Literatura Brasileira

Às Voltas Com O Caboclo



Através dos artigos "Uma Velha Praga" e "Urupês", em "O Estado de S.Paulo", em 1915, Lobato atingiria o grande publico. Este momento significaria, para o próprio Autor sua estréia enquanto “homem de letras”.

Suas produções anteriores, para "O Minarete", de Pindamonhangaba; "O Povo", de Caçapava; "A Tribuna”, de Santos, entre outros, permitiram-lhe o exercício da escrita, incrementando também os seus contatos na área jornalística

A atividade literária, naquele momento, não se configurava como uma fonte de proventos garantidos. à altura das suas ambições. A busca de sucesso financeiro se aliava aos planos mirabolantes que Lobato projetava para si. Ainda em Areias, como promotor e colaborador daqueles pequenos jornais, perguntava ao cunhado, Heitor de Moraes. em carta de 1909:

“Ficas ai mesmo, tenda armada, ou sais para o mundo? Eu desta vez vou afundar para o Oeste, talvez Ibitinga, com a alma e a cabeça postas numa só coisa ganhar dinheiro, e economizar dinheiro, juntar dinheiro. Só lamento haver-me tão tardiamente convertido ao Deus único - o Bezerro é o único que não nos nega fogo, todos os mais são uns fantasmas que se esvaem. É uma sorte quando se compreende isso ainda a tempo de arrepiar carreira. Nada nos prejudica mais do que, ao sair da academia, continuar a ver as coisas com os olhos idealistas que tínhamos lá dentro”.(Cartas Escolhidas, São Paulo, Brasiliense, 1969, vol.I, pp99)

Herdeiro da Fazenda Buquira, perto de Caçapava, é para lá que Lobato se transferiria com a família, em 1911, para tentar a sorte como fazendeiro. Esta nova iniciativa revelaria sua dificuldade em administrar os negócios, mostrando um Lobato que tinha um discurso modernizador, mas que mantinha práticas conservadoras, o que gerava sérios impasses no trabalho. Com freqüência, nas cartas à irmã e a Rangel, aparecia a propensão ao incremento das atividades, permeada do confuso trato com dinheiro e a pouca destreza para lidar com os empregados. Fosse pela compra de máquinas ou pela variedade de espécies de animais que pensava em criar, Lobato tinha em conta que a fazenda não poderia manter em suas antigas bases . O tema do caboclo surgiria, certamente, daquela experiência, da observação que ele passaria a fazer da vida rural e dos habitantes daquele ambiente.

A tendência de critica social, inaugurada com a imagem do caboclo como "piolho da serra”, surgiria no texto lobatiano desde suas primeiras aparições na grande imprensa. A discussão, contudo, superaria a perspectiva do "fazendeiro ressentido”. Há, em "Urupês", uma importante manifestação de um processo de análise da identidade nacional, e o crítico Wilson Martins chega a sugerir que este artigo “poderia ter sido, deveria ter sido, o primeiro manifesto modernista" (A Literatura Brasileira, pp.22)

A primeira acentuada crítica de Lobato vai contra a abordagem romântica do homem brasileiro. Ainda segundo Martins, o Jeca seria "o primeiro tipo de 'herói' literário, contraposto a Peri na literatura moderna; ao mesmo tempo, ele (Lobato) desfechava a campanha contra o falso regionalismo (...)"(Cartas Escolhidas, São Paulo, Brasiliense, 1969, vol.I, pp99)

0 alvo, neste caso, seriam os próprios literatos, que segundo Lobato desconhecem os personagens sobre quem escrevem, como se queixava a Rangel:

““A nossa literatura é fabricada nas cidades por sujeitos que não penetram nos campos por medo de carrapatos. (...) O romantismo indianista foi todo ele uma tremenda mentira; e morto o indianismo, os nossos escritores o que fizeram foram mudar a ostra. Conservaram a casca... Em vez de índio, o caboclo”.
(ibidem, pp.23)

Há, na rejeição ao Jeca, uma forte base ontológica, que o desqualificaria devido a sua formação racial. O caboclo brasileiro, apresentado por Lobato, seria descendente dos degredados portugueses, os "quatrocentos de Gedeão", ou de uma negativa miscigenação entre brancos, índios e negros. Essa avaliação se completa com a apologia do imigrante italiano e alemão, em quem exaltaria a estabilidade de caráter e o constante estimulo para o trabalho.

Sarcasticamente, Lobato utiliza ainda os argumentos da fartura da natureza e das qualidades do clima para avaliar a preguiça do Jeca, pautando-se pelo mito da benevolência dos trópicos. O elemento negativo principal que é apontado no caboclo é a passividade, da qual proviriam todos os outros males. Isto é explícito em suas colocações sobre as desvantagens da existência da mandioca:

“Bem ponderado, a causa principal da lombeira do caboclo reside nas benemerências sem conta da mandioca. Talvez que sem ela ele se pusesse de pé e andasse. Mas enquanto dispuser de um pão cujo preparo se resume no plantar, colher e lançar sobre brasas, Jeca não mudará de vida. O vigor das raças humanas está na razão direta da hostilidade do meio ambiente5;A Barca de Gleyre , (São Paulo, Brasiliense ,1957,vol.I, pp364)”.

Se a postura em relação ao Jeca foi retomada alguns anos mais tarde com outro viés, a crença na asserção sobre vigor-hostilidade se manteve mais longamente. O incômodo com a passividade corresponde ao radicalismo da afirmação modernizadora, que salienta o "homem que faz". Por esse motivo, Lobato exaltaria sempre o vigor do imigrante, opondo-o ao homem nativo, por sua capacidade e empenho no trabalho.

Já na época da publicação de "Urupês" em livro, 1915, operava-se uma transformação na análise de Lobato. Há uma passagem do "estado" para as causas, que ele manifesta nos artigos que posteriormente viriam a compor o livro Problema Vital:

"O Jeca não é assim: o Jeca está assim”,Urupês, São Paulo, Brasiliense ,1946, pp.48 .
"

Da justificativa racial do perfil do um discurso organicista. A frustração em tornar o caboclo economicamente produtivo evolui para a compreensão dos motivos daquela dificuldade: o Jeca precisaria comer direito, precisaria de saúde, precisaria de condições de higiene e de um conforto que o estimulasse a buscar mais.

Assumir a abordagem que reconhece a possibilidade de mudança do homem brasileiro em vez da existência de um traço ontológico irremediável representa um conflito interno constante para Lobato. Formado por uma tradição determinista, as leituras de Spencer reaparecem em suas afirmações. Mesmo tendo-se em conta as transformações que ocorreram na análise de Lobato, veremos que ela é plena de avanços e retrocessos. Em seus contatos posteriores, ele voltaria às afirmações de cunho genético, correspondendo-se com Oliveira Viana e Artur Neiva, ambos políticos que lidavam, de forma conservadora, dos assuntos imigração.

É importante notar que, quanto mais indignado se encontrasse o Autor, mais definitivos seriam seus julgamentos em relação ao povo brasileiro. Seu estado de espírito é oscilante e, por vezes, ambíguo, entre extremos de descrença e de completa esperança. Neste trecho que escreveu a Neiva nos Estados Unidos em 1930 temos um bom exemplo de seus momentos de ceticismo:

“Tenho um grande mapa do Brasil na parede fronteira de meu 'desk' no escritório. Às vezes ponho-me a olhar para aquela imensidão de terra e dá-me um desânimo infinito. A gente dessa terra imensa compra pão - e até comida para passarinho! (...) Não é da gente pedir aos deuses a aplicação do remédio do Maneco... quinze dias de terremoto para afofar a terra e quinze dias de chuva de adubo humano?”(;O Problema Vital, São Paulo, Brasiliense , 1946,pp.221)

Não obstante, convencido por seus próprios planos de intervenção, Lobato passaria a colecionar fórmulas de "conserto” dos males congênitos do País. O binômio desprezo-dedicação acompanha as curvas de encaminhamento de seus projetos.

As acusações desfechadas em seus artigos ainda antes da década de vinte correspondem ao "status” bacharelesco que assumem as atividades políticas, isoladas da situação do Pais. Lobato prioriza uma observação que se propõe científica e objetiva rechaçando como vimos, a visão romântica dos problemas.

Utilizando a própria pena para as causas públicas, alternava aí interesses da esfera pessoal. Recém-chegado a São Paulo e às voltas com a coordenação da "Revista do Brasil" Lobato rapidamente canalizaria o discurso denunciativo para estabelecer-se. A vaidade se registrava em carta ao amigo Rangel em julho de 1918:

(“A mim me favoreceu muito aquela campanha pró-saneamento que fiz pelo “Estado”. Popularizou a marca "Monteiro Lobato". O público imagina-me um médico sabidíssimo, e a semana passada tive um chamado telefônico altas horas da noite”.(;Monteiro Lobato Vivo, MPM-Record,1986, pp.162)

O empenho demonstrado na Campanha pela Saúde Pública, no momento em que a epidemia de gripe espanhola se espalhava rapidamente entre a população paulistana, resultou em uma estreita amizade com o sanitarista Artur Neiva. Efetivamente, daqueles contatos resultaram a dita serie de artigos que têm a questão da saúde como tema central.

Neiva soube mobilizá-lo, vinculando a figura já popularizada de Jeca Tatu às descrições da precariedade das condições de saúde e higiene no País. Tendo participado de uma das expedições fiscalizadoras de Neiva, em Iguape, Lobato retorna preparado pare inflamar a opinião pública, alertando sobre a vastidão do problema da saúde e da urgência do investimento em saneamento básico, pare impedir-se o circulo vicioso da doenças.A leitura da geração de pesquisadores como Osvaldo Cruz, Miguel Pereira e Belisário Pena, inspiraram o vocabulário tão especifico que Lobato queria popularizar, repleto de nomes de parasitas e de doenças escabrosas, permeados todo o tempo de termos científicos. Corretos em suas reivindicações, os artigos de Lobato foram construídos num discurso de exacerbado apelo emocional, pintando cenas das mais grotescas, na descrição das conseqüências do descaso. Percebe-se novamente uma estratégia polemizante, que visava a marcar posição e a fazer barulho, buscando criar a consciência do estado epidêmico dos males disseminados entre a população. Vemos, nesta passagem, a retomada da crítica ao discurso ufanista, como a que já havia em

"Urupês"

: “No indivíduo enfermo o primeiro passo rumo à cura é de ordem puramente psicológica: há de o doente convencer-se de que o é”.(;A Barca de Gleyre ,vol.II, 173) (2)

Esta afirmativa presta-se tanto à interpretação literal de seu significado quanto à identificação de uma metáfora. Efetivamente, Lobato aludia à necessidade de uma população saudável pare possibilitar uma sociedade vigorosa. Nesse sentido, apela ao fator consciência como instrumento pare superar a imagem idealizada do brasileiro.Na mesma linha de pensamento, voltará a repetir, inúmeras vezes, sua revolta contra os políticos e literatos responsáveis pela sustentação da imagem deturpada. Assim escrevia ao próprio Neiva, anos mais tarde: “A coragem de certas afirmações dá estremecimento na gente. O indivíduo ergue-se na tribuna e proclama: "Pais rico, onde não há fome nem problemas sociais". Os apoiados rebentam e repontam de todos os lados”.( O Problema Vital, pp.267)

A discussão sobre o Jeca se afasta, num dado momento, do caboclo em si, pare versar sobre a visão que a sociedade possui deste. Reconhecendo o estado precário de saúde e de educação do homem do campo, Lobato transfere a responsabilidade da situação a uma estruturamais organizada, que deveria tratar desses assuntos. Com essa passagem, firma-se a idéia de que cabia ao Estado brasileiro, mais centradamente, cuidar do sistema de infra-estrutura para dar condições de saúde à população.Esta dimensão se reforçou nos anos que se seguiram a Campanha da Saúde Pública, uma vez que Lobato penetraria no tema da educação. Também neste âmbito, englobaria o Estado nas discussões sobre o custo do livro. A possibilidade de conscientizar o caboclo pobre e doente de sue necessidade de curar-se, para melhorar de vida, passava pela alfabetização e pela leitura de bons livros. É nesta direção que Lobato passaria a atuar.

. < a href= "mailto:roeli@virtual-net.com.b"r>Lilian Roeli

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