Trabalhos: A Propósito das Mortes de "Comandos"

in "Rebeldia", nº 3-4, Grémio Rebeldia, Lisboa, Janeiro de 1989, pp. 25-26

"Todo o indivíduo tem direito à liberdade e à segurança pessoal".
"Ninguém será submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, ou degradantes".

(Declaração Universal dos Direitos do Homem de 10 de Dezembro de 1948, respectivamente artigos 3º e 4º)

João Pedro Ferro

No dia 27 de Maio do corrente ano, morreu mais um "comando", durante a instrução deste corpo militar, desta vez por afogamento. Com os dois que morreram na base militar de Santa Margarida, anteriormente, eleva-se assim para três o número de instruendos dos comandos mortos, em menos de dois meses. No entanto, não se vêem grandes esforços no sentido de clarificar a situação e de esclarecer a opinião pública. Pelo contrário, sente-se o desejo de silenciar a questão, até cair no esquecimento. Assiste-se mesmo a actos de censura de artigos sobre o assunto em jornais dependentes de empresas públicas, como aconteceu com o presente artigo.

Talvez não haja ainda consciência plena da gravidade do caso: no que se refere aos dois comandos de Santa Margarida que morreram em Abril, dois homens morreram ao serviço do Estado sem qualquer necessidade nem justificação plausível. Este Estado democrático, que tem por obrigação a defesa do cidadão, parece afinal não ter mecanismos para que o cidadão se defenda dele. Se qualquer cidadão, embora sem o querer, mata outro, pode ser acusado de homicídio involuntário: o Estado não pode ter apenas as responsabilidades do cidadão, tem de as ter muito maiores, pelo que não é lícito, em circunstância alguma, que saia impune de todo este caso. Há que apurar a responsabilidade total e inequívoca, sem a qual o cidadão, legitimamente, perderá a confiança numa superestrutura que dele emana e que tem por primeiro dever garantir a segurança do cidadão. Como podem os jovens que vão cumprir o serviço militar ter a garantia da sua segurança, quando há ainda regimentos que praticam exercícios sob fogo real? Como podem deixar agora de supor que os longos meses que têm de passar ao serviço do Estado - serviço de discutível utilizade e de péssima remuneração - não os levarão a uma estadia no hospital e, em último caso, à morte? Do que não se esquivam, sem dúvida, é da brutalidade de um sistema militar pouco humanista ou desumanizado, que se repercute seriamente na mentalidade de todo o indivíduo que por ele passa.

O jovem, elemento da cidadania, reclama ainda mais veementemente justiça. E não se pense que a responsabilidade pode recair sobre a incúria de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos, "bodes expiatórios" de uma situação que aponta para a responsabilidade colectiva de todo um sistema militar necessitando urgentemente de ser discutido e alterado. Não é admissível que, em tempo de paz, se proporcione a morte inútil e homens válidos e em pleno vigor da vida, e a hospitalização de outros mais, durante uma "prova de choque". Responderão que foi um acidente, como já houve quem adiantasse. Quem nos garante, então, que amanhã ou depois não haverá acidentes semelhantes? Em Maio morreu mais um recruta. Diz-se que se atirou à água sem qualquer necessidade. Mas ninguém se atira à água, para uma morte certa, sem qualquer razão.

A CASMO, Comissão de Apoio ao Serviço Militar Obrigatório, no número sete do seu jornal, denuncia que, na recruta anterior, foi morto a tiro, com uma bala no peito, Manuel António Lopes da Silva. Dias depois, foi baleado outro recruta que, segundo as informações desse jornal, ainda se encontra hospitalizado. O Ministério do Exército recusou-se a comentar estes casos, alegando não ter conhecimento da CASMO que, no entanto, é subsidiada pelo FAOJ.

Oficialmente, mandou o Estado-Maior do Exército efectuar um inquérito sobre a morte dos dois comandos de Santa Margarida. Parece, no entanto, inadmissível e preocupante que seja a própria estrutura militar a averiguar e a emitir um juízo sobre o mesmo. Onde se viu um presumível criminoso julgar-se a si próprio? Legitimamente se pode duvidar de semelhante inquérito e, mais ainda, do julgamento final. Parece mais do que óbvio que, do próprio exército, não sairá uma crítica a si próprio.

