Trabalhos: José Anastácio da Cunha

in "Rebeldia", nº 1, Grémio Rebeldia, Lisboa, Fevereiro 1988

Na matemática, o seu génio inovador salientou-se notavelmente, devendo hoje ser colocado "entre os eminentes predecessores da reforma do cálculo infinitesimal , realizada pouco após a sua morte prematura por Bolzano, Gauss, Cauchy, Abel e outros geómetras do século XIX" (A. P. Youschkevitch, 1973).

A paixão que José Anastácio da Cunha desenvolveu por uma jovem de nome Margarida levou-o a revolucionar a poesia portuguesa:
"Nunca em portugal, antes de José Anastácio da Cunha, uma paiixão havia inspirado versos de tão febril veemência! E depois, foi preciso esperar pelo Garrett das
Folhas Caídas, para se lhe encontrar par" (Hernâni Cidade, 1930).

João Pedro Ferro

Comemorou-se o ano passado o bicentenário da morte de José Anastácio da Cunha (Lisboa, 11.5.1744 - Lisboa, 1.1.1787). Poeta e matemático de genial invento, é considerado pela sua poesia, trespassada de um sensualismo até então inédito, como um dos precursores do romantismo em Portugal. É, no entanto, a sua obra matemática, nomeadamente os seus Principios Mathematicos (Lisboa, 1790), que suscita a maior atenção por parte da comunidade científica e histórica, tanto nacional como internacional. A par de extremamente inovador e rigoroso, admite-se hoje que se tenha antecipado a Cauchy na descoberta da fórmula conhecida pelo nome de Cauchy-Bolzano.

Filho do conceituado pintor Lourenço da Cunha e de Jacinta Inês, efectuou os seus estudos médios na Casa das Necessidades da Congregação do Oratório de Lisboa, cujo ensino, oposto ao jesuítico, se caracterizava pela liberalidade e pelo humanismo, bem como pela adopção da chamada Filosofia Moderna.

Em Junho de 1764, José Anastácio da Cunha foi nomeado primeiro-tenente no Regimento de Artilharia do Porto, organizado na praça de Valença do Minho. Aí, devido essencialmente ao convívio íntimo com a oficialidade estrangeira (na sua maioria, protestante e livre-pensadora), tomou contacto com ideais que rapidamente passou a professar, como fossem o tolerantismo, o deísmo e o racionalismo, que se tornaram bem patentes na sua obra literária (admitindo abertamente uma ligação com uma jovem) e aí também terá sido iniciado na Maçonaria.

Destacado em Almeida pelos anos de 1767-1769, elaborou uma Carta Fisico-Mathematica (Porto, 1838) que terá causado o escândalo pela contestação às doutrinas instituídas.

Em 1773, no segundo ano da reforma pombalina, José Anastácio da Cunha foi nomeado lente de Geometria da Universidade, mercê das suas qualidades científicas e do espírito inovador que vinha manifestando e ante recomendação expressa do marquês de Pombal. Em Coimbra, também a sua curta passagem se tornou notada. Logo de início, propôs-se ensinar de facto, modificando os métodos de ensino na cadeira que regia, o que provocou protestos da massa conservadora estudantil. Não contente com isso, enquanto os outros "brilhantes" lentes da Faculdade de Matemática se limitavam a seguir traduções de obras estrangeiras, apresentou um compêndio de Geometria de sua lavra, o que causou as inevitáveis invejas.

Entretanto a Inquisição movia-se em torno do foco herético que fora e continuava a ser a praça de Valença do Minho. Depois de uma devassa iniciada em Junho de 1777 - poucos meses após a queda de Pombal - o nome de José Anastácio da Cunha surgiu aos inquisidores que não tardaram a fazê-lo prender em Junho de 1778. Depois de um rápido processo, saíu em auto-de-fé, em Lisboa, em 11 de Outubro de 1778, acusado de "libertino", "deísta" e "indiferentista" e ainda de ser o introdutor de todos estes malefícios em Portugal, corrompendo a mocidade com a sua eloquência. O lente insigne, um dos maiores matemáticos do seu tempo, tornou-se vítima da mediocridade boçal dos inquisidores. Condenado a três anos de reclusão na Congregação do Oratório em Lisboa e a quatro anos de degredo para Évora, apenas cumpriu dois anos de reclusão, sendo posto em liberdade em finais de 1870.

Em 1781, desempregado, aproveitou-o Pina Manique para regente de estudos e professor substituto do curso matemático do Colégio de S. Lucas da Casa Pia de Lisboa, onde venceria apenas um quarto daquilo que ganhara em Coimbra. Depois da humilhação inquisitorial, a humilhação da esmola da sobrevivência. Mas leccionou uns quatro anos, se tanto. A saúde começava a importuná-lo gravemente e os infortúnios de toda uma vida não auspiciavam melhoras. No ano de 1785 teve uma violenta questão científica com José Monteiro da Rocha, ex-colega da Universidade e agora académico. A sua fraca condição social não lhe permitiu levar a melhor perante o todo poderoso Monteiro da Rocha.

Viria a morrer na freguesia de S. Pedro em Alcântara, desiludido e sofredor. Foi sepultado na capela do Senhor Jesus da Boa Sorte, da mesma freguesia, demolida em meados do século XIX.

"Je craîndrais de ne pas mépriser assez la vie. - Some dreams of humanity qui me déchirent plutôt qu'ils me consolent..."

Foram as suas últimas palavras.