completo desfasados
do tema e da época. É claro que o público, ignorante
e patego, riu a aplaudiu a "adaptação" ao seu tempo. Também
o público que enchia as igrejas do século XVII aplaudiu os
enxertos feitos nos templos góticos e renascentistas. Nihil novum sub sole. Agora pergunte-se: queremos ou não queremos preservar o Património? Se queremos, olhemos a sério para todo esse património e defendamos a música e o teatro como defendemos a arquitectura e a decoração. Se não queremos... então deixemos os padres da província "adaptar" as suas igrejas ao nosso tempo e vamos ao Teatro Nacional aplaudir o Raúl Solnado, que fazia até um papelão...
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