O próprio general dirigente do inquérito fez já suspeitar, em declarações feitas publicamente, qual será um dos veredictos: "excesso de generosidade" dos recrutas, "desejos de ser o primeiro" e "não utilização dos meios postos à sua disposição". Ou seja, os culpados seriam os próprios recrutas. Não nos deixemos iludir. Mesmo que tal se tivesse passado, a responsabilidade recairia sempre sobre uma instituição militar que permite "excessos de generosidade" mortais e não verifica a utilização dos meios necessários por parte dos recrutas, se é que a facilita. De qualquer modo, a culpabilidade maior resulta do facto de incentivar os recrutas para estes "excessos" desumanos.

É já tempo de tomar plena consciência de que, num País democrático e que caminha para o progresso (mau grado todos os impasses), integrado numa Europa comunitária e pacífica, o exército não desempenha na sociedade o papel que porventura outrora desempenhou. Além disso, cada vez mais os jovens contestam a obrigatoriedade do serviço militar que, coarctando a liberdade individual em nome de uma "prestação cívica e patriótica" - como declara a Juventude Centrista (Diário de Notícias, 4.5.1988, p. 16) -, injustificada nos dias de hoje, serve apenas para roubar ao jovem parte importante do seu tempo de vida, independentemente de situações profissionais, escolares, familiares, religiosas e até mesmo ideológicas (cf. o interessante artigo "Por um Exército Profissionalizado", publicado no nº 1 da revista Rebeldia).

O Exército, tal como hoje se apresenta, vai gradualmente perdendo a razão de existir. A consciência deste facto é cada vez maior, até mesmo dentro do próprio Exército. O Serviço militar obrigatório terá de acabar forçosamente. Poderá levar mais ou menos tempo, dependendo da vontade política dos dirigentes e da eficácia das pressões exercidas pelas autoridades militares, que defenderão com unhas e dentes a razão da sua existência, imensamente onerosa para o pequeno País que somos.

Mas a velocidade da desobrigação do serviço militar depende também das posições que tomarem as vítimas desse próprio sistema: os jovens a cumprir o serviço militar e aqueles que o terão de cumprir num futuro próximo. É já tempo de estes jovens tomarem consciência de si próprios, de se unirem e, em uníssono, de fazerem frente a uma situação que os prejudica gravemente e sobre a qual têm o direito de ser ouvidos em primeiro lugar.

É bom que não se deixe passar a fase de revisão contitucional sem que o problema militar seja debatido com os principais interessados e não apenas com os senhores generais, membros do governo e partidos.

Fala-se muito, hoje em dia, de Direitos do Homem e da sua preservação. Atente-se nos artigos da Declaração dos Direitos do Homem em epígrafe e responda-se se, no nosso Exército e nos seus grupos especiais, se cumprem os Direitos do Homem. Forçar um indivíduo a submeter-se a situações contra vontade e que contrariam a natureza humana até ao limite das suas capacidades não será atentar contra os direitos e liberdades humanas? Será mesmo necessário preparar os militares de modo tão brutal e desumano? Não será isso simplesmente crueldade?

Que não se deite mais poeira nos olhos dos cidadãos.

Que os jovens reflictam e saiam do comodismo e da indiferença para tomarem posição por algo que lhes diz respeito e a todos nós. Numa sociedade democrática onde impere a liberdade individual, a tolerância para com todas as ideias e o respeito mútuo sob todos os seus aspectos, não tem cabimento um serviço militar obrigatório e muito menos um exército, mesmo voluntário, onde prevaleça a brutalidade e a indiferença pela condição humana.

Nota: a fotografia aqui apresentada faz parte de um conjunto de imagens presentes no site COLONIAL - memórias de guerra. Este site tem o apoio do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX e do Centro de Documentação 25 de Abril.