De repente, numa destas tardes

Dia lindo, clarinho. O céu, água-marinha. O coração, topázio. Radiotivado. O Sol, um fogão de cabeça para baixo. Fogão elétrico de chapa única. Chiando e brasil-brasil de tão quente. Cruzou o viaduto do Chá. Suando de alagar os sapatos.

Aquele moqueca. Na cabeça, uma tonturinha. Com certeza também os miolos, revestidos de suor.

Caçou sombra. Só uma nesga na calçada. Teve de se encostar rente, na igrejinha, de Santo Antônio. E, de súbito, bateu aquela saudade.

Diabo de vida besta também . Mês entrava mês saía e sempre o corre-corre, core-corre, corre-corre...

Quase nem via os filhos. A não ser nos fins-de- semana. Porque de noite, quando voltava ao lar, já estavam dormindo. Conferia-os em suas três caminhas. E ficava com pena por nenhum estar acordado para um afago, uma brincadeirinha que fosse.Um risinho. Ainda ontem...

O caçula então era uma coisa! Quando estava sentado, bastava o pai dar duas palmadas na própria coxa direita e ele- cataplum-pulava ligeiro para lá, segurando com as duas mãozinhas aquele longo dedo do meio da mão cujos pêlos a criança evitava com incompreendido susto. Sacolejava a perna em imaginosas cavalgadas. E eram risos e mais risos. Alegria enfim. Felicidade. A gente era feliz e não sabia.A boca de ferro de um rádio, no botequim, reproduzia, mastigando, a popular canção.

Daí Marco pensou:- pô, também que burrice viver assim! O burro acaba morrendo mesmo. Quer saber de uma coisa? O serviço, os clientes, os honorários, as horas -marcadas, que vá tudo pra aquele lugar. Hoje não quero saber mais de escritório. Num dia lindão como este, vou é dar uma fugida para casa e passá-lo com a minha gente. Porque a saudade que batera, batera forte mesmo, que nem o solão de meio-dia retinindo no Triângulo.

Embarafustou pela Galeria Prestes Maia abaixo e parou no vale. No ponto de ônibus nenhuma fila. Também, naquele horário! E o Mercedão ali parado, todo lugaroso, resfolegando enfezado, que nem um cachorrão de língua de fora, encalorado, preguiçoso mas inquieto. Só faltava ter uma cauda para espantar moscas. Logo partiu. Trânsito camarada . Como um regato sem pedras, a fluir constante.

No caminho revia as conhecidas paisagens e meditava sobre a bobeira do Bicho-Homem nesta inutilidade sem fim que é a Vida. Escravizado ele próprio, sempre à espera de alguma coisa melhor que sua ambição possa lhe dar. E por[essa ganância, matando sem piedade as coisas ainda me;melhores que tem á mão e para as quais não dá a devida valia. Mais das vezes nem as vislumbra mesmo. Sem rabo. Isso mesmo: burros-sem-rabo aqueles engravatados todos, andando que nem formigas, numa pressa atrás;á do que? Do que afinal, meu Deus do céu?

Devia ter comprado um chocolate ou pelo menos um chiclete para cada um dos pequerruchos. A menina adorava bala-de- goma.

Ah, num ponto de parada, na longa linha do ônibus, haveria de encontrar algum vendedor. E quem sabe levar ainda umas revistinhas, porque , diacho, também nunca ele tinha feito aquilo: aparecer de repente assim ao meio do dia e no meio da semana. Os meninos já iam ficar surpresos e alegres. Quem sabe até dariam um passeio pelo bairro e poderiam chegar, caminhando, ao Butantã-das-cobras, que é como as crianças denominavam o Instituto aonde por vezes iam, naquelas domingueiras, provincianamente, comprando uns infalíveis saquinhos de pipoca ou uns chumaços de algodão-doce. Vez em quando, espigas de milho.

O danado do mais velho começou a pegar os outros visitantes com a piada que aprendera com o Tio Joãozito. Em voz alta, mas ar de boi-sonso, fingia advertir os maninhos, no meio dos circunstantes, gente embasbacada diante das serpentes no fosso:

-É proibido matar cobra verde.

- Uai, por quê? Perguntava o primeiro otário.

- Porque tem que esperar amadurecer.

Só não lhe torciam o pescoço porque a vergonha era muita e quanto menos fossem notados, melhor. Ou então porque respeitavam o batia do pai ali do lado.

A filha-ah! Filha bem-amada- a que primeiro nascera.

Derretia a ouvir estórias. Até já inventava as suas. Ele creava acontecenças com a Formiguinha Josefina, personagem que usava nos faz-de-conta, desde que os filhos eram pouco mais do que bebês e só pelo meio entendiam aquelas lorotas e os gestos com os dedos imitando perninhas de saúva nas barrigas acetinadas.

Desceu no ponto certo. E fez o velho roteiro dos dois quarteirões para casa. Até o céu estava mesmo diferente naquele dia. A água-marinha refulgia no revérbero das duas horas. Nem uma só nuvem a desvalorizá-la de longe. Nem pontinho preto de urubu muito no alto ou longe.

As mensagens radiofônicas de uma errepê estacionada chamaram-lhe um pouco a atenção. Mas um pouco só. Porque unicamente pensava mesmo é nos abrações que trocaria com todos. Inclusive com ela. Ora, também já era tempo de acabarem com as tolas brigas conjugais! A mulher bem que tinha lá suas qualidades e se falhas lhe enxergava, certamente era por ser um camarada exigente demais. Caga-defeitos. Um belo dum rabugento. Ela ficaria surpresa sim, mas achando bem bom. E não? Com as carícias que ele sabia fazer nos seus cabelos e...e tudo poderia começar como dantes. A garotada haveria de adorar, porque crianças compreendem mais do que a gente pensa. São telepatas. Os três já deviam ter concluído que aquele relacionamento de sues pais acabariam mal. Enfim: acabaria.

Verbo danado esse acabar. Com toda a já falada quentura do dia, sentiu um calafrio ao pensar nisso. Acabar: fim. Um vazado por dentro, como se lhe tivessem arrancado um pedação do peito. Costelas, inclusive. Com uma enxada velha mas ainda afiada. Doída.

-Ué, um pouco diferente as árvores na sua rua! Ta,bém quase que só chegava ali de noite e nem tempo havia para prestar atenção nesses detalhes.

Mas amiudou o passo para chegar logo. Os pardais na arrelia que aumentava enquanto o sol rodava rumo ao poente. Barulheira amolante.

Agarrou-se ao portão de ferro e gritou pela filhinha.

Ninguém respondeu. Chamou carinhosos, e voz bem alta, pelo filho do meio. Ninguém respondeu.

Gritou meio apreensivo, pelo caçula. Uma, duas, três vezes.

Ninguém respondeu.

O mocinho de uns treze anos que pedalava sua bicicleta, formando um oito aqui, outro ali, pela calçada, parou e ficou olhando curioso para quela figura. Sem desmontar.

Apertou a campainha. Ninguém respondeu. Chamou a mulher. E todos os passantes começariam a parar, meio de longe, observando aquilo desconfiados, temerosos mesmo. Com esta gatunagem por aí... Mas o homem era bem vestido. Não tinha jeito ladrão. Não entendiam.

Marco entendia menos ainda. E então, era já em altos brados que gritava pela esposa e cada qual dos filhos. Ninguém respondeu.

Só as vizinhas apareciam pontiagudas, nas janelas e nos portões. Não as reconhecia. Foi para um canto da grade e espiou bem, para achar um dos seus, lá no fundo do jardim.

Nada.

Demorou o olhar sobre a pequena área à garagem e lembrou-se do dia do aniversário, o quarto, do filho do meio. Dera-lhe de presente um pequeno automóvel de brinquedo mas até com buzina, coisa muito modernosa em tal época. Custara cinco contos.

Dinheirão. Entretanto, o danado do menino, em menos de uma semana, não se satisfazendo em andar pedalando dentro da miniatura, divertia-se muito mais em desmontar o veículo, roda por roda, pára-lama por pára-lama, enfeite por enfeite, arrancado até a direção. Fora uma coisa meio surpreendente, mas , enfim, engraçada Afinal, do mundo nada se leva. Valeu o prejuízo.

Gritou maus uma vez. Não podia entrar porque o portão estava trancado. Corria de um extremo para outro ao longo das grades de ferro,-imponentes em seus caracóis artísticos-chamando pelos quatro nomes queridos. Era a sua família, a sua, não sabiam, não.

Ninguém respondeu.

Formando roda, nova gente que se acercava. Falaram até em chamar os policias da viatura de serviço. Aquela na esquina.

Marco foi se desesperando cada vez mais e já possesso, berrando os nomes dos seus. Caramba! Esgoelava. E chorou.

Chorou de lágrimas pingarem na calçada.

Depois cansou-se foi-se embora.

Ninguém compreendeu nada. Nem ele. Fazia vinte e três anos, dois meses e dezessete dias que não pisava naquela rua.


Conto de Geraldo Tasso, extraído do livro O Apito de Trem, editora A.Rocha editor, Brasília D.F, Caixa Postal 3.600- Cep: 70084-970-

O autor vive em Franca, São Paulo. Venceu diversos concursos literários. Tendo diversos livros publicados além do livro de contos Apito de trem..
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Manual do Chicanista - publicado sob o pseudônimo de Cesário Beca Rio.-1970
.Ponta de Faca- 1972 .

Comentário de Paulo Rónai sobre o livroO APITO DE TREM

Geraldo Tasso pratica o conto tradicional, de tipo maupassatiano, com princípio e desfecho, ação e personagem.

Esta fórmula, para mim, continua válida, contanto que o narrador saiba interessar o leitor e levá-lo a palpitar com os lances da história. Tasso faz isso muito bem. Com as qualidades resultantes de seu inegável talento é perfeito no aproveitamento do folclore no quadro de costumes de algumas cidadezinhas. Em outros excelentes contos sentimos a angústia da personagem tomar conta de nós.

Fale com o autor:e-mail:gtar@bestway.com.